"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/07/2023

Jurisprudência 2022 (220)


Reg. 650/2012;
residência habitual; competência internacional

1. O sumário de RG 17/11/2022 (4625/21.2T8GMR.G2) é o seguinte:

I - Em matéria de competência internacional estabelece o artº 4º do Regulamento (UE) Nº 650/2012 que são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.

II – Pretende-se, todavia, uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida.

III - A opção do legislador comunitário foi a de conferir competência internacional aos órgãos do país com o qual o inventariado tivesse mais estreitas ligações (critério da residência habitual), mas numa solução de efectiva e real ligação, afastando atribuições de competência meramente formais, decorrentes de residências habituais aparentes, sem qualquer apego ao Estado em causa.

IV - No critério amplo e baseado na ligação emotiva e material à sua terra natal, adoptado pelo Regulamento, poderemos dizer que a maioria dos portugueses emigrados continua, para efeitos de atribuição de competência, a ter residência habitual em Portugal.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No conhecimento do recurso, a factualidade a ter em conta é a que consta do relatório supra, passando-se, de seguida, à respectiva subsunção jurídica.

Reza o artº 72º- A do CPC que:

1 - Em matéria sucessória é competente o tribunal do lugar da abertura da sucessão.
2 - Se, no momento da sua morte, o autor da sucessão não tiver residência habitual em território português, é competente o tribunal em cuja circunscrição esse autor teve a sua última residência habitual em território nacional.
3 - Se o tribunal competente não puder ser determinado com base no disposto nos números anteriores, mas o autor da sucessão tiver nacionalidade portuguesa ou houver bens situados em Portugal, o tribunal competente é: a) Havendo imóveis, o tribunal da situação dos bens, ou, situando-se os imóveis em circunscrições diferentes, o tribunal da situação do maior número; ou b) Não havendo imóveis, o tribunal de Lisboa.

Ao mesmo tempo, estatui o artº 2031º do Código Civil que a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele.

Sabemos que o artº 72º-A citado nasce de alteração normativa trazida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro e «Resulta dos termos desta disposição a preocupação (que se espera ter sido bem sucedida no resultado) de, com a adoção destas soluções, não ser contrariada qualquer disposição do Regulamento (EV) 650/12 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4/7/2012, relativo à competência, à Lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria das sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu», afirmação que se colhe da consulta do texto in https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=8LotKRQOhKg=&portalid=30.

Como se pode ler in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil», de Teixeira de Sousa e outros, Almedina, 2020, pag.16, «Atendendo ao primado do direito europeu sobre o direito dos Estados-Membros (cf. artº 8º, nº4, CRP) e porque as regras sobre a competência que constam do Reg. 650/12 não são dotadas de dupla funcionalidade (isto é, não determinam, ao mesmo tempo a competência internacional e a competência territorial), não podia ter sido outra a preocupação do Grupo de Trabalho na elaboração da proposta relativa ao artº 72º-A senão a de construir um regime que pudesse concretizar, no plano da competência territorial as várias hipóteses (ou, pelo menos, as hipóteses mais frequentes) que constam do Reg 650/12 quanto à atribuição de competência internacional».

Assim é, como se citou, porque de acordo com o artº 8º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

E, por outro lado, o artº 59º do Código de Processo Civil determina que sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.

Em primeira linha há, então, que buscar as normas do direito europeu com vista a apurar a competência internacional dos nossos tribunais, no caso o Regulamento (UE) Nº 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, aplicável a partir de 17 de agosto de 2015, com exceção dos artigos 77º e 78º que são aplicáveis a partir de 16 de janeiro de 2014 e dos artigos 79º, 80º e 81º, que são aplicáveis a partir de 5 de julho de 2012.

Tenha-se presente que a inventariada faleceu a 19 de Maio de 2021.

Dita o seu artº 1º, nº 1, que «O presente regulamento é aplicável às sucessões por morte», entendendo-se por «Sucessão», a sucessão por morte, abrangendo qualquer forma de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, quer se trate de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, quer de uma transferência por sucessão sem testamento, agora por força do artº 3º, nº1, a).

Nas considerações efectuadas preliminarmente no Regulamento pode ler-se que «O Conselho Europeu, reunido em Bruxelas em 4 e 5 de novembro de 2004, aprovou um novo programa intitulado «Programa da Haia: reforço da liberdade, da segurança e da justiça na União Europeia». Esse programa sublinha a necessidade de adotar um diploma legal em matéria de sucessões que trate, nomeadamente, da questão dos conflitos de leis, da competência judiciária, do reconhecimento mútuo e da execução de decisões neste domínio e do certificado sucessório europeu».

