"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/07/2023

Jurisprudência 2022 (232)


Nexo de causalidade;
presunções judiciais


1. O sumário de RL 20/12/2022 (17760/20.5T8LSB.L1-7) é o seguinte:

I. Nada obsta a que, em sede de recurso de apelação, a apelante estribe a pretensão de alteração da matéria de facto em presunções judiciais formuladas a partir de factos-base que, por sua vez, integrem o elenco dos factos tidos como provados pela primeira instância, salvo as limitações probatórias decorrentes dos Artigos 393º a 395º do Código Civil.

II. Nos termos do Artigo 7º do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8.4., no âmbito do exercício do direito de regresso, o vendedor apenas pode dirigir-se à pessoa de quem adquiriu o bem, não podendo responsabilizar diretamente o produtor.

III. No âmbito da responsabilidade civil do produtor, compete ao lesado o ónus da prova do defeito do produto, do dano e do nexo de causalidade entre o defeito e o dano.

IV. A Autora/apelante não pode alterar a causa de pedir no âmbito do recurso de apelação, invocando agora o incumprimento de um dever imposto pela garantia do fabricante, ao não efetuar um diagnóstico atempado e adequado na sequência do alerta luminoso que foi denunciado, duas vezes, pelo adquirente do veículo.

V. No âmbito da prestação da garantia voluntária podem ser impostas condições, nomeadamente a realização atempada da manutenção nos intervalos de revisão especificados pela marca, bem como de que os materiais utilizados [devam] [cumprir as especificações técnicas da marca.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A apelante pretende que o facto presumido/factum probandum (“A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico”), decorra de outros factos-indiciários (presunção polibásica), a saber:

6. Em Maio de 2019, o Dr. PT – então possuidor do veículo - deslocou-se ao concessionário e oficina reparadora autorizada da Ré na cidade do Porto (e doravante aqui designada por “JJ”), devido à luz de motor do veículo que se encontrava acesa, assinalando uma qualquer avaria;
9. Alguns dias passados, em viagem do Porto para Lisboa, a referida luz de motor voltou a acender.
10. De imediato, o Dr. PT contactou a JJ através de chamada telefónica, tendo-lhe sido dito pelos profissionais que poderia prosseguir a viagem.
11. Aquando da viagem de regresso para o Porto, a viatura começou a perder força e o seu funcionamento tornou-se irregular e deficiente.
12. Por isso, o Dr. PT solicitou de imediato a respetiva assistência em viagem do seguro do veículo, tendo este sido deslocado através de pronto-socorro e entregue na JJ do Porto em 20/05/2019.
13. A JJ comunica ao Dr. PT que existia uma avaria no motor do seu veículo e que, em concreto, os cilindros n.º 2 e n.º 7 estavam danificados.

Para que se possa considerar provado um facto por presunção judicial, é necessário que entre o facto-indiciário e o facto presumido ocorra um nexo lógico atendível e revelante.

Quanto à densificação de tal nexo lógico, conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., pp. 57-58 e 64:

«Resulta do que fica dito que, nos casos reconduzíveis ao id quod plerumque accidit, a inferência entre o facto-base e o facto presumido baseia-se numa regra geral, sendo a relação entre os dois factos de tal ordem que a enunciação do facto-base torna impossível a falsidade da enunciação do segundo facto (presumido) mas não implica necessariamente a verdade deste. Dito de outra forma, na prova indiciária a relação entre os dois factos é tal que ao primeiro se segue, normalmente, o segundo mas o inverso não é verdade, ou seja, a prova do segundo faculta uma simples probabilidade do primeiro. [---] A relação que existe é de implicação condicional, no âmbito da qual o indício assume a posição de um consequente do qual se pode verificar a possibilidade de remontar a um antecedente. Atenta a natureza eminentemente lógica da relação de implicação condicional entre o antecedente e o consequente, não tem particular relevância a relação temporal entre o antecedente e o consequente (cf. a classificação dos indícios sob 4.). [---]

A inferência presuntiva baseada no id quod plerumque accidit, mais do que comportar uma relação de necessidade absoluta entre os dois factos, limita-se a afirmar que tal relação ocorre na maior parte dos casos conhecidos, ou seja, é uma relação que se pode considerar normal ou frequente. [---] A máxima de experiência pertinente no caso fornece uma justificação suficiente para se concluir que existe um nexo lógico entre a ocorrência do facto conhecido (factum probans) e o facto desconhecido (factum probandum). Colocado perante a prova do factum probans, o juiz – com recurso aos critérios interpretativos do mesmo propiciados pela regra da experiência pertinente e atentas as circunstâncias do caso – aquilata se o mesmo proporciona um suporte racional suficiente de molde a que possa afirmar-se a existência do factum probandum para os fins daquele processo.

