Ineptidão da petição inicial;
causa de pedir; pedido; contradição*
I. O sumário de RG 6/10/2022 (63/22.8T8VVD.G1) é o seguinte:
1- Na ação de divisão de coisa comum o pedido e a causa de pedir variam consoante o autor da ação considere que a coisa é divisível ou indivisível em substância.
2- Caso o autor da ação considere que a coisa comum é divisível em substância, o pedido consiste na pretensão do autor para que a coisa seja dividida materialmente entre aquele e os restantes comproprietários de harmonia com os quinhões que forem fixados. Em sede de causa de pedir, o autor terá de, na petição inicial: a) identificar a coisa comum; b) alegar que essa coisa é propriedade comum das pessoas que individualiza; e c) alegar o volume da quota parte de cada comproprietário na coisa, sob pena de atuar a presunção prevista na parte final do n.º 2 do art. 1403º do CC.
3- Caso o autor da ação considere que a coisa comum é indivisível em substância, o pedido é a pretensão do autor para que a coisa seja adjudicada ou vendida. Em sede de causa de pedir, o autor terá de, na petição inicial: a) identificar a coisa comum; b) alegar que essa coisa é propriedade comum das pessoas que individualiza; c) alegar o volume da quota parte de cada comproprietário na coisa, sob pena de atuar a presunção referida em 2); e d) alegar que a coisa não pode ser dividida em substância, alegando os factos concretos que determinam essa indivisibilidade.
4- Instaurando o recorrente uma ação de divisão de coisa comum, pedindo que “se nomeie perito, fixando-se as quotas de cada titular, seguindo-se os demais termos do processo até final”, não ocorre o vício da ineptidão da petição inicial, por falta ou ininteligibilidade do pedido, uma vez que qualquer declaratário médio, perante o disposto no art. 927º do CPC, interpretaria esse pedido como consubstanciando a pretensão do recorrente no sentido de que a coisa seja dividida materialmente entre ele e o apelado por, na sua perspetiva, essa coisa comum ser divisível em substância.
5- Alegando o recorrente, na petição inicial, como causa de pedir para suportar o pedido referido em 4), ser “dono e legítimo possuidor de uma casa inscrita na matriz predial urbana sob o art. ...º e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ....” e que o recorrido é “dono e legítimo possuidor de uma casa inscrita na matriz sob o art. ...º e descrita sob o n.º .../.......”, e que “apesar de se tratar de descrições autónomas, ambas as casas fazem parte de um conjunto habitacional integrado e murado”, em que essas casas são servidas de água de nascente comum e que a casa do recorrido possui dois fornos de lenha para serventia de todo o complexo, ocorre o vício da ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir, posto que se as pretensas “casas” têm descrições prediais próprias e distintas, trata-se juridicamente de prédios distintos e autónomos, com proprietários também eles autónomos, conforme é alegado pelo próprio recorrente na petição inicial e é demonstrado pelo teor das certidões prediais que junta em anexo à petição inicial, pelo que a causa de pedir por ele alegada revela-se contraditória nos seus próprios termos, e, inclusivamente, ocorre o vício da ineptidão da petição inicial, por contradição entre essa causa de pedir (intrinsecamente contraditória e, portanto, ininteligível) e o pedido, porquanto é contraditório pedir que o tribunal divida em substância o dito “conjunto habitacional” como se este fosse um prédio propriedade comum de recorrente e recorrido, quando o primeiro alega, em termos de causa de pedir, que esse conjunto é composto por casas, a que correspondem descrições prediais distintas e que, portanto, são prédios juridicamente distintos e autónomos e quando alega que esses prédios têm inclusivamente proprietários também eles distintos.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A 1ª Instância julgou procedente a exceção dilatória da ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir, argumentando que, “analisados os factos alegados pelo autor na petição inicial, verificamos que o autor não identifica nem especifica quais as coisas ou direitos cuja divisão pretende, porquanto da análise da petição inicial não resulta se o autor pretende a divisão do(s) prédio(s) e/ou da água e/ou dos fornos que alega existir no local. Mais constatamos que o autor também não alega qual a relação de compropriedade ou de comunhão existente com o réu e que justifica a sua demanda, não indica a posição de cada consorte nem indica as respetivas quotas” e, bem assim, que, “da petição inicial também não resulta qual(is) a(s) coisa(s) objeto de divisão, por em momento algum o autor ter formulado um concreto pedido nesse sentido, peticionando apenas que se “designe designar Perito Único a nomear pelo Tribunal, fixando-se as quotas de cada titular seguindo-se os demais termos até final”, assim formulando um pedido ambíguo e ininteligível que não permite perceber o seu conteúdo e alcance”, entendimento esse com o qual não se conforma o apelante (Autor), imputando erro de direito ao assim decidido.