Ali se acrescenta, ainda, que «Para alcançar aqueles objetivos, o presente regulamento deverá agrupar as disposições sobre a competência judiciária, a lei aplicável, o reconhecimento ou, consoante o caso, a aceitação, a executoriedade e a execução das decisões, dos atos autênticos e das transações judiciais, bem como sobre a criação do certificado sucessório europeu».

E, nessa decorrência, é possível extrair as regras referentes à competência no Capítulo II (artºs 4º a 19ª) e, no Capítulo III (artºs 20º a 38º), as normas reportadas à lei aplicável.

No domínio da última, temos pacificamente adquirido que na sucessão por morte da inventariada dos autos, regerá a portuguesa como lei aplicável, posto que assim a escolheu, com consignação expressa no testamento que outorgou em 22.11.2016, ao abrigo, aliás, do artº 22º, nº1, do Regulamento, nos termos do qual «Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito».

O inconformismo da recorrente radica na decisão sobre a competência internacional do tribunal, sendo a sua interpretação a de que, quando foi feita a escolha da lei portuguesa, quis a inventariada incluir nessa escolha também o foro nacional, não sendo aplicável a previsão contida no artº 5º, cujo âmbito é, ainda na sua óptica, o de os herdeiros pretenderem, por acordo, eleger o foro de determinada comarca, em Portugal, que não a territorialmente competente, além de terem como prevalecente a norma especial do artº 22º sobre a regra geral do artº 21º.

Todavia, parece olvidar por inteiro a sistematização consagrada no Regulamento a que temos vindo a aludir, pugnando por aplicar, no domínio da competência, norma respeitante à lei substantiva da partilha, quando, justamente, umas e outras têm assento em capítulos legais incontestavelmente autónomos, como se viu.

Não oferece dúvida a afirmação da Srª Juiz a quo quando disse anteriormente nos autos que uma coisa é a lei aplicável ao inventário, outra, bem diversa, é a escolha do foro para o tramitar. Este juízo mantém-se válido e particularmente pertinente no que agora releva.

«As regras de competência do presente regulamento podem, em alguns casos, conduzir a uma situação em que o órgão jurisdicional competente para decidir sobre a sucessão não aplique o direito interno», lê-se no considerando 43 do próprio Regulamento – sublinhado nosso.

A escolha do foro não pode subtrair-se às normas consagradas no capítulo II, artºs 4º e seguintes deste diploma legal.

Assim, não poderá arredar-se do pleito que, em matéria de competência internacional estabelece o último normativo citado que são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito. O critério é pois, o da residência habitual.

A matéria tem, porém, especial acutilância no que respeita ao que deverá entender-se por “residência habitual” em sede de Regulamento.

No seu considerando 23, de modo muito expressivo, consigna-se que «Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito» - sublinhado nosso.

E, também aí logo se acrescenta que «A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento» - idem.

A opção do legislador comunitário foi, assim, a de conferir competência internacional aos órgãos do país com o qual o inventariado tivesse mais estreitas ligações (critério da residência habitual), mas numa solução de efectiva ligação real, afastando atribuições de competência meramente formais, decorrentes de residências habituais aparentes, sem qualquer apego ao Estado em causa.

E, ciente até da dificuldade que isso possa trazer, fez constar no Considerando 24 que «Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais».

Aqui chegados e presentes todos estes considerandos, pode, desde logo, afirmar-se que sendo, o nosso, um país com larga tradição de emigração, iniciada em força para países europeus nos anos sessenta, é do conhecimento comum, que, por via de regra, os cidadãos que assim fizeram mantêm uma ligação muito forte com o seu país de origem, tudo fazendo para construir em Portugal um património, mantendo estreitas as ligações às suas terras, aqui passando as suas férias e, quase sempre, almejando terminar aqui os seus dias. Na menor das situações, querem aqui ser sepultados.

No critério amplo e baseado na ligação emotiva e material à sua terra natal, adoptado pelo Regulamento, poderemos dizer que a maioria deles continua, para efeitos de atribuição de competência, a ter residência habitual em Portugal.

No caso da inventariada, isso parece até evidenciar-se pelo cuidado que teve em testamentar, com menção expressa de escolha da lei portuguesa para efeitos sucessórios.

Por tudo isto, apresenta-se, para nós, como prematura a conclusão sobre a incompetência internacional dos tribunais portugueses, como julgamos também que nos deparamos perante situação a demandar um apuramento mais minucioso das circunstâncias da vida da inventariada com vista a aquilatar da sua verdadeira residência habitual, ao abrigo do conceito adoptado no Regulamento (UE) Nº 650/2012.

Assim, deverá o tribunal a quo convidar a requerente do inventário a vir aos autos narrar os factos que permitam concluir onde tinha a inventariada a sua residência habitual, de acordo com o explanado e, em face do que vier a ser apurado, proferir nova decisão sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para os termos do inventário."

[MTS]