"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/07/2023

Jurisprudência 2022 (217)


Julgado de paz;
decisões; recurso*


1. O sumário de RC 9/11/2022 (6/22.9T8SRT.C1) é o seguinte:

I – Os julgados de paz são tribunais que se situam fora da jurisdição comum, regendo-se pelos princípios da simplicidade, da adequação, da informalidade, da oralidade e da absoluta economia processual (art. 2º, nº 2, LOFJP).

II – O artigo 62º da LOFJP contém uma norma especial, que consagra um regime específico de impugnabilidade das decisões proferidas pelos julgados de paz, estabelecendo a sua recorribilidade para o tribunal de comarca.

III – A admissibilidade de recurso para o tribunal da relação, da sentença recursal proferida pelo tribunal de comarca, pela via da aplicação subsidiária do art. 63º da LOFJP, é de rejeitar, por incompatível com os princípios próprios dos julgados de paz.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não se discute aqui que, referindo o artigo 62º da Lei de Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz [---], unicamente a possibilidade de recurso das decisões proferidas pelos Julgados de Paz junto dos tribunais de comarca, a admissibilidade de recurso das decisões por estes proferidas em sede de recurso só pela via da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, prevista no art. 63º, se poderia, eventualmente, alcançar.

As divergências de posições residem em, na decisão do relator, ter sido dado enfase ao facto de a decisão do tribunal de comarca consistir, ela própria, na reapreciação em recurso de uma decisão anterior, enquanto a Apelante se foca na aplicação do artigo 629º do CPC, pensado para o recurso de uma decisão proferida em primeira instância.

Desde já se adiantando que se confirma o juízo de inadmissibilidade do recurso para este tribunal da relação, proferido pelo relator, vai-se, agora, mais longe na explicitação dos motivos que sustentam tal posição [---].

Constituindo os Julgados de Paz uma categoria autónoma de tribunais estaduais de primeira instância, não incluídos na orgânica e na estrutura dos tribunais judiciais, praticam uma justiça alternativa, procurando o acordo e afastando a conceção adversarial do litígio [Mariana França Gouveia, “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, 2011, Almedina, p. 199, 200.].

E, enquanto tal, encontram-se sujeitos a regras próprias, entre as quais se destacam:

- as decisões poderem ser proferidas de acordo com a lei ou a equidade – o juiz não está sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo, se as partes assim o acordarem, decidir segundo juízos de equidade quando valor da ação não exceda metade do valor da alçada do julgado de paz (ou seja, sempre que não exceda 7.500 €) (artigo 26º, ns. 1 e 2, da LJP);

- se for de realizar prova pericial, os autos são remetidos ao tribunal de 1ª instância competente, para a produção da prova necessária, após o que são devolvidos ao julgado de paz para a ação aí prosseguir o julgamento (art. 59º, ns. 3 e 4);

- não há lugar a gravação da prova.

O legislador, no artigo 62º da LJP, fez questão de estabelecer um regime próprio de impugnabilidade das decisões proferidas pelos julgados de paz, afastando-se das regras gerais de impugnação contidas na lei de processo civil:

- facultando o recurso das decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal da 1ª instância (ou seja, em processos de valor superior a 2.500,00 € e independentemente da sucumbência, quando, no processo civil o recurso só é admissível nas ações de valor superior 5.000 € e no caso de sucumbência de valor superior a metade da alçada do tribunal);

- escolhendo como tribunal de recurso, o tribunal de comarca em que seja sediado o julgado de paz:

- prevendo o efeito evolutivo do recurso como regra única.

Tentando compensar o facto de se tratar de tribunais e de um processado que oferecem menos garantias do que as fornecidas pelos tribunais judiciais, ter-se-á pensado ser mais sensato permitir o recurso de tais decisões, recurso que é admitido numa base mais alargada que a prevista na lei de processo civil.

De qualquer modo, ao prever que o recurso é para o tribunal de comarca e não para a relação, faz parecer que eles são qualquer coisa como uma pré ou sub-instância, um minus em relação à jurisdição comum [Mariana França Gouveia, obra citada, p. 204.].

Sendo o artigo 62º uma norma especial, nela não é feita qualquer alusão à (im)possibilidade de recurso, da decisão do proferida pelo tribunal de comarca em sede de recurso, para os tribunais da Relação.

Pela nossa parte, entendemos que, se o legislador quisesse a admissibilidade do recurso destas decisões para o tribunal da Relação, tê-lo-ia dito expressamente, à semelhança do que fez noutro tipos de processos [---].

