"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/07/2023

Jurisprudência 2022 (228)


Deliberações sociais; impugnação;
cônjuge meeiro; legitimidade


1. O sumário de RG 15/12/2022 (1482/22.5T8VCT.G1) é o seguinte:

Para tutela da sua posição jurídica, deve ser reconhecida legitimidade ativa ao ex-cônjuge de sócio, detentor de quota ainda não partilhada, para impugnar deliberações sociais alegadamente tomadas ao arrepio do interesse societário e com o alegado fito exclusivo de prejudicar aquela.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão da latitude de intervenção do cônjuge ou ex-cônjuge do sócio na vida societária, designadamente quanto à legitimidade ativa para impugnação de deliberações sociais, não é questão pacífica e tem sido objeto de vários entendimentos doutrinais e jurisprudenciais.

Dispõe o artº 8º, nº2, do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC), que “Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal.”

Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 4ª edição, 2021, pág. 135, refere que “Apenas é considerado sócio aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade, pelo que a qualidade de sócio não se comunica ao seu cônjuge, mesmo que casados no regime de comunhão geral de bens, devendo esta disposição ser aplicada retroativamente, não se transmitindo sucessoriamente a qualidade de sócio. Não se permite que o cônjuge do sócio tenha o direito de examinar a escrituração e os documentos concernentes às operações sociais, ou ser parte legítima para intentar uma ação especial de inquérito ou ser titular do direito de participação nas deliberações sociais e de votação ou de exercício de cargos sociais. Em caso de inventário subsequente a divórcio, a quota social, considerando o seu valor económico e a qualidade de sócio, pode passar ao cônjuge que não intervinha como sócio, passando este agora a exercer a qualidade de sócio. Por fim, não é necessário o consentimento do cônjuge para o sócio ter legitimidade para onerar e alienar as suas participações sociais.” [...]

Remédio Marques in “Participação dos cônjuges em sociedades”, Código das Sociedades Comerciais Em Comentário, vol. I, 2ª edição, pág. 163, refere que “O nº 2 do preceito em anotação unicamente atinge as situações de comunicabilidade da vertente patrimonial da participação social, em que apenas um dos cônjuges teve intervenção no ato jurídico através do qual a participação se tornou um bem (scilicet, um direito) integrado na massa dos bens comuns.

Se, pelo contrário, ambos intervieram nesse ato, a legitimidade para o exercício dos direitos sociais não é abrangida pelo nº 2 do artº 8º: ela está submetida, isso sim, às regras do CSC para cada tipo de sociedade em particular, ao disposto no artº 222º e ss, no que respeita às sociedades por quotas, e no artigo 303º, para as sociedades anónimas, aplicando-se os artºs 223º e 224º, ex vi do nº4 do artº 303º do mesmo Código. (…)

Como referimos, o cônjuge do sócio ou do acionista, pelo simples facto de o regime de bens lhe reconhecer a comunhão em bens adquiridos onerosamente pelo seu cônjuge (regra nos regimes de comunhão de adquiridos) ou levados por este para o casamento (regra nos regimes de comunhão geral), não adquire a qualidade de sócio, já que essa qualidade de sócio é sempre indissociável da pessoa do titular da respetiva participação social, sendo esta incomunicável, enquanto permanecer encabeçada na pessoa de um deles. A pessoa do cônjuge é estranha à sociedade de que o outro é sócio; o cônjuge do sócio deve ser qualificado, para a maioria dos efeitos, como um estranho ou terceiro relativamente à sociedade. A este propósito, e em tese, com relevância para o caso aqui em discussão, acrescenta ainda o referido autor, em nota de pé de página (36): “Por isso que, entre outros aspetos, não se faz mister notificar o cônjuge do sócio da exclusão do seu cônjuge de uma sociedade (v.g. por falta de cumprimento da obrigação de entrada), mesmo que, na data da exclusão desse sócio, ainda não esteja dissolvido o seu casamento por divórcio. Mas nas relações entre os cônjuges, a perda dessa participação social pode ser levada em conta no cálculo da meação do cônjuge que tenha sido excluído da sociedade (artº 1682º, nº4, do Código Civil), na medida em que possa ser qualificada como uma alienação gratuita de um valor patrimonial que era comum, cuja alienação foi feita exclusivamente à custa do cônjuge do alienante.”

