"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/05/2023

Jurisprudência 2022 (179)


Direito à imagem;
filmagem propositada; prova ilícita*

1. O sumário de RC 13/9/2023 (84/12.9TBVZL-U.C1) é o seguinte:

No âmbito de incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, onde se discute o incumprimento, pelo requerido/pai, do regime de visitas, alegando a requerente/mãe que este impediu as visitas estabelecidas em relação ao filho, agora prestes a atingir a maioridade, a junção aos autos, com finalidade probatória, pela requerente de um “CD” – contendo imagens, em gravação vídeo, que recolheu quando o requerido e o menor saiam da escola por este frequentada – constitui prova ilícita, que não deve ser admitida, por faltar o consentimento dos visados, estando em causa o seu direito à imagem, não se mostrando que não seja possível produzir outros meios de prova a respeito, designadamente a audição do filho, o que afasta a conclusão no sentido da ocorrência de um “estado de necessidade probatório”.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Suscita-se no presente recurso a questão de saber se o CD que a Requerente/Apelante veio juntar aos autos – CD que contém filmagem alegadamente demonstrativa de que o Requerido a havia impedido de ir buscar o filho à escola – é (ou não) um meio de prova lícito e admissível em termos de saber deve (ou não) ser admitida a sua junção aos autos para efeitos de valoração probatória.

A decisão recorrida entendeu que o referido CD correspondia a meio de prova ilícito e não admissível, argumentando:

- Que, no confronto das posições assumidas pelas partes – não tendo existido qualquer comportamento do Requerido que permitisse concluir, de forma inequívoca, que ele consentiu na captação da sua imagem – impunha-se concluir que a gravação em causa não havia sido consentida;

- Que, tendo sido efectuada sem o consentimento dos visados, a referida filmagem era um acto lesivo dos direitos individuais destes que se encontra tipificado como crime no art.º 199.º do CP;

- Que, nessas circunstâncias, esse meio de prova – configurando uma compressão de direitos fundamentais (no caso, o direito à imagem) – só poderia ser admitido se fosse absolutamente indispensável para a descoberta da verdade;

- Que, no caso, isso não acontecia, na medida em que havia outros meios de prova, designadamente prova testemunhal.

Discordando dessa decisão, argumenta, em resumo, a Apelante:

- Que a norma civil que tutela o direito à imagem – artigo 79º do CC – exclui a ilicitude da conduta quando a reprodução da imagem venha enquadrada na de lugares públicos ou que hajam decorrido publicamente ou ainda quando exigências de polícia ou de justiça o justifiquem;

- Que as imagens foram captadas em locais públicos ou de livre acesso ao público e apenas se destinaram a instruir os presentes autos, pelo que, à luz da norma legal em causa, tal gravação era lícita independentemente do consentimento do visado;

- Que a norma penal submete o preenchimento do elemento objectivo do tipo à declaração ou manifestação de oposição à captação de imagem (“contra vontade”), para que um interlocutor médio consiga percecionar que age contra a vontade do titular do direito, porquanto a vontade é intrínseca à pessoa e carece de exteriorização;

- Que, apesar de aquela filmagem não ser o único meio de prova apresentado, a verdade é que as testemunhas arroladas são familiares directos do Requerido e não estão de boas relações com a Requerente, e aquela filmagem permitirá que o Tribunal percepcione directamente a realidade descrita pela testemunha apresentada pela Requerente, de forma objetiva;

- Que, ainda que se conclua pela ilicitude daquele meio de prova, a verdade é que a inadmissibilidade de prova ilicitamente obtida não é uma regra absoluta e deve ceder em face dos bens jurídicos em conflito;

- Que, no caso, o interesse do jovem à manutenção de vínculos com ambos os progenitores e à sua autonomia deve prevalecer sobre o direito da imagem que o Requerido projecta livremente no espaço público.

Analisemos então a questão.

Ao contrário do que acontece no processo penal (cfr. art.º 126.º), o CPC não contém qualquer disposição de carácter geral a propósito da licitude/ilicitude das provas, seja para o efeito de estabelecer a inadmissibilidade de provas ilícitas, seja para o efeito de determinar quando e em que termos essa ilicitude se deve ter por verificada. Existem, apesar de tudo, algumas disposições legais que, de alguma forma, se relacionam com essa temática, como é o caso dos artigos 417.º, n.º 3; 434.º e 490.º do CPC.

