"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/07/2023

Jurisprudência 2022 (227)


Administrador da insolvência;
morte; habilitação de herdeiros*


1. O sumário de RG 15/12/2022 (952/12.8TBEPS-AJ.G1) é o seguinte:

Falecendo o administrador da insolvência na pendência do recurso da sentença proferida no apenso de prestação de contas, há lugar à habilitação dos respectivos herdeiros enquanto sucessores daquele nas relações jurídicas de carácter patrimonial inerentes ao cargo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como vimos, na decisão impugnada indeferiu-se habilitação dos herdeiros do administrador judicial com o fundamento do mesmo não ser parte processual “per se”, mas antes um órgão da insolvência, cujo papel é de coadjuvação do tribunal nas suas várias competências, não se podendo confundir com uma parte.

É verdade que o administrador da judicial é um órgão da insolvência que é nomeado, destituído ou substituído pelo juiz e o exercício das suas funções encontra-se regulado nos artigos 52º a 66º do CIRE e também no respectivo Estatuto aprovado pela Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, com alterações introduzidas pela lei 17/2017 de 16.6, pelo D.L.52/20929 de 17.4 e pela Lei 9/2022 de 11.1 (doravante EAJ).

E como órgão da insolvência que coadjuva o tribunal, desempenhando várias funções, está dotado de um conjunto de direitos e deveres.

De acordo com o art. 12º do EAJ os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes, e por essa razão não se permite o acesso à atividade de pessoa considerada não idónea (cfr. art.º 5º do EAJ), devendo também, no exercício das suas funções, atuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer atos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados, e conforme o art. 4º do EAJ devem invocar incompatibilidades, impedimentos e suspeições, quando se verifiquem, e só devem aceitar as nomeações efetuadas pelo juiz caso disponham dos meios necessários para o efetivo acompanhamento dos processos em que são nomeados, sendo que o incumprimento dos seus deveres pode dar lugar a responsabilidade civil disciplinar, contraordenacional e (cfr. art. 59º do CIRE e arts 12º e17º a 20º do EAJ).

Pelo exercício das suas funções, nos termos do art. 60º do CIRE, o administrador da insolvência tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.

Findas tais funções, se antes tal não lhe for determinado pelo juiz, deve o administrador da insolvência apresentar as contas relativas ao exercício do cargo, nos termos previstos no art. 62º e segs do CIRE.

Ora, no presente caso, o administrador da insolvência, finda a liquidação dos bens apreendidos, apresentou as respectivas contas, sendo que, como consta na decisão supra transcrita, com excepção das verbas relativas a despesas com honorários forenses, no valor de global de € 50.427,33, tais contas foram julgadas boas.

O administrador da insolvência, inconformado com tal decisão que lhe negou o direito ao reembolso daquelas despesas, interpôs recurso da respectiva sentença. E se no processo de insolvência em geral o administrador da insolvência é um órgão coadjuvante do tribunal e não parte, neste apenso de prestação de contas tem indubitavelmente um interesse directo, é titular um interesse próprio e, por isso, deve ser considerado parte.

E foi durante a pendência do recurso da sentença de prestação de contas que veio a falecer, em .../.../2021.

Trata-se de uma situação incomum que a lei não prevê e, por isso, temos de socorrer-nos da analogia para integrar tal lacuna, nos termos do art.10º do C.Civil, procurar-nos a solução que decorre do espírito do sistema, já que não vislumbramos caso verdadeiramente análogo.

Com o decesso do administrador judicial em funções, não há dúvidas de para o exercício do cargo tem de ser nomeado outro administrador, como já foi. Mas terão cessado todos os efeitos jurídicos decorrentes do exercício de funções pelo falecido?

Como sucede, noutras relações jurídicas com intuitus personae, com a morte extinguem-se os direitos e obrigações de carácter estritamente pessoal. Os direitos e obrigações de natureza patrimonial transmitem-se por via sucessória, como decorre do art. 2025º do C.Civil.

Ora, no recurso pendente estão em discussão efeitos patrimoniais conexos com as funções exercidas pelo falecido administrador que, em nosso modesto ver, se transmitem para os seus herdeiros. Por conseguinte, o recurso deve prosseguir os seus termos e para tal é necessária a habilitação dos respectivos herdeiros, como foi determinado no despacho de 3.12.2021, que transitou em julgado.

É certo que o art. 357º do CPCivil preceitua que a habilitação pode ter lugar perante os tribunais superiores, incumbindo o julgamento ao relator, que pode determinar que o processo baixe com o apenso à 1ª instância, se houver prova lugar a prova testemunhal a produzir, para aí ser julgado o incidente.

No presente caso, tendo a habilitação sido requerida quando o recurso se encontrava na 1ª instância para correcção de deficiências, entendemos que, ao abrigo do princípio de adequação processual, nada impedia que o incidente aí fosse apresentado e julgado.

Porém, como já dissemos, no apenso de prestação de contas o administrador da insolvência é parte interessada e os efeitos patrimoniais decorrentes do exercício do cargo transmitem-se para os respectivos herdeiros, falecendo a argumentação do tribunal recorrido para o indeferimento da habilitação requerida.

Destarte, impõe-se a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida. Assim, tendo em conta a ausência de contestação e o teor da escritura de habilitação notarial de herdeiros junta com o requerimento inicial, verificando-se que o administrador da insolvência AA faleceu em .../.../2021, deixando como únicos e universais herdeiros, a sua mulher, DD, e os filhos, EE e FF, declaram-se estes habilitados, única e exclusivamente, para em seu lugar prosseguirem a instância recursiva relativa à sentença proferida no apenso de prestação de contas (Apenso AI).

*3. [Comentário] Aceita-se como boa a orientação da RG, atendendo a que, no caso concreto, o recurso respeitava a honorários devidos ao administrador da insolvência. A solução não pode ser, por isso, generalizada.

MTS