E, concretamente quanto à posição e direitos do ex-cônjuge perante o outro sócio e a sociedade, escreve o mesmo autor (pág. 170): “Questiona-se se a indivisão dos bens subsequente à dissolução do casamento do cônjuge sócio ou acionista envolve uma modificação refletida nas regras respeitantes à administração e ao controlo do exercício dos poderes associativos (v.g. reação contra deliberações sociais anuláveis, deliberações que possam diminuir o valor da quota, oneração ou cessão da própria quota). (…) Há quem defenda a submissão deste problema às regras do artigo 222º e ss, do CSC, no que tange à administração da participação comum após a dissolução do casamento, o que produz importantes consequências, visto que o representante comum desfruta apenas de poderes gerais de administração: desde logo, ao se aplicar o regime da contitularidade da participação social, o representante estará impedido de praticar atos que impliquem a extinção, a alienação ou a oneração da participação social, o aumento de obrigações e a renúncia ou a redução dos direitos de sócio ou acionista. Isto só não seria assim quando a lei, o tribunal ou o outro ex-cônjuge lhe tivesse atribuído poderes de disposição (artºs 223º, nº5 e 224º, 1, in fine, do CSC).

Embora apenas um dos cônjuges possa ser considerado o sócio ou acionista, há quem julgue que a extinção do casamento não poderá impedir a partilha da quota ou da ação. Não lhe aproveita, segundo esta doutrina, apenas o direito a metade do valor da participação social, mas também a adjudicação da quota em espécie. O que significa que o ex-cônjuge não sócio tem o direito de reagir contra todos os atos praticados pelo outro ex-cônjuge (sócio) impeditivos do direito de reclamar a adjudicação (dos títulos representativos) da participação social enquanto bem integrado na massa indivisa dos bens outrora considerados comuns na constância do casamento (v.g. oneração da quota, diminuição do valor da participação através de atos de aumento do capital por entrada de novos sócios ou acionistas, amortização de quota, fusão ou cisão da sociedade).

O que não pode – parece-nos – é pretender-se que, ao arrimo do legítimo interesse do ex-cônjuge meeiro em prevenir ou reagir contra a prática de atos intencionais de desvalorização ou de extinção da quota, este ex-cônjuge possa ser havido como contitular da participação social. Quem assim entende – quem aceita essa contitularidade da participação social após a dissolução do casamento por divórcio – sustenta que os contitulares (os ex-cônjuges) devem exercer os direitos inerentes à participação através de um representante comum; que, estando a correr processo de inventário para partilha de meações, a administração da participação caberá ao cabeça de casal, que será o cônjuge mais velho (artº 79º, nº2, do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março); e que, ainda quando o ex-cônjuge considerado como sócio, nos termos do nº2 do artº 8º do CSC, continue a exercer os respetivos direitos, fá-lo-á apenas como representante comum, ao abrigo do regime de contitularidade da participação social.

O divórcio (ou a separação de pessoas e bens) e a subsequente indivisão de bens até à partilha não envolvem, ao que cremos, uma modificação no que tange à titularidade da participação social, nem a alteração quanto ao conteúdo (e aos limites) dos poderes de exercitar os direitos e deveres inerentes a essa posição jurídica perante a sociedade e os outros sócios; ocorre apenas uma alteração quanto à possibilidade de requerer a partilha da participação social ou de dispor da sua quota ideal no património (tendencialmente) autónomo formado pelos bens que eram comuns. A quota ou participação social, que era bem comum até à dissolução do casamento, não passa a ser fruída em regime de contitularidade ao qual possam ser aplicadas, sem mais, as regras da compropriedade. Esta situação de indivisão do património conjugal, em que a participação social se integra, pelo menos, até à partilha, não pode ser vista como uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens certos e determinados: ao invés, essa contitularidade dos bens (que eram comuns até à cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges) não significa um direito a uma parte ideal de cada um dos bens que compõem essa massa indivisa (aí onde se pode integrar uma participação social no seu aspeto patrimonial), mas, sim, o direito a uma parte ideal dos próprios bens em indivisão.