Por essa razão e porque o art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa – em cujo n.º 8 se estabelece a nulidade de determinadas provas (mais concretamente, as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações) – se reporta especificamente ao processo criminal, tem sido suscitada a questão de saber se essa norma constitucional e, por consequência, a proibição de prova nela consagrada são aplicáveis analogicamente ao processo civil.

Em sentido afirmativo, pronunciaram-se Miguel Teixeira de Sousa [A prova ilícita em processo civil: em busca das linhas orientadoras, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXI (2020), n.º 2.] e Isabel Alexandre [Provas Ilícitas em Processo Civil, 1998, pág. 233 e segs.] e também assim se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 30/04/2009 (processo n.º 595/07.8TMBRG), nos Acórdãos da Relação do Porto de 06/01/2009 e de 15/04/2010 (processos n.ºs 0825375 e 10795/08.8TBVNG-A.P1) e no Acórdão da Relação de Évora de 11/05/2017 (processo n.º 8346/16.0T8STB-B.E1) [Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.].

Embora não encontremos razões para divergir desse entendimento, a verdade é que a ilicitude da prova em causa nos autos não encontra apoio no citado art.º 32.º da CRP.

Com efeito, sendo evidente que não está aqui em causa uma prova obtida mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa ou com abusiva intromissão no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, também nos parece não estar em causa uma prova obtida com abusiva intromissão na vida privada.

Na verdade, o que está em causa, conforme referimos, é um vídeo ou filme que inclui imagens do Requerido e do menor no momento em que saíam da escola por este frequentada. Estará em causa, portanto, a captação de imagens – em forma de vídeo – num momento em que o Requerido e o menor se encontravam em local público (ou acessível ao público) e em que poderiam ser vistos por todos os que se encontrasse no local ou nas suas imediações e que, retratando o acto (perfeitamente comum) de saída da escola, não se enquadra na esfera privada que se considera estar protegida pelo direito fundamental à reserva da vida privada (como é o caso da intimidade da vida pessoal ou familiar e como é o caso dos dados e informações sobre a saúde e sobre a vida particular que, à partida, se encontram reservados e fora do conhecimento de outras pessoas além do círculo restrito em que os próprios entendam partilhá-los).

O que está em causa no referido meio probatório será, sobretudo (como, aliás, se considerou na decisão recorrida), o direito à imagem do Requerido e do menor, sendo certo, no entanto, que o citado art.º 32.º da CRP não prevê a violação desse direito como fundamento autónomo de proibição e nulidade da prova. A prova obtida com violação do direito à imagem apenas relevará para efeitos do disposto no referido art.º 32.º se e na medida em que ela também configure a violação de um dos princípios ou direitos ali referidos, designadamente, a reserva da vida privada, o que, conforme referimos, não acontece no caso dos autos.

No entanto, a circunstância de essa proibição não resultar directamente do referido preceito constitucional não conduzirá necessariamente à licitude da prova, podendo dizer-se, de um modo geral, que a prova será ilícita quando comporte – seja em si mesma, seja pelo modo como foi obtida – a violação de direitos fundamentais; quando o meio probatório em questão ou a acção que esteja na base da sua obtenção são ilícitos e censuráveis em face da ordem jurídica em geral. A inadmissibilidade dessas provas corresponderá, desde logo, a uma exigência decorrente do direito das partes – constitucionalmente consagrado no art.º 20.º da CRP – a um processo equitativo. Com efeito, um processo equitativo – ou seja, um processo justo – não poderá deixar de exigir que ele se desenvolva com respeito e sem atropelo de direitos fundamentais das partes que não devam ceder em nome da descoberta da verdade material e, portanto, ele pressupõe que as provas (sejam as pré-constituídas, sejam as constituendas), não se configurem, seja pelo seu conteúdo, seja pelo modo como foram obtidas, como violadores e desrespeitadoras de direitos fundamentais. A mesma solução parece ser imposta pela unidade do sistema jurídico, já que não parece curial admitir que o sistema jurídico aceite a validade e admissibilidade de provas que estão em desacordo ou desconformidade com regras e direitos que ele próprio (o sistema jurídico) estabeleceu. Conforme refere Teixeira de Sousa [Ob. cit., pág. 43.], “O que é ilícito fora do processo deve permanecer ilícito em processo, até por razões atinentes à unidade da ordem jurídica e à função instrumental (e não construtiva) do direito processual civil”.

