"Inalterado o quadro fáctico da causa, tal como traçado na sentença recorrida, importa agora saber se, ainda assim, incorreu tal sentença em erro de julgamento de direito, de molde a dever julgar-se improcedente a ação e procedente a reconvenção, como pretende o Apelante.
E deve começar por dizer-se, no plano jurídico, que aquele mostra ter alguma razão quanto a uma das críticas que apresenta.
Com efeito, concorda-se com o Recorrente quando afirma (cfr. conclusões 1.ª a 9.ª) que os AA. se apresentaram nos autos a litigar «na qualidade de únicos e universais herdeiros da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE FF» (cfr. a identificação dos demandantes na sua petição, a fls. 5 do processo físico), alegando taxativamente que aquela herança aberta e indivisa e o co-herdeiro (1.º A.) AA «são ou únicos donos e possuidores» dos elementos imobiliários em discussão (cfr., designadamente, os art.ºs 1.º e 49.º da petição).
É certo que no petitório oferecido na petição inicial – e outras versões posteriores houve, como já visto, dos pedidos – vem aludido, desde logo, de forma genérica, que deve o R. ser condenado a reconhecer que os AA. «são donos e legítimos possuidores», o que poderia fazer inculcar a ideia de um reporte aos cinco AA. pessoas singulares identificadas na parte inicial da petição, como se agissem todos por si – e para si, não em função da herança ilíquida e indivisa, de que são herdeiros –, como parece ter sido entendido no dispositivo da sentença, com enfoque exclusivo nesses cinco AA. e sem qualquer menção à dita herança ilíquida e indivisa.
Porém, mesmo atendendo aos pedidos originários da ação, constata-se que no pedido principal não são mencionados os nomes de cada um desses cinco AA. (surgindo apenas a genérica referência a «Os autores»), enquanto no rol dos pedidos subsidiários se começa por dizer, de forma esclarecedora, que «Se não se entender que o autor AA e a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de FF […] adquiriram por usucapião o prédio descrito no artigo 1º desta petição (…)».
Quer dizer, toda a causa de pedir é direcionada para um invocado direito dominial adquirido por via de usucapião pelo A. AA e pela Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de FF, compreendendo-se a intervenção dos demais AA. para assegurar a legitimidade ativa no concernente a uma herança aberta e indivisa, destituída de personalidade judiciária.
E da economia dos pedidos (mormente os principais, aqueles que aqui importam), em conjugação com tal causa de pedir, também tem de retirar-se, em adequada e situada/contextualizada interpretação, que a pretensão se dirige ao dito direito dominial, adquirido por via de usucapião, pelo A. AA e pela Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de FF (seu cônjuge falecido).
Com efeito, não há dúvidas quanto a ter sido claramente alegado na petição que:
- aquela herança ilíquida e indivisa e o co-herdeiro AA – o qual foi casado com FF, falecida em .../.../2004, de que são filhos os demais AA. – são os únicos donos e possuidores do mencionado prédio (art.º 1.º); e
- a dita herança ilíquida e indivisa e o A. AA são os único e exclusivos donos do mencionado prédio, adquirido por usucapião (art.º 49.º).
Assim sendo, estando os 2.º a 5.º AA. na ação para assegurar a legitimidade ativa (no que tange à herança), tem de concordar-se com o Recorrente quando alude à prática dos atos de posse em nome da herança, não podendo tais AA. (com exclusão do 1.º) pedir para si próprios o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel objeto do litígio, mas pedir, enquanto herdeiros da referida herança ilíquida e indivisa, o reconhecimento, a favor desta, que não deles (à exceção do dito 1.º A./viúvo), do direito de propriedade sobre o prédio em questão.
Nesta senda, concorda-se ainda que a comunhão hereditária não se confunde com a compropriedade, já que os herdeiros não são titulares simultâneos da mesma coisa, mas antes titulares de um direito à herança, como universalidade, não se podendo considerar, à priori, sobre qual ou quais dos bens em concreto o respetivo direito ficará a pertencer, não comportando, assim, uma declaração de propriedade sobre uma realidade ainda não determinada e, bem assim, que da aceitação sucessória apenas decorre para cada um dos herdeiros chamados à herança uma quota hereditária (cfr. conclusões 4.ª e 5.ª do Apelante).
Termos em que, até à partilha, «aos herdeiros, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota, que sequer alegam) sobre cada ou qualquer um dos bens que integram o património hereditário» (conclusão 6.ª), sendo eles, enquanto tais, «titulares, tão somente, do direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota de cada um dos elementos a partilhar» (conclusão 7.ª), só depois da partilha podendo, cada herdeiro, «ficar a ser proprietário, ou comproprietário, de determinado bem da herança» (conclusão 8.ª).
