"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/07/2023

Consequências da desistência do pedido na reconvenção


1. No acórdão da RL de 24/5/2022 (2303/21.1T8VFX.L1-7) apreciou-se um caso interessante com os seguintes elementos: 

    Pouco tempo depois da propositura da acção, o autor desistiu do pedido;

    No dia seguinte ao da desistência, o réu apresentou a contestação na qual deduziu um pedido reconvencional. 

A RL foi chamada a pronunciar-se sobre se, apesar da desistência do pedido, se mantinha a reconvenção. A RL entendeu que assim não sucedia, argumentando fundamentalmente que:

    Quando a desistência do pedido ocorre antes da reconvenção não chega a constituir-se a instância reconvencional;

    A aplicação do n.º 2 do art. 286.º do CPC quanto aos efeitos da desistência do pedido na reconvenção pressupõe que a instância reconvencional já se encontre constituída.

O acórdão foi objecto de uma apreciação crítica (M. Mesquita, RLJ 152 (2023), 288 ss. (293 ss.)), mas a razão está com a RL.

2. A desistência do pedido significa o reconhecimento pelo autor de que não tem razão ou, numa linguagem mais jurídica, o reconhecimento pelo autor de que não existe o direito que invocou em juízo (art. 285.º, n.º 1, CPC). Não subsistindo o direito alegado pelo autor, a instância extingue-se (art. 277.º, al. d), CPC) após o proferimento da sentença homologatória daquela desistência (art. 290.º, n.º 3, CPC). O momento da extinção da instância reporta-se ao momento da desistência do pedido.

O art. 286.º, n.º 2, CPC regula os efeitos da desistência do pedido na reconvenção nos seguintes termos: "A desistência do pedido é livre mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor". Dito de outra forma: a desistência do pedido só prejudica o pedido reconvencional quando este seja dependente da procedência do pedido formulado pelo autor. Compreende-se que assim seja, dado que, como a desistência do pedido equivale a um juízo de improcedência da acção, não pode subsistir um pedido reconvencional cuja procedência pressupõe a procedência do pedido do autor. É também por isso que o art. 266.º, n.º 6, CPC contém, tomando como referência a improcedência do pedido do autor, uma regra idêntica àquela que consta do art. 286.º, n.º 2, CPC.

No caso em análise, o pedido reconvencional respeitante a uma indemnização que o réu pretendia obter, não era dependente do pedido do autor, antes pressupunha precisamente a improcedência do pedido inibitório, do pedido de indemnização e do pedido de retractação formulados pelo autor. Quer isto então dizer que nada obstava a que se aplicasse o disposto no art. 286.º, n.º 2, CPC a esse caso? A resposta é: entende-se que não.

3. A reconvenção só é admissível se ocorrer alguma das situações de conexão objectiva que estão referidas no art. 266.º, n.º 2, CPC, sendo certo que a exigência desta conexão se destina precisamente a evitar que o pedido reconvencional não tenha nenhuma relação com o objecto do processo definido pelo autor. Se assim é, então o pedido reconvencional nunca é independente desse objecto.

A relação entre o pedido reconvencional e o objecto inicial do processo (e vice-versa) conduz a uma relação entre a instância reconvencional e a instância iniciada pelo autor (e, naturalmente, também vice-versa). Do mesmo modo que o pedido reconvencional não é independente do objecto inicial do processo, também a instância reconvencional não é independente da instância iniciada pelo autor.

Nada há de estranho nestas conclusões. O art. 266.º, n.º 1, CPC estabelece que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”. É evidente que, para que se esteja perante uma reconvenção, é necessário que haja um autor, um réu e que este réu deduza um ou vários pedidos contra aquele autor. É exactamente isso que distingue a reconvenção da propositura cruzada de duas acções entre as mesmas partes. O que se verifica neste caso é a pendência de duas acções: uma proposta por A contra B e outra instaurada por B contra A.

Há assim que concluir que entre a instância inicial e a instância reconvencional há uma relação genética: a instância reconvencional pressupõe uma instância iniciada por um demandante que agora se torna também demandado. Portanto, sem instância inicial não há instância reconvencional.

4. Posto isto, não é difícil concluir que, como correctamente entendeu a RL, não estavam reunidas as condições para a constituição da instância reconvencional. Não interessa que a desistência do pedido tivesse sido realizada um dia antes da apresentação da contestação da qual consta o pedido reconvencional; o que releva (juridicamente, não retoricamente) é que aquela desistência se verificou antes da apresentação da contestação, ou seja, antes da constituição da instância reconvencional. A única coisa que se pode dizer é que a situação constitui exemplo da importância do "segundo jurídico" ou do "segundo lógico" em direito.

Disto também decorre que, como também acertadamente concluiu a RL, o disposto no art. 286.º, n.º 2, CPC pressupõe que a reconvenção já foi formulada (e que a instância reconvencional já se encontra constituída) no momento da desistência do pedido. O preceito não pode referir-se a uma posterior formulação do pedido reconvencional, ou seja, não pode reportar-se à situação em que, apesar da desistência do pedido, ainda assim será possível vir a formular (onde? – talvez se possa perguntar) um pedido reconvencional que não seja dependente do pedido formulado pelo autor. 

5. Poder-se-ia argumentar que há boas razões para admitir a dedução de um pedido reconvencional precisamente baseado na desistência do pedido ocorrida antes da apresentação da contestação. Depois da desistência do pedido, o réu poderia formular um pedido reconvencional, desde que baseado nessa desistência. Por exemplo: depois de o autor ter reconhecido, através da desistência do pedido, que não celebrou nenhum contrato com réu, poder-se-ia dizer que seria justificado que o réu, em reconvenção, pudesse pedir a restituição do automóvel que tinha entregado ao autor na previsão da celebração de um futuro negócio. O que impede então a consagração pelo legislador dessa admissibilidade? Exactamente, a extinção da instância inicial e a impossibilidade de, a partir daí, se constituir uma instância reconvencional.

MTS