No caso que analisamos, a eventual ilicitude da prova relaciona-se – conforme referimos – com o direito à imagem (do Requerido e do menor), tendo considerado a decisão recorrida que essa prova (um CD contendo um vídeo) comportava violação ou compressão desse direito e havia sido obtida por via de actuação ilícita que estava legalmente tipificada como ilícito criminal (cfr. art.º 199.º do Código Penal).

Estando constitucionalmente consagrado, em termos genéricos, como um direito fundamental (cfr. art.º 26.º, n.º 1, da CRP), o direito à imagem tem também consagração legal no art.º 79.º do CC, onde se estabelece a regra de que a imagem (retrato) de alguém não pode ser exposta, reproduzida ou lançada no comércio sem o seu consentimento e onde se estabelecem as situações em que a licitude desses actos não depende do consentimento do retratado, dispondo-se designadamente no n.º 2 que não é necessário o consentimento da pessoa retratada “…quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”.

Paralelamente – e com vista à protecção do mesmo direito – o art.º 199.º, n.º 2, do CP tipifica e qualifica como ilícito criminal a actuação de quem, contra a vontade do visado, fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado ou utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.

No sentido de afastar a argumentação da decisão, a Apelante – sem por em causa o facto de o vídeo em questão ter sido feito sem o consentimento do Requerido – vem sustentar que a ilicitude da conduta a que se reporta o citado art.º 79.º é excluída quando a reprodução da imagem venha enquadrada na de lugares públicos ou que hajam decorrido publicamente ou ainda quando exigências de polícia ou de justiça o justifiquem, conclusão que é reforçada pelo facto das imagens não terem sido expostas, reproduzidas ou lançadas no comércio (nº1 do mesmo artigo), mas apenas e tão só remetidas aos presentes autos, que são de carácter reservado.

Sendo verdade – como diz a Apelante – que as imagens não foram expostas, reproduzidas ou lançadas no comércio, não será menos verdade que a sua admissão como prova nos presentes autos irá implicar a sua exposição ou reprodução, pelo menos perante o Tribunal e demais intervenientes. Por outro lado, se é certo que o referido art.º 79.º não se reporta expressamente à captação das imagens (embora possa ser discutível que não esteja também no seu espírito), não é menos certo que o art.º 199.º do CP visa directamente a colheita ou captação, preceituando – clara e expressamente – que tal conduta (levada a efeito contra a vontade do visado) constitui ilícito criminal.

Pensamos, por outro lado, que a excepção prevista na parte final do n.º 2 do CC não tem o exacto significado que a Apelante (aparentemente) lhe pretenderá atribuir.

O que ali se dispõe é que não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. Isso não equivale a dizer que a conduta não é ilícita e que não há violação do direito à imagem quando o visado (retratado) se encontre em lugar público. O que ali se pretende dizer é que a reprodução da imagem é lícita independentemente de consentimento do “retratado”, quando a reprodução não visa directamente e não tem como propósito reproduzir o “retratado”, mas sim um lugar público ou um facto de interesse público ou que haja decorrido publicamente; a recolha ou reprodução da imagem de alguém, ainda que sem o seu consentimento, será lícita quando, com o propósito de retratar e reproduzir a imagem de um lugar ou evento públicos se retrata e reproduz a imagem de alguém que aí se encontrava; tal recolha e reprodução já não será lícita quando, apesar de o “retratado” se encontrar em local ou evento público, a imagem recolhida e a sua reprodução não tenha tido qualquer relação com esse local ou evento (públicos) ou com qualquer outra facto de interesse público, visando directamente o “retratado”.

No caso, ainda que o Requerido e o menor se encontrassem em local público ou acessível ao público (à saída da escola), a captação de imagens feita pela Apelante visou-os directamente; a Apelante não pretendeu filmar a escola ou o local onde ela se situa, nem pretendeu registar, em termos gerais, a saída dos alunos da escola ou qualquer outro facto ou evento de interesse público; o que a Apelante pretendeu – e aquilo que fez efectivamente – foi captar imagens do Requerido e do menor tendo em vista (ao que tudo indica) a sua posterior utilização como meio probatório nos presentes autos e tal situação não se enquadra na situação prevista na parte final do n.º 2 do citado art.º 79.º.