Mas se «Daqui, resulta, por si só, o falecimento do primeiro pressuposto para os autores poderem ser reconhecidos como comproprietários do prédio objecto da acção (ou, singelamente, proprietários, na terminologia da sentença)», tal só vale para os ditos 2.º a 5.º AA., que intervêm apenas na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa, com vista a assegurar a legitimidade ativa nesta parte.
Na verdade, quanto à herança aberta e indivisa, o art.º 2091.º, n.º 1, do CCiv. estabelece a regra de que «os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros», esclarecendo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 152.) que se trata aqui «de casos de litisconsórcio necessário, para os quais o cabeça-de-casal já não tem legitimidade, e em que a falta de qualquer dos herdeiros interessados na acção é fundamento de ilegitimidade de qualquer dos intervenientes».
Com efeito, o art.º 6.º do CPCiv., na versão anterior à conferida pelo DLei n.º 180/96, de 25-09, dispunha apenas que a herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária.
Nesta expressão inicial – “a herança cujo titular ainda não esteja determinado” – podia facilmente incluir-se a herança jacente e a herança indivisa, pelo que se entendia que esta última tinha personalidade judiciária, podendo, por isso, estar, por si própria (obviamente, através de quem a representasse), em juízo, no lado ativo ou passivo da instância (como parte na causa) (---).
Porém, o art.º 6.º, n.º 1, al.ª a), do CPCiv., na versão introduzida pelo DLei n.º 180/96, de 25-09, passou a preceituar que têm personalidade judiciária a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado (---).
Sabida a diferença entre herança jacente (aberta mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado) e herança aberta e indivisa (já objeto de aceitação, expressa ou tácita), logo se verificou que esta nova formulação legal não contempla a herança indivisa como dotada de personalidade judiciária, com a consequência de não poder esta (ao contrário da herança jacente) ser parte em processos judiciais (cfr. art.º 11.º, n.º 1, do NCPCiv.), mormente, quanto ao que agora importa, como parte demandante.
Como claramente explicitado pela jurisprudência posterior àquela alteração legislativa:
«Isso significa, a contrario sensu, que a herança ainda não partilhada, mas cujos titulares quinhoantes estejam determinados, não tem personalidade judiciária.
Assim, em regra, se a herança tiver sido aceite, não obstante ainda não ter ocorrido a respectiva liquidação e partilha, o contraditório deve ser estabelecido com os herdeiros aceitantes.
Acresce que a herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado
Com efeito, embora a herança indivisa funcione para variados efeitos como património autónomo, este só tem personalidade judiciaria se os respectivos titulares não estiverem determinados, o que, na espécie, não ocorre.» (Assim, o Ac. STJ de 15/01/2004, Proc. 03B4310 (Cons. Salvador da Costa), em www.dgsi.pt.)
Assim sendo, fácil se torna concluir que, no regime atual, verificada a não jacência da herança, como in casu, por se tratar de herança indivisa (o que resulta incontroverso nos autos), é a mesma destituída de personalidade judiciária, o que consubstanciaria, se demandante fosse, exceção dilatória típica, de conhecimento oficioso [cfr. art.ºs 278.º, n.º 1, al.ª c), 576.º, n.º 2, 577.º, al.ª c), 578.º, e 591.º, n.º 1, al.ª b), todos do NCPCiv.].
Em suma, no caso dos autos, se surgisse como demandante a dita herança aberta e indivisa, teria de concluir-se pela respetiva falta de personalidade judiciária. [...]
Quanto ao pedido formulado pelos AA. é verdade que, de acordo com a melhor técnica, não deveria ter sido formulado nos termos em que o foi, porquanto os herdeiros do Sr. FF, não estão na acção a título pessoal, mas enquanto herdeiros, sendo que o direito que os autores se arrogam é contra a herança que eles aqui representam. Em bom rigor o pedido deveria ser formulado no sentido de eles ser[em] condenados a reconhecer a existência do crédito reclamado pelos AA., e a satisfazer pelas forças da herança (Ac. STJ de 19.3.1992; BMJ; 415.º - 658).» (---).