Na verdade, o ex-cônjuge não celebrou o contrato de sociedade e não foi por ele que a participação social adveio ao casal, circunstância que impede, segundo cremos, a sua qualificação como contitular da participação social no que respeita ao exercício dos direitos e deveres. O ex-cônjuge meeiro não é o sócio; sócio é, como vimos, o outro ex-cônjuge que celebrou o contrato de sociedade ou por quem a participação social adveio posteriormente ao casal. Além de que o ex-cônjuge sócio, a fortiori, também não pode ser o representante comum.

O ex-cônjuge do sócio é, sim, contitular da vertente patrimonial da participação social até, pelo menos, à partilha dos bens comuns onde essa participação social se integrava.”

Referiremos ainda o que a respeito deste artº 8º, nº2, do CSC, refere Pinto Furtado, in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 2009, em anotação ao referido artigo (págs. 338-339): “Como se vê, este princípio parece muito claro: o valor ou vertente patrimonial da posição de sócio é comunicável ao cônjuge; a vertente associativa, política ou corporativa de sócio, não.

Ainda que a sociedade admita, pelo seu estatuto legal ou pelo contrato constitutivo, a transmissibilidade da participação societária a estranhos, só será sócio aquele que tenha pessoalmente celebrado o contrato de sociedade ou por outra forma tenha, por si, adquirido a participação social. O meeiro, enquanto tal, não ingressa no acervo de direitos e deveres corporativos da participação, não é sócio conjuntamente com o seu cônjuge nem, consequentemente contitular da quota, apresentando-se, fundamentalmente, como um estranho à sociedade, em posição análoga do associado à quota.

A doutrina, embora maioritária neste sentido, não tem, contudo, sido unânime a tal respeito.

Na verdade, alguns autores sustentam que, com a comunicação familiar, a inteira participação societária passou a ser de ambos os cônjuges, em comum, numa situação de contitularidade da quota, segundo uns (Neste sentido: Raúl Ventura, Cessão de Quota a Meeiro de Sócio (Coletânea, XIV-4, p. 43); João Espírito Santo, Sociedade e Cônjuges (Estudos em Memória de J. Castro Mendes), 1995, p. 405; Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV – Sociedades Comerciais, Parte Geral, Lisboa, 200, pp. 281), somente análoga à contitularidade, segundo outros (Maria Rita Aranha da Gama Lobo Xavier, Reflexões sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas (Separata ao BFDC, XXXVIII, Suplemento); 1993, pp. 23, nº6, e 77 e Participação social em sociedades por quotas (Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. III, p. 998) – e quem for titular desta será necessariamente sócio.

Em semelhante entendimento serão, pois, sócios tanto o cônjuge contratante ou adquirente como o cônjuge meeiro – e a expressão literal deste nº 2, “será considerado como sócio aquele por quem a participação tenha vindo ao casal”, só valerá, como o próprio normativo o especifica, “nas relações com a sociedade”.

Ao referir-se que, nestas relações, é sócio aquele por quem a participação tenha vindo ao casal, não se quer restringir a qualidade de sócio ao cônjuge adquirente, mas significar que só ele representará a quota perante a sociedade, erigindo-se deste modo num representante comum.

Reconduzindo-o a esta situação, deixa de lhe ser lícito, entre outros casos, como resulta do disposto no artº 223º, nº6, do CSC, extinguir a quota, onerá-la ou transmiti-la, e votar deliberações que imponham aos sócios aumento de obrigações, renúncia ou redução de direitos, sem autorização do meeiro.

Vai, pois, ínsito neste entendimento e, às vezes, é expresso um propósito de acautelar os direitos do cônjuge meeiro em relação à quota – objetivo que é, aliás, pormenorizada e superiormente desenvolvido numa recente revisitação do tema por parte de M. Rita Lobo Xavier.”

Por fim, há que fazer referência à posição que merece o nosso acolhimento, nos termos que infra exporemos.

A propósito deste artº 8º, José Miguel Duarte in “A comunhão dos cônjuges em participação social”, disponível online em portal.oa.pt, refere o seguinte:

“Importa assim ter bem presente a delimitação do âmbito de aplicação do preceito. Naturalmente que ele não se aplica aos casos em que a participação social pertence apenas a um dos cônjuges, ao qual caberá, em exclusivo, a legitimidade para a administrar (artº 1678º, nº1, alínea c), do Código Civil), bem como para aliená-la ou onerá-la (artº 1682º, nº2, do Código Civil).