O grau de probabilidade que pode ser atribuído ao factum probandum é sempre relativo ao material cognoscitivo disponível. Este grau de probabilidade que pode ser atribuído a uma certa asserção afere-se não tanto na sua apreciação de per si mas mais pelo seu cotejo com outras proposições contrárias e/ou incompatíveis relativas ao mesmo factum probandum. A força probante do indício reside na razão direta da frequência do factum probandum face àquele e na razão inversa da multiplicidade e da frequência dos factos contrários ao indício. [---] Quanto maior for a conexão lógica que o juiz encontre entre o factum probans e o factum probandum maior será a força probante daquele. A certeza ínsita à formulação da convicção judicial significa, neste circunspecto, que o juiz assumiu uma hipótese como a mais atendível por ser a que apresenta maior probabilidade possível naquela concreta situação probatória [---], excluindo – do mesmo passo – outras alternativas verosímeis. (…)

O nexo lógico não é um facto mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima de experiência, tida por aplicável no caso, segundo a qual perante a ocorrência de um facto gera-se uma probabilidade qualificada de que se tenha produzido outro. Assim, a parte que recorre a uma presunção judicial não tem que provar o nexo lógico mas tem que lograr convencer o juiz da existência e aplicabilidade ao caso de uma máxima de experiência. O que é objeto de prova é a máxima de experiência e não o nexo lógico.»

Revertendo ao caso em apreço, há que notar que a primeira matrícula do veículo data de 1.7.2016 (facto 3), tendo sido adquirida no estado de usada pela apelante em 27.3.2019, ou seja, mediaram 999 dias entre a primeira matrícula do veículo e a data da sua aquisição pela autora. Subsequentemente, em 29.3.2019, a autora vendeu o veículo a uma sociedade comercial.

Durante este longo hiato temporal, desconhece-se a utilização efetiva que foi dada ao veículo em causa, se cuidada e com observância das recomendações técnicas de manutenção ou se, pelo contrário, o mesmo foi objeto de uma utilização descuidada ou negligente.

Deste modo, o longo hiato temporal em causa não abona – muito pelo contrário – a configuração de uma regra de experiência segundo a qual, face aos factos provados sob 6, 9 a 13, haja que considerar que exista uma probabilidade qualificada de a avaria se dever a um defeito de fabrico e não a fatores que tenham a ver com o uso que foi dado ao veículo durante 999 dias. Uma estreita proximidade temporal entre a deteção da avaria e o fabrico da viatura poderia sedimentar a formulação de tal nexo lógico enquanto uma maior dilação temporal, como é o caso, infirma a formulação desse nexo lógico. Com efeito, havendo um defeito de fabrico de tal índole que cause danos nos cilindros, o mesmo tenderia a revelar-se de forma mais prematura, não demorando mais de mil dias a revelar-se.

Acresce que a avaria nos cilindros tem como uma das causas mais conhecidas a falta de lubrificação do motor, sendo esta – sim – uma situação de ocorrência frequente. Ou seja, é formulável uma regra de experiência técnica no sentido de que a falta de lubrificação do motor pode causar danos no motor, designadamente nos cilindros, como foi o caso.

A título exemplificativo:

§ «Quando se fala num motor gripado há no mínimo duas peças, uma móvel e outra fixa (as mais habituais são o pistão e a camisa que cobre o cilindro ou os casquilhos e a cambota), que se fundiram impedindo o funcionamento de toda a engrenagem. Todo este processo advém de uma falha de um elemento muito simples: o óleo. Se a lubrificação faltar ou se o óleo já não tiver a viscosidade necessária para manter as peças lubrificadas, a fricção das peças vai gerar calor extremo que resulta no motor gripado» (https://www.standvirtual.com/blog/mecanica-automovel-conheca-5-piores-avarias/?doing_wp_cron=1669658665.6858179569244384765625 )

§ «(…) a falta de lubrificação força o atrito dos pistões com os cilindros, entre outras partes metálicas. Com as altas temperaturas, essas peças podem acabar ocasionando no motor fundido. Dessa forma, faça trocas periódicas para evitar que o óleo envelheça e forme borras no motor ao longo do tempo» ( https://www.portalautoshopping.com.br/blog/motor-fundido/ ).
 
Em suma, inexiste regra de experiência técnica que estribe a pretendida formulação de um nexo lógico entre os factos provados sob 6, 9 a 13 e o facto não provado sob 2 e, sobretudo, o longo tempo decorrido entre o fabrico do veículo e a deteção da avaria infirma completamente a formulação de tal nexo lógico."

[MTS]