Bem se compreende que tenha vindo a ganhar terreno, nos Tribunais superiores, o entendimento no sentido de os titulares dos direitos e deveres da herança aceite e indivisa, em comum e sem determinação de parte, serem os herdeiros/sucessores, por aquela não ser sujeito de direitos, não dispondo de personalidade judiciária e, como tal, não poder ser parte ativa nem passiva. Por isso, sabido só poder ser condenado ou absolvido quem for parte na lide, se pelos encargos da herança, incluindo as dívidas do falecido, responde o património autónomo constituído pelos bens da herança indivisa, para esse fim serão demandados os herdeiros/sucessores nessa qualidade (Vide Ac. TRP de 04/11/2019, Proc. 1136/18.7T8VFR.P1 (Rel. Fátima Andrade), em www.dgsi.pt, sublinhando, nesta senda, que, «Em ação na qual são RR. os herdeiros/sucessores do autor de herança indivisa e aceite, em que a A. alega ser credora da herança e demandar os herdeiros (nessa qualidade) para que possa obter a responsabilização daquela herança “R”, é de entender que o pedido formulado pela A., embora imperfeitamente expresso, é o de condenação dos RR. na qualidade em que são demandados a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança».).
Pode, pois, dizer-se que a atuação em juízo quanto a uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do art.º 2091.º, n.º 1 do CCiv. (Ac. TRC de 26/02/2019, Proc. 1222/16.8T8VIS-C.C1 (Rel. António Carvalho Martins), em www.dgsi.pt.).
Como pode ler-se em Estudo de 27/02/1986, intitulado “Herança Indivisa – Sua Natureza Jurídica. Responsabilidade dos Herdeiros Pelas Dívidas da Herança” (---), neste tipo de situações, «os direitos só podem ser exercidos contra todos os herdeiros» (citando Oliveira Ascensão). E prossegue o respetivo Autor: “Os herdeiros são sempre parte legítima como «representantes» da herança indivisa, na acção em que se pede a satisfação de encargos desta. Se se pretender, porém, responsabilizá-los directamente pela dívida, o problema já não será de legitimidade, mas sim de mérito, pelo que deviam os herdeiros ser absolvidos do pedido e não da instância. // Com efeito, deve relembrar-se que estamos perante uma massa de bens sem personalidade, sem personalidade jurídica ou judiciária, que pertence em bloco e só em bloco aos co-herdeiros. É uma verdadeira colectividade, com bens e encargos próprios”.
Cabe agora, com reporte ao caso sub judice, responder às questões que aqui se colocam, com projeção no desfecho do peticionado na ação.
Assim, deve dizer-se, como visto, que a ação não poderia ter sido intentada pela herança indivisa (em seu próprio nome), já que destituída de personalidade jurídica e judiciária, o que levaria ao falhanço do pressuposto indeclinável da personalidade judiciária.
Por isso, a legitimidade ativa tem de recair sobre o conjunto dos herdeiros, em bloco, os quais, como visto também, são parte legítima como «representantes» da herança indivisa, incluindo na ação em que se pretenda o reconhecimento de um direito de propriedade sobre imóvel que cabe à herança. São estes que têm de estar, enquanto herdeiros, no lado ativo da instância.
Assim acontece com os 1.º a 5.º AA., enquanto herdeiros da falecida FF, discutindo direito que cabe à dita herança.
Donde que, demonstrados os respetivos pressupostos, o direito dominial haja de ser reconhecido – em adequada interpretação do pedido – por reporte à herança, e não aos AA. por si e para si.
Mas já quanto ao 1.º A. tem de reconhecer-se que lhe assiste um direito dominial em paridade com a herança, para além da sua posição de herdeiro.
Com efeito, este atua por si e para si, para além de como herdeiro da sua falecida esposa.
Em suma, permitindo o pedido formulado a interpretação (corretiva/adaptativa) aludida, tem de alterar-se a sentença, na parcial procedência da apelação, em moldes de se entender que o A. AA e a herança ilíquida e indivisa – de que são herdeiros todos os AA. – adquiriram, por usucapião, o discutido direito de propriedade, posto não ter ocorrido alteração da factualidade de suporte, que se mostra devidamente apreciada na sentença em crise."
*3. [Comentário] Salvo melhor opinião, em vez de se afirmar que "o A. AA e a herança ilíquida e indivisa [...] adquiriram, por usucapião, o discutido direito de propriedade", teria sido melhor concluir que essa aquisição ocorreu, tal como se diz no Relatório, pelos autores "AA, BB, CC, DD, EE [...], na qualidade de únicos e universais herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF".
Efectivamente, se a herança indivisa não pode ser autora, por falta de personalidade judiciária, não é possível considerar, quanto a ela, a acção procedente ou improcedente.
MTS