Vejamos se lhe assiste razão.
Acontece que, conforme é evidenciado pela alegação do apelante, em sede de petição inicial, e é esclarecido pelo requerimento que apresentou na sequência do despacho proferido pela 1ª Instância em 15/05/2022, a pretensão de tutela judiciária formulada pelo mesmo (pedido) é no sentido de se dividir aquilo que o próprio denomina por “casas” e que identifica nos arts. 1º e 2º da petição inicial e que sustenta que, apesar de terem descrições e inscrições prediais autónomas, “ambas as casas fazem parte de um conjunto habitacional integrado e murado, denominado “...”.
Assentes que, atento o pedido que deduz na petição inicial, de forma deveras deficiente, o apelante pretende que se divida a coisa, por a considerar divisível, e que, portanto, o seu pedido é no sentido de proceder à divisão material dessa coisa entre ele e o apelado (Réu), cumpria-lhe, nesse caso (em que, na sua perspetiva, a coisa é divisível), em termos de causa de pedir, observar os seguintes ónus alegatórios: a) identificar de forma clara, de modo a ser apreensível por qualquer declaratário médio que estivesse na concreta posição em que se encontrava o juiz e o apelado (Réu) quando se viram confrontados com aquele articulado inicial, o(s) prédio(s) ou a(s) coisa(s) mobiliária(s); b) alegar que esse(s) prédio(s) ou coisa(s) mobiliária(s) são propriedade comum de tais e tais interessados; e c) alegar o volume das quotas de cada um dos comproprietários em relação à coisa comum, sob pena de ver atuar a presunção do art. 1403º, n.º 2 do CC.
Ora, perscrutada a petição inicial, como já enunciado: ou entende-se, como entendeu o tribunal a quo, que os factos alegados pelo apelante, na petição inicial, em sede de causa de pedir, não permitem identificar que concreta coisa é essa que alegadamente será propriedade comum do apelante e do apelado e que pretende que seja judicialmente dividida entre eles em substância, porquanto “não identifica nem especifica quais as coisas ou direitos cuja divisão pretende, porquanto da análise da petição inicial não resulta se o autor pretende a divisão do(s) prédio(s) e/ou da água e/ou dos fornos que alega existir no local”, e, tal como concluiu a 1ª Instância, ocorre o vício da ineptidão por ininteligibilidade de causa de pedir; ou entende-se, como nos parece ser o caso, que na petição inicial o apelante, ainda que de forma deficiente, discrimina de forma suficiente a “coisa” que pretende ver judicialmente dividida em substância.
Com efeito, compulsada a petição inicial, prefigura-se-nos que a “coisa” que o apelante alega ser propriedade comum daquele e do apelado são aquilo que o mesmo denomina por “casas” nos artigos 1º e 2º da petição inicial.