Argumenta também a Apelante que a norma penal (o art.º 199.º do CP) submete o preenchimento do elemento objectivo do tipo à declaração ou manifestação de oposição à captação de imagem (“contra vontade”), para que um interlocutor médio consiga percepcionar que age contra a vontade do titular do direito, porquanto a vontade é intrínseca à pessoa e carece de exteriorização. Pretenderá dizer a Apelante – ainda que não o diga expressamente – que a sua actuação – quando recolheu aquelas imagens em vídeo – não constitui qualquer ilícito criminal, uma vez que a norma penal em questão – o n.º 2 do art.º 199.º do Código Penal – exige a manifestação expressa de oposição, o que, no caso, não teria acontecido.

É verdade que o n.º 2 da norma citada – a propósito da fotografia ou filmagem – exige que o acto em questão seja praticado contra vontade (do visado, naturalmente), ao contrário do que acontece n.º 1 que, no que toca a gravações, exige apenas que tal seja feito sem consentimento.

Todavia, ainda que a redacção da norma pareça apontar para o facto de, no caso da fotografia ou filmagem, se exigir algo mais que a mera falta de consentimento, a verdade é que não faria muito sentido que se exigisse uma efectiva manifestação de vontade no sentido de oposição ao acto em questão, sendo certo que isso deixaria fora do alcance da sua previsão todos os casos em que o acto é praticado sem dar ao visado qualquer possibilidade de manifestar oposição, seja porque é praticado às ocultas (sem o conhecimento do visado), seja porque é praticado de forma inusitada e repentina sem dar ao visado a oportunidade de reagir atempadamente e de manifestar qualquer oposição. Deverá entender-se, portanto – como se entendeu no Acórdão da Relação de Coimbra de 20/09/2017 (proferido no processo n.º 2/16.5 PAMGR.C1) [Disponível em http://www.dgsi.pt.] que “…não se exige que a oposição de vontade seja expressa, pois para a conduta ser típica bastará que contrarie a vontade presumida do portador concreto do direito à imagem”.

Ora, embora não saibamos se existiu (ou não) oposição expressa do Requerido, pensamos ser certo que o acto em questão foi praticado contra a sua vontade presumida; nas circunstâncias descritas, parece-nos evidente que, não tendo existido consentimento do Requerido para captar aquelas imagens, nenhuma razão haveria para pensar que ele não se opunha, tanto mais que estavam em causa imagens que a Apelante pretendia usar contra ele e não era minimamente expectável que, nessas circunstâncias, o Requerido se conformasse com a respectiva captação.

De qualquer forma, ainda que se venha a considerar – nas instâncias competentes, ou seja, no processo criminal que já se encontra em curso – que a conduta da Apelante não preencheu a previsão legal e que, como tal, não constitui ilícito criminal, essa circunstância não eliminará a eventual ilicitude da prova que possa resultar do disposto no art.º 79.º do CC.

Conforme referimos, o referido art.º 79.º estabelece a regra de que a imagem (retrato) de alguém não pode ser exposta, reproduzida ou lançada no comércio sem o seu consentimento e estabelece – no n.º 2 – as excepções a essa regra, ou seja, as situações em que a licitude desses actos não depende do consentimento do retratado.

Já vimos que não se verificava aqui a situação prevista na parte final do referido n.º 2. Assim, sendo manifesto que as demais situações ali previstas, também não se verificam, resta saber se existiam (ou não) “exigências de polícia ou de justiça” que justificassem a colheita das imagens sem necessidade de consentimento e que possam legitimar a sua apresentação e reprodução no âmbito dos presentes autos como meio de prova.

Argumenta a Apelante que a filmagem em questão foi efectuada por ser necessária para demonstrar em Tribunal – no âmbito deste processo – que o Requerido impedia os seus contactos com o menor e que, nessa medida, ainda que se conclua pela sua ilicitude, aquele meio de prova deve ser admitido porque o interesse do menor à manutenção de vínculos com ambos os progenitores e à sua autonomia deve prevalecer sobre o direito da imagem que o Requerido projecta livremente no espaço público (estariam em causa, portanto, na sua perspectiva, as tais “exigências de polícia ou de justiça” a que alude o citado art.º 79.º).

