1. No acórdão da RL de
24/5/2022 (2303/21.1T8VFX.L1-7) apreciou-se um caso interessante com os
seguintes elementos:
– Pouco tempo depois da propositura da acção, o autor desistiu do pedido;
– No dia seguinte ao da desistência, o réu apresentou a contestação na qual deduziu um pedido reconvencional.
A RL foi chamada a
pronunciar-se sobre se, apesar da desistência do pedido, se mantinha a
reconvenção. A RL entendeu que assim não sucedia, argumentando fundamentalmente
que:
– Quando a desistência do pedido ocorre antes da reconvenção não chega a constituir-se a instância reconvencional;
– A aplicação do n.º 2 do art. 286.º do CPC quanto aos efeitos da desistência do pedido na reconvenção pressupõe que a instância reconvencional já se encontre constituída.
O acórdão foi objecto de
uma apreciação crítica (M. Mesquita,
RLJ 152 (2023), 288 ss. (293 ss.)), mas a razão está com a RL.
2. A desistência do
pedido significa o reconhecimento pelo autor de que não tem razão ou, numa
linguagem mais jurídica, o reconhecimento pelo autor de que não existe o
direito que invocou em juízo (art. 285.º, n.º 1, CPC). Não subsistindo o
direito alegado pelo autor, a instância extingue-se (art. 277.º, al. d), CPC)
após o proferimento da sentença homologatória daquela desistência (art. 290.º,
n.º 3, CPC). O momento da extinção da instância reporta-se ao momento da
desistência do pedido.
O art. 286.º, n.º 2, CPC
regula os efeitos da desistência do pedido na reconvenção nos seguintes termos:
"A desistência do pedido é livre mas não prejudica a reconvenção, a não
ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor". Dito
de outra forma: a desistência do pedido só prejudica o pedido reconvencional
quando este seja dependente da procedência do pedido formulado pelo autor. Compreende-se que
assim seja, dado que, como a desistência do pedido equivale a um juízo de
improcedência da acção, não pode subsistir um pedido reconvencional cuja
procedência pressupõe a procedência do pedido do autor. É também por isso que o
art. 266.º, n.º 6, CPC contém, tomando como referência a improcedência do
pedido do autor, uma regra idêntica àquela que consta do art. 286.º, n.º 2,
CPC.
No caso em análise, o
pedido reconvencional respeitante a uma indemnização que o réu pretendia
obter, não era dependente do pedido do autor, antes pressupunha precisamente a
improcedência do pedido inibitório, do pedido de indemnização e do pedido de
retractação formulados pelo autor. Quer isto então dizer que nada obstava a que
se aplicasse o disposto no art. 286.º, n.º 2, CPC a esse caso? A resposta é:
entende-se que não.
3. A reconvenção só é
admissível se ocorrer alguma das situações de conexão objectiva que estão referidas
no art. 266.º, n.º 2, CPC, sendo certo que a exigência desta conexão se destina
precisamente a evitar que o pedido reconvencional não tenha nenhuma relação com
o objecto do processo definido pelo autor. Se assim é,
então o pedido reconvencional nunca é independente desse objecto.
A relação entre o pedido
reconvencional e o objecto inicial do processo (e vice-versa) conduz a uma relação entre a
instância reconvencional e a instância iniciada pelo autor (e, naturalmente,
também vice-versa). Do mesmo modo que o
pedido reconvencional não é independente do objecto inicial do processo, também a instância reconvencional
não é independente da instância iniciada pelo autor.
Nada há de estranho nestas
conclusões. O art. 266.º, n.º 1, CPC estabelece que “o réu pode, em
reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”. É evidente que, para que se
esteja perante uma reconvenção, é necessário que haja um autor, um réu e que este réu deduza um ou vários pedidos contra aquele autor. É exactamente isso que distingue a reconvenção da propositura cruzada de duas acções entre as mesmas partes. O que se verifica neste caso é a pendência de duas
acções: uma proposta por A contra B e outra instaurada por B contra A.
Há assim que concluir que
entre a instância inicial e a instância reconvencional há uma relação genética:
a instância reconvencional pressupõe uma instância iniciada por um demandante
que agora se torna também demandado. Portanto, sem instância inicial não há
instância reconvencional.
4. Posto isto, não é
difícil concluir que, como correctamente entendeu a RL, não estavam reunidas as
condições para a constituição da instância reconvencional. Não interessa que a
desistência do pedido tivesse sido realizada um dia antes da apresentação da contestação
da qual consta o pedido reconvencional; o que releva (juridicamente, não
retoricamente) é que aquela desistência se verificou antes da apresentação da
contestação, ou seja, antes da constituição da instância reconvencional. A
única coisa que se pode dizer é que a situação constitui exemplo da importância
do "segundo jurídico" ou do "segundo lógico" em direito.
Disto também decorre que,
como também acertadamente concluiu a RL, o disposto no art. 286.º, n.º 2, CPC
pressupõe que a reconvenção já foi formulada (e que a instância reconvencional
já se encontra constituída) no momento da desistência do pedido. O preceito não
pode referir-se a uma posterior formulação do pedido reconvencional, ou seja,
não pode reportar-se à situação em que, apesar da desistência do pedido, ainda
assim será possível vir a formular (onde? – talvez se possa perguntar) um
pedido reconvencional que não seja dependente do pedido formulado pelo
autor.
5. Poder-se-ia
argumentar que há boas razões para admitir a dedução de um pedido
reconvencional precisamente baseado na desistência do pedido ocorrida antes da
apresentação da contestação. Depois da desistência do pedido, o réu poderia formular um pedido reconvencional, desde que baseado nessa desistência. Por
exemplo: depois de o autor ter reconhecido, através da desistência do pedido, que não
celebrou nenhum contrato com réu, poder-se-ia dizer que seria justificado
que o réu, em reconvenção, pudesse pedir a restituição do automóvel que tinha
entregado ao autor na previsão da celebração de um futuro negócio. O que impede então a consagração pelo legislador dessa admissibilidade? Exactamente, a extinção da instância inicial
e a impossibilidade de, a partir daí, se constituir uma instância reconvencional.
MTS