Contudo, tal posição não é pacífica [Sobre tal questão, cfr., Filipa Reais Santos, “Do julgado de paz para o Tribunal de 1.ª instância: recursos e outras questões” https://elearning.cej.mj.pt/course/view.php?id=1111 ; a favor da admissibilidade do recurso para a Relação, temos: Ac. TRL de 07-07-2016, Proc. n.º2567/15.0T8LSB.L1-2; Ac. TRC de 21-5-2019, Proc. n.º 129/18.9T8MMV.C1; Ac. TRP de 13-2-2017, Proc. n.º 2360/16.2T8VFR.P1; Ac. TRE de 23-2-2017, Proc. n.º 167/15.3T8ADV.E1; Ac. TRG de 12-3-2020, Proc. n.º 149/19.8T8PRG-A.G1; Ac. TRG de 12-3-2020, Proc. n.º 441/18.7T8PRG.G1; contra a admissibilidade de recurso, temos o Acórdão do STJ de 17-10-2017, relatado por Sebastião Póvoas, e Acórdão de 24-09-2020, relatado por Nelson Borges Carneiro, todos disponíveis in www.dgsi.pt.], vindo os tribunais a discutir se aquela omissão significa que a decisão proferida pelo tribunal de comarca não é ela própria suscetível de recurso, ou se, é de recorrer à previsão de aplicação subsidiária do disposto no Código de Processo Civil, “no que não seja incompatível com a presente lei”, nos termos do art. 63º, remetendo-nos para as regras de recorribilidade gerais da sentença previstas nos arts. 629º e ss. do CPC.

A resposta a tal questão tem de buscar-se na natureza dos Julgados de Paz e no modelo que lhes subjaz.

Encontrando-se os julgados de paz fora da jurisdição comum – são tribunais, mas não são judiciais [J.O. Cardona Ferreira, “Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento”, 4ª ed., Almedina, p.42.] (é a Constituição da República Portuguesa que os distingue, referindo-se aos tribunais judiciais no seu nº1 e aos julgados de paz no seu nº2, distinção mantida no artigo 29º da Lei da Organização Judiciária), a recorribilidade das suas decisões para os tribunais judiciais, prevista no artigo 62º, constitui exceção a tal autonomia.

E, segundo Mariana França Gouveia [Obra citada, p. 205.], ou se estabelece a regra da irrecorribilidade (o que estaria de acordo com entendimento da competência alternativa), ou se estabelece a regra da recorribilidade para a Relação, equiparando os Julgados de Paz a tribunais de 1ª instância, ou, sugerindo ainda uma terceira via, inspirada na arbitragem, poder-se-ia- eliminar o recurso e consagrar apenas a possibilidade de requerer a anulação da decisão com fundamentos de forma ou com base na violação da ordem pública.

Também J. Cardona Ferreira [Obra citada, p. 243; em igual sentido, se pronuncia Daniela Santos Costa, in “Julgados de Paz – a paz possível à luz do enquadramento legal”, p.121.] refere a sua estranheza pelo facto de que, tendo as decisões proferidas no julgado de paz o valor de sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância (art. 61º), não fazer sentido que se recorra de tribunais, que são os julgados de Paz, para uma 1ª instância, quando se devia recorrer para a Relação.

De qualquer modo, o que não nos parece defensável é que, num processo que se rege pelos princípios da simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual, (artigo 2º, nº2, da LOFJP), optando o legislador pela possibilidade de recurso da decisão nele proferida para o tribunal de comarca, se possa depois, afastando-nos deste regime excecional em que se mostra pensado, vir a sujeitar a decisão proferida em sede recursal, ao regime de recorribilidade das decisões proferidas pelo tribunal de comarca enquanto tribunal de 1ª instância.

Como se afirma no Acórdão do STJ de 17-10-2017, relatado por Sebastião Póvoas, instituindo o art. 63º da Lei nº 78/2001, o Código de Processo Civil como direito subsidiário, devem excluir-se do regime adjetivo deste Código (e, consequentemente do sistema de recursos), entre outros, os dispositivos contrários com a Lei de Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz, entre os quais se conta a possibilidade de um segundo grau de recurso.

Ou, nas palavras de Cardona Ferreira [Obra citada, p. 248.], a eventual aplicabilidade de quaisquer regras do PCP [sic] tem de ser compatível com os princípios próprios dos julgados de paz, refletidos no seu especial ordenamento tramitacional.

Como último argumento, no sentido da total inadequação da existência de um recurso para o tribunal da Relação, ou seja, de uma segunda instância de recurso, temos a circunstância de que a doutrina, e em especial aqueles autores que mais se têm debruçado sobre os julgados de paz e outros meios de justiça alterativa [Como Mariana França Gouveia e J.O. Cardona Ferreira.], nem sequer coloca[m] ou discute[m] tal hipótese, sendo questão unicamente debatida em sede jurisprudencial, perante os recursos que em concreto lhe são apresentados.

Concluindo, é de confirmar a decisão do relator de que não é admissível recurso para o tribunal da relação da sentença proferida pelo tribunal de comarca em recurso interposto de decisão proferida em julgado de paz."

*3. [Comentário] O problema tratado no acórdão não tem uma resposta inequívoca.

Propende-se, no entanto, para aceitar a admissibilidade do recurso de apelação, se estiverem preenchidas as condições estabelecidas no art. 629.º, n.º 1, CPC. A favor desta orientação pode invocar-se que a regra é a impugnabilidade das decisões através de recurso, necessitando a exclusão da recorribilidade de uma decisão de uma expressa determinação legal.

MTS