Também não se aplica o regime dos números 2 e 3 do artº 8º a participações sociais que sejam detidas em contitularidade pelos cônjuges, ou seja, às hipóteses em que as participações sociais sejam adquiridas em compropriedade por cônjuges casados no regime da separação de bens. E mesmo estando os cônjuges casados num regime de comunhão, pode acontecer que a participação social não integre a comunhão conjugal, nomeadamente por ter sido adquirida por ambos os cônjuges antes do casamento em comunhão de bens adquiridos, ou mesmo depois de celebrado o casamento, mas com recursos próprios de cada um dos cônjuges. Pode até dar-se o caso de os cônjuges estarem casados no regime da comunhão geral e não ser comum a participação social adquirida por ambos na constância do matrimónio, em virtude de ter sido doada ou deixada a ambos os cônjuges com “cláusula de incomunicabilidade” (artº 1773º, nº1, alínea a), do Código Civil).

Para estas hipóteses de contitularidade de participações sociais, que não integram a comunhão conjugal aplicar-se-á o regime, bem diverso, da contitularidade de quotas (artigos 222º a 224º do CSC) ou das ações (artº 303º do CSC).

O nº 2 do artº 8º do CSC também não se aplica aos casos em que as participações sociais, embora comuns por força do regime matrimonial de bens, tenham sido adquiridas por um dos cônjuges antes do casamento, celebrado segundo o regime da comunhão geral, ou mesmo depois do casamento, a título gratuito. Porque, nestas hipóteses, a administração da participação social é atribuída exclusivamente ao cônjuge adquirente (artº 1678º, nº2, alínea c), do CC), o qual goza também de plenos poderes de alienação ou oneração (artº 1682º, nº2, do CC). Ora, o nº 2 do artº 8º do CSC pretende regular especialmente os casos em que a administração da participação social poderia também competir ao cônjuge que não a tivesse adquirido, e não também os casos em que, nos termos gerais da lei civil, cabe ao cônjuge que adquiriu todos os poderes de administração e de disposição da participação social. É importante esta ressalva porque, como veremos, o artº 8º do CSC não atribui plenos poderes de administração e de disposição da participação social a favor do cônjuge “considerado como sócio”. Se não excluirmos do âmbito de aplicação do nº 2 do artº 8º, as participações sociais adquiridas por um só dos cônjuges, a título gratuito ou antes de celebrado o casamento, teríamos o efeito de uma norma, destinada a restringir as possibilidades de “intromissão” na vida societária do cônjuge “não considerado como sócio”, vir afinal a permiti-la na parte não restringida, em hipóteses que a lei civil, genericamente, arreda em absoluto um dos cônjuges da administração ou disposição de bens adquiridos apenas pelo consorte.

O regime especialmente consagrado no CSC para a administração de participações sociais detidas pelos cônjuges apenas se aplica aos casos (porventura mais generalizados) em que as mesmas integram a comunhão conjugal de bens, o que desde logo pressupõe que os cônjuges se encontrem casados num regime de comunhão geral ou de adquiridos. (…)

Em conclusão, constata-se que a lei só regula especialmente, no nº 2 do artº 8º, a contitularidade entre cônjuges que decorra dos regimes de comunhão de bens, quando apenas um deles haja outorgado o contrato aquisitivo da participação social, na constância do matrimónio, cuja administração caiba exclusivamente ao cônjuge adquirente, nos termos da lei civil.”

Todavia, este artigo 8º nº 2 limita-se a regular a legitimidade dos cônjuges titulares da participação social nas relações com a sociedade. O mesmo autor refere que “Retira-se do artº 8º do CSC que ambos os cônjuges detêm a qualidade de sócio, em virtude da integração do bem na comunhão conjugal. Pode dizer-se que o “princípio da pessoalidade” da participação social se encontra no artº 8º, nº 2, do CSC, mas no que respeita às relações “do sócio com a sociedade”, e não quanto à titularidade da participação social.”