Tal alegação suscita a questão de saber como e em que termos pode e deve ser efectuado, para efeitos de licitude e admissibilidade do meio probatório em questão, um juízo de ponderação sobre os interesses em causa e sobre a eventual prevalência de um deles em relação ao outro.

A jurisprudência – sobretudo da área criminal, onde a questão surgirá com maior frequência – tem vindo a considerar que a captação de imagens feitas por particulares em locais públicos ou de livre acesso ao público e que não respeitem ou não interfiram com o “núcleo duro” da vida privada da pessoa visionada correspondem a meio probatório admissível, ainda que não tenha existido consentimento do visado, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infração criminal –cfr. Acórdão do STJ de 28/09/2011 (processo n.º 22/09.6YGLSB.S2), da Relação de Lisboa de 02/03/2017 (processo n. 1374/15.4Y5LSB.L1-9), Acórdão da Relação de Coimbra de 24/02/2016 (processo n.º 2638/12.4TALRA.C1), Acórdão da Relação do Porto de 23/10/2013 (processo n.º 585/11.6TABGC.P1) [Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.].

A questão prende-se, desde logo, com o disposto no art.º 79.º, n.º 2, onde se determina – em relação ao direito à imagem – que a exposição ou reprodução do retrato (fotografia ou vídeo) não depende de consentimento quando as exigências de polícia ou de justiça assim o justifiquem, não existindo, portanto, qualquer ilicitude. São essas exigências de polícia ou de justiça que, em determinadas circunstâncias (desde que as imagens não respeitem ao “núcleo duro” da vida privada da pessoa visionada), justificam a admissibilidade do meio de prova em causa quando ele se destina a provar a prática de um ilícito criminal (cfr. jurisprudência acima referida).

Miguel Teixeira de Sousa [Ob. cit., pág. 47 e segs.] aborda a questão, no âmbito do processo civil e a propósito da intromissão abusiva no direito à privacidade, situando-a ao nível das causas de exclusão da ilicitude. Ou seja, a prova ilícita (por intromissão abusiva no direito à privacidade) pode ser justificada (e, como tal, admitida) se se verificar uma causa de exclusão da sua ilicitude, o que, segundo o referido autor, acontece quando ocorrer aquilo que designa por “estado de necessidade probatório”, seja porque o facto probando, pela sua natureza, só pode ser provado pela prova ilícita, seja porque a parte tem dificuldade (objectiva ou subjectiva) de produzir essa prova. Ainda segundo o referido autor, a exclusão da ilicitude da prova – e a sua consequente admissibilidade – pressupõe ainda que a intromissão na vida privada seja proporcional ao direito que a parte onerada pretende tutelar em juízo, ou seja, “…o fim – que é a tutela do direito da parte onerada – deve ser considerado prevalecente sobre o meio – que é a intromissão na vida privada da outra parte”, em termos de justificar que a parte tenha que suportar uma intromissão na sua vida privada em função da tutela do direito da outra parte.

Em bom rigor, será essa a ideia que também está subjacente ao n.º 2 do citado art.º 79.º quando dispõe – em relação ao direito à imagem – que a exposição ou reprodução de retrato (fotografia ou vídeo) não depende de consentimento da pessoa quando as exigências de polícia ou de justiça assim o justifiquem, devendo, por isso, entender-se que essa situação se verifica – retirando ilicitude ao facto e à prova – quando a exposição ou reprodução vise fazer a prova de determinado facto quando essa prova não pode ser – ou dificilmente poderá ser – feita por outro modo e desde que o direito ou interesse que com ela se pretende tutelar deva prevalecer sobre o direito à imagem, em termos de justificar que o “retratado” suporte a recolha e uso da sua imagem em função da tutela daquele direito ou interesse.

Não será difícil considerar verificada essa situação – em termos de justificar a admissibilidade do meio probatório – quando (como acontece nas situações a que se reportam os acórdãos acima citados) as imagens visam demonstrar a prática de um ilícito criminal e não implicam violação de qualquer outro direito fundamental, designadamente, o direito à reserva da vida privada.

Importa saber, no entanto, se também podemos ter como verificada essa situação no caso em análise.

No caso em análise, o direito/interesse cuja tutela se pretendia assegurar com a apresentação do CD é o interesse do menor em ver assegurados os contactos regulares com os seus progenitores (no caso, com a progenitora).