Neste sentido aponta-se a circunstância do apelante logo no art. 1º da petição inicial alegar ser “dono e legítimo possuidor de uma casa de dois pavimentos (…), inscrita na matriz predial urbana sob o art. ...º e descrita sob o n.º ....”, de no art. 2º desse mesmo articulado inicial alegar que o Réu é, por sua vez, “dono e legítimo possuidor de uma casa de dois pavimentos, com dependências e capela (…), inscrita na matriz sob o art. …º e descrita sob o n.º .../.......”, logo acrescentando, no art. 3º desse mesmo articulado que, “apesar de se tratar de descrições e inscrições autónomas, ambas as casas fazem parte de um conjunto habitacional integrado e murado, denominado ...”, o que é bem evidenciador que o prédio de que o apelante se arroga comproprietário juntamente com o apelado é composto pelo identificado “conjunto integrado e murado”, denominado “...”, composto pelas pretensas casas que identifica nos enunciados arts. 1º e 2º da petição inicial.
De resto, salvo o devido respeito por entendimento contrário, a alegação feita pelo apelante naquele articulado inicial quanto à água e aos fornos, sustentando que essa água e fornos servem o referido “conjunto integrado e murado”, denominado a “...”, composto pelas casas (a dele e a do apelado identificadas, respetivamente, nos arts. 1º e 2º da petição inicial), é no sentido de demonstrar que essas “casas fazem parte de um conjunto habitacional”.
Ora, porque, na nossa perspetiva, o apelante deixa de forma suficientemente clara, de modo a ser percetível por qualquer declaratário médio que “a coisa” que o mesmo alega ser compropriedade daquele e do apelado e que pretende ver judicialmente dividida em substância, adjudicando-se cada uma das partes resultantes da divisão ao mesmo e ao apelante na proporção das respetivas quotas, é composto pelo identificado “conjunto ou complexo habitacional”, impera concluir ocorrer ininteligibilidade da causa de pedir e, inclusivamente, contradição entre essa causa de pedir e o pedido que deduz.
Na verdade, apesar de alegar nos arts. 1º e 2º da petição inicial que ele e o apelado são “donos e legítimos possuidores das casas” que aí identifica, é o próprio apelante que sustenta naquele ponto 1º que a casa que aí identifica se encontra inscrita na matriz e descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º ...., e que também as que identifica no art. 2º se encontram inscritas na matriz e descritas mesma Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../........
Ora, alegando o apelante, naquele art. 1º da petição inicial, que o mesmo é “dono e legítimo possuidor de uma casa” (leia-se, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º ....), e no ponto 2º desse mesmo articulado que o apelado é “dono e legítimo possuidor de uma casa de dois pavimentos, com dependências e capela” (leia-se, prédio descrito na mesma Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º .../.......) e dispondo-se no art. 79º do Cód. Reg. Predial que, a descrição tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios (n.º 1) e que de cada prédio é feita uma descrição distinta (n.º 2), resulta dessa alegação que, no caso, não se está perante quaisquer “casas”, mas sim perante prédios distintos e autónomos, o que torna de todo ininteligível, por incompreensível para qualquer declaratário médio que se visse confrontado com o teor desse articulado inicial, a alegação do apelante vertida no art. 3º desse mesmo articulado quando nele pretende que, “apesar de se tratar de descrições e inscrições autónomas, ambas as casas fazem parte de um conjunto habitacional integrado e murado, denominado ...” e pretende, contraditoriamente com essa sua alegação, e com a circunstância de sustentar que essas pretensas casas têm descrições autónomas na Conservatória do Registo Predial, constituindo, portanto, prédios autónomos e distintos entre si, que aquele conjunto habitacional integra um único prédio, que é compropriedade do próprio e do apelado.
Aliás, o apelante juntou em anexo à petição inicial certidão da Conservatória do Registo Predial dos prédios em análise, de cujo teor resulta que o prédio aí descrito sob o n.º .... está com propriedade inscrita, no registo, a favor do próprio, por compra, enquanto o prédio descrito sob o n.º .../....... se encontra com propriedade inscrita, no registo, a favor do apelado, por sucessão hereditária, pelo que, estatuindo o art. 7º do C.R.Predial que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, não tendo o apelante alegado qualquer facticidade tendente a ilidir essa presunção legal, a causa de pedir por ele alegada na petição inicial não só se revela ininteligível, como inclusivamente está em contradição com o pedido que deduz.