O citado autor, sob a epígrafe “A legitimidade do cônjuge “não considerado sócio” para impugnar deliberações sociais” faz as seguintes considerações:

“Importa verificar se o “cônjuge não considerado sócio”, nos termos do nº2 do artº 8º do CSC, se deve ou não considerar completamente arredado das “relações com a sociedade” - um estranho ao grémio societário.

Ora, pelo menos, a resposta não pode deixar de ser negativa quanto a deliberações sociais que possam ter por efeito a significativa deterioração do valor ou mesmo a perda da participação social. Pense-se, por exemplo, numa deliberação de amortização de quota, ou num significativo aumento de capital com a entrada de novos sócios – o “cônjuge não considerado sócio nas relações com a sociedade”, que detém afinal um interesse patrimonial na quota igual ao do seu consorte, não pode ser deixado numa situação de completa vulnerabilidade jurídica perante atos lesivos do seu património, só porque o exercício dos direitos de participação na vida societária estão conferidos legalmente ao seu cônjuge.

Maria Rita Lobo Xavier [“Reflexão sobre a Posição do Cônjuge Meeiro em Sociedades por Quotas”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1994, páginas 12 e ss.] entende que, neste tipo de deliberações, cuja execução pode ter um efeito idêntico ao da alienação da quota, o exercício do voto pelo “cônjuge considerado sócio nas relações com a sociedade”, carece do consentimento do seu consorte. Sem esse consentimento, o voto é anulável, podendo o cônjuge não sócio arguir a invalidade do voto e, logicamente, impugnar a deliberação social tomada, no pressuposto de que o voto inválido foi indispensável para a formação da maioria requerida para a aprovação da deliberação.

Mas também não pode deixar de reconhecer-se legitimidade ao “cônjuge não sócio nas relações internas” para impugnar semelhantes deliberações sociais, baseado em qualquer dos fundamentos legais de nulidade ou de anulação de deliberações sociais (Quanto à declaração de nulidade a questão nem merece dúvida, porque a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, nos termos do artº 286º do Código Civil (vide Pinto Furtado, in Deliberações dos Sócios (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais) Almedina, 2003, páginas 357-358).

Assim, se por hipótese, o “cônjuge considerado sócio nas relações internas”, tiver sozinho ou em conluio com outros sócios, votado favoravelmente um aumento de capital social destinado a diluir o valor da quota detida em comum com o seu cônjuge, a fim de prejudicar os direitos deste numa futura partilha, parece-nos evidente que o “cônjuge não considerado sócio nas relações internas” possui toda a legitimidade para impugnar a deliberação abusiva, independentemente da impugnação do voto expresso pelo seu consorte, cuja invalidação, de resto, pode não ser suficiente para impedir a formação da maioria necessária à aprovação da deliberação.

É sabido que, quanto à ação de anulação de deliberações sociais, o CSC atribui legitimidade processual ativa a “qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente” (artº 59º, nº1).

Ora, integrando uma participação social a comunhão de bens do casal, ambos os cônjuges são seus titulares e, nessa medida, sócios. O regime estabelecido no artº 8º em nada modifica a titularidade da participação social. Como não podia deixar de ser, esta mantém-se comum, porque parte integrante do património comum do casal. Simplesmente, nas relações com a sociedade, é ignorada essa contitularidade, ficcionando-se que a participação pertence apenas a um dos cônjuges – como diz a lei, “será considerado como sócio…”. O outro cônjuge também é sócio, naturalmente, mas essa qualidade não é eficaz no âmbito das relações internas.

O artº 8º, nº2, ao estabelecer que será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, o cônjuge que haja subscrito ou adquirido a quota, não afasta a legitimidade do “outro cônjuge” para impugnar deliberações sociais. De facto, as “relações com a sociedade” aqui previstas respeitam ao feixe de direitos e deveres, legais e estatutários, a exercer e a cumprir entre a sociedade e os seus sócios. É, por conseguinte, errado, considerar que entre as “relações do sócio com a sociedade” esteja a propositura de ações de impugnação de deliberações sociais.”

Atendendo à causa de pedir nos presentes autos, não podemos deixar de concordar com a doutrina supra exposta, pelas razões que se procurarão explicar.