Está em causa, naturalmente, um interesse e direito fundamental do menor cuja protecção e satisfação poderia ser susceptível de fazer ceder a protecção do direito à imagem.

Mas, apesar disso, entendemos que não existe justificação bastante para fazer ceder a protecção legal e constitucionalmente conferida ao direito à imagem.

Na verdade, conforme é referido na decisão recorrida – e é confirmado pela Apelante – existem outros meios de prova (prova testemunhal) apresentados pela Apelante para prova dos factos que alegou. As próprias imagens constantes do CD foram – segundo afirma a própria Apelante nas suas alegações – percepcionadas por testemunha por si arrolada (ou seja, uma testemunha que se encontrava no local) e, nessas circunstâncias, será difícil concluir pela existência do “estado de necessidade probatório” de que fala Miguel Teixeira de Sousa, ou seja, por uma impossibilidade ou dificuldade relevante de fazer a prova dos factos em questão por outros meios em termos que pudessem justificar a cedência do direito (fundamental) à imagem, à luz do disposto no referido art.º 79.º.

Importa notar, além do mais, que não estamos a falar de um menor com 2, 5, 8 ou 10 anos de idade; falamos de um jovem que, neste momento, tem 17 anos de idade (que atingirá a maioridade daqui a poucos meses) e que, além de já ter capacidade para se afastar de eventuais influências ou pressões do pai e para, de alguma forma, determinar os termos em que decorrem (ou não decorrem) os contactos com a sua progenitora, também tem a capacidade necessária para ajudar a esclarecer os factos aqui em questão (que o envolveram directamente), sendo certo, aliás, que foi ouvido nos autos em 04/09/2020 e em 16/10/2020. Assim sendo, não será legítimo afirmar que não existam – além do referido CD – outros meios de prova relativamente aos factos em questão.

De qualquer forma, importa referir que aquilo que poderia justificar a licitude do meio de prova aqui em questão era o interesse do menor em ver assegurado o seu direito de visita ou contacto regular com a mãe, ou seja, o direito e o interesse fundamental de usufruir de uma convivência saudável e regular com ambos os progenitores e, mais concretamente, com a mãe; era esse o interesse cuja relevância poderia justificar a cedência da protecção conferida ao direito à imagem.  Ora, a verdade é que, para esse efeito, o meio de prova em questão já não terá, neste momento, grande relevância, já que, estando o menor prestes a atingir a maioridade, a decisão a proferir terá escassa relevância para o efeito de alterar a situação e promover/assegurar (para o futuro) a efectiva convivência entre mãe e filho. Nessas circunstâncias, o meio de prova em questão serviria, quando muito, para atestar que tem sido o Requerido a impedir os contactos do menor com a Requerente, sendo certo, no entanto, que o interesse em demonstrar esse facto (ou seja, o incumprimento do Requerido) não tem, só por si, relevância bastante para fazer ceder a protecção conferida ao direito de imagem.

À luz do exposto, não nos parece ser de concluir pela existência de reais “exigências de polícia e de justiça” que, à luz do disposto no art.º 79.º do CC, pudessem legitimar a admissibilidade do meio de prova em questão com a consequente exposição e reprodução do CD (vídeo) sem o consentimento dos visados e, designadamente, do Requerido.

Assim e sendo certo que também não se verifica nenhuma das demais circunstâncias referidas no n.º 2 do referido art.º 79.º, impõe-se concluir que estamos perante uma prova ilícita que, como tal, não poderá ser admitida. O modo pelo qual foi obtida a prova em questão corresponde, ao que tudo indica, a um ilícito criminal, mas ainda que assim não seja, a sua admissão nos autos como meio probatório implicará a exposição e reprodução da imagem do Requerido (e do menor) o que, sem o seu consentimento, é ilícito à luz do disposto no art.º 79.º do CC. E se isso é ilícito, impõe-se concluir que a prova é ilícita, não podendo ser admitida."

*3. [Comentário] O decidido no acórdão merece uma nota: ao contrário do que nele se entendeu, não parece impossível integrar a situação ocorrida (filmagem propositada de um acontecimento ocorrido num espaço público) na "abusiva intromissão na vida privada" referida no art. 32.º, n.º 8, CRP. 

Aproveita-se para deixar uma nota de agradecimento pela importância concedida a um trabalho próprio.

MTS