Na verdade, estando-se perante descrições prediais distintas e autónomas, as mesmas reportam-se a prédios autónomos e distintos entre si, em que, de acordo com a própria alegação do apelante, os prédios que identifica nos arts. 1º e 2º da petição inicial são prédios autónomos e distintos, em que o primeiro, de acordo com essa sua alegação e da presunção resultante do enunciado art. 7º do CRPredial, é propriedade do apelante, e o segundo é propriedade do apelado, pelo que, se aqueles prédios foram no passado um “conjunto habitacional”, há muito que os mesmos se autonomizaram, dando lugar a prédios distintos, com proprietários distintos, resultando, aliás, da alegação vertida pelo apelante no requerimento que apresentou na sequência do despacho proferido pela 1ª Instância em 15/05/2022 que quando o mesmo adquiriu, por compra, o seu prédio, este já constituía há várias décadas um prédio autónomo e distinto do prédio identificado no art. 2º, propriedade do apelado, ao sustentar que “a casa que hoje pertence ao requerente, encontra-se integrada no conjunto habitacional denominada “A ...”, a qual foi alienada, há várias décadas, por um familiar do Requerido e esteve na posse de T. C. e seus herdeiros até 07 de maio de 2020, data em que foi adquirida pelo Requerente, por escritura pública”.
Porque assim é, para além da causa de pedir alegada pelo apelante na petição inicial, se revelar contraditória ao nível da alegação que a consubstancia e, consequentemente, ininteligível, também ocorre o vício da contradição entre essa causa de pedir e o próprio pedido, porquanto não pode o apelante pretender que se proceda à divisão judicial, em substância, de “uma unidade ou conjunto habitacional”, quando simultaneamente decorre da sua alegação, em sede de causa de pedir, que essa pretensa “unidade ou conjunto habitacional” é composta por prédios juridicamente autónomos e distintos, os quais são inclusivamente propriedade de donos distintos.
Em suma, decorre do que se vem dizendo que, diversamente do decidido pela 1ª Instância, no caso não ocorre o vício da ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido.
No entanto, ocorre o vício da ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir que alegou, na medida em que, apesar de pretender que aquele e o apelado são comproprietários da referida “unidade ou conjunto habitacional”, resulta da sua própria alegação que essa pretensa “unidade ou conjunto habitacional” tem duas descrições prediais distintas e autónomas, tratando-se, portanto, de dois prédios juridicamente distintos e autónomos, os quais, inclusivamente, de acordo com a alegação do próprio apelante e do teor das certidões prediais que junta em anexo à petição inicial e da presunção estabelecida no art. 7º do Cód. Reg. Predial, têm proprietários distintos (o prédio identificado no art. 1º da p.i. é propriedade exclusiva do apelante, enquanto o identificado no art. 2º da p.i. é propriedade exclusiva do apelado) e, inclusivamente, por contradição entre essa causa de pedir (contraditória e, por isso, ininteligível nos seus próprios termos) e o pedido que formula, posto que não se pode dividir em substância aquilo que já se encontra dividido em substância, constituindo juridicamente dois prédios autónomos e distintos e que, inclusivamente, têm proprietários distintos.
Decorre do exposto que, ao julgar procedente a exceção da ineptidão e ao absolver o apelado da instância, o tribunal a quo não incorreu em nenhum dos erros de direito que lhe são imputados pelo apelante, impondo-se concluir pela improcedência da presente apelação e confirmar a decisão recorrida, com as especificações supra enunciadas."
*3. [Comentário] A RG decidiu bem.
Estritamente falando verifica-se apenas uma contradição entre a causa de pedir (alegação de que os dois prédios têm proprietários registados distintos) e o pedido de divisão desses prédios entre o autor e o réu. A causa de pedir só se torna ininteligível em função do pedido formulado pelo autor.
Estritamente falando verifica-se apenas uma contradição entre a causa de pedir (alegação de que os dois prédios têm proprietários registados distintos) e o pedido de divisão desses prédios entre o autor e o réu. A causa de pedir só se torna ininteligível em função do pedido formulado pelo autor.
MTS