A recorrente funda a sua pretensão na circunstância de, alegadamente, os suprimentos serem um expediente para a afastar da sociedade (vide conclusão 16). O seu ex-cônjuge e o irmão deste, também sócio, e na versão da aqui recorrente, terão de comum acordo elaborado um estratagema segundo o qual o ex-cônjuge acabaria por vir a ser afastado da sociedade, à qual regressaria após estar resolvida a partilha com a requerente.

Ora, dentro da perspetiva de análise das diversas soluções em direito plausíveis, não sendo unívoco o entendimento se à aqui recorrente também deve ou não ser reconhecida legitimidade ativa para impugnar as deliberações sociais em causa, haverá que considerar que, em abstrato, poderá haver o preenchimento do disposto no artº 58º, nº1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais. Aliás, no voto contra, a recorrente fez menção expressa de que entendia que a exigência das prestações suplementares não era motivada pela defesa dos interesses societários.

Enfatizando que estamos a analisar a questão estritamente sob o ponto de vista da legitimidade ativa, não fazendo, por isso, quaisquer considerações de mérito, não podemos deixar de considerar que a recorrente, a provar-se a sua versão, poderia ficar irremediavelmente prejudicada. E não se argumente com uma hipotética responsabilização do ex-cônjuge a efetivar em sede de partilha. Desde logo, o hipotético e eventual ressarcimento dependeria sempre da capacidade financeira do responsável, que pode ou não existir. Depois, mesmo que esta exista, e mesmo que se aceite a tese da mera contitularidade da mesma relativamente à quota, a requerente pode ter um qualquer interesse, objetivo ou subjetivo, na manutenção do vínculo para com a sociedade que a quota confere.

A circunstância de o artº 8º, nº 2, do CSC, estatuir que “será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, o cônjuge que haja subscrito ou adquirido a quota” não é impeditivo, em certos casos, da possibilidade de impugnação das deliberações pelo ex-cônjuge do sócio. Como bem refere o autor supra transcrito, “as “relações com a sociedade” aqui previstas respeitam ao feixe de direitos e deveres, legais e estatutários, a exercer e a cumprir entre a sociedade e os seus sócios.”

Entendemos, assim, também, que no caso concreto ao ex-cônjuge do sócio deverá ser reconhecida legitimidade ativa para tutela da sua posição jurídica.

Aliás, a própria sociedade recorrida interiorizou tal direito da agora recorrente, na medida em que convocou a recorrente para participação na assembleia geral de sócios da sociedade, tendo a mesma comparecido e intervindo, votando e emitido declarações de voto. 

Repare-se que a extensão propugnada de legitimidade ativa não configura excecionalidade inédita. A despeito do disposto no artº 59º do CSC, nem por isso, em certos casos, deixa de acontecer que “a legitimidade para propor ação anulatória pode pertencer a não-sócios com direitos de socialidade. É o que sucede com o credor pignoratício de sócio para o qual tenha sido transferido o direito de impugnação (cfr. artº 23º, nº4) e, mais em geral, com o usufrutuário (cfr. artº 23º, nº2) ou o locatário financeiro de participações sociais” – J. M. Coutinho de Abreu, CSC em comentário, vol. I, 2ª edição, pág. 723.

De referir ainda que o acórdão citado pelos recorridos na sua contra-alegação (processo nº 4871/21.... desta Relação), em que intervieram como adjuntos os aqui relator e 1ª adjunta, não se reporta a factualidade idêntica, não estando ali em causa um pedido de anulação de deliberações sociais, com as supra apontadas especificidades.

Por último, importa também deixar claro que as considerações aqui formuladas respeitam exclusivamente à questão atinente à legitimidade ativa e subsequente prosseguimento do processo, à luz das diversas soluções em direito plausíveis, não se fazendo quaisquer considerações sobre uma prognose do mérito da ação e hipotética procedência ou improcedência da mesma. Ou seja, o tribunal recorrido até pode concluir pela improcedência da pretensão da aqui recorrente, mas não com o fundamento da sua ilegitimidade ativa.

Entendemos, assim, que deve ser reconhecida legitimidade ativa à recorrente para impugnação das deliberações sociais tomadas na assembleia geral em que interveio, revogando-se a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos."

[MTS]