"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/07/2023

Jurisprudência 2022 (231)


Ampliação do objecto do recurso;
contra-alegações; prazo*


1. O sumário de RL 20/12/2022 (8671/14.4T8LSB.L2-7) é o seguinte:

- Tendo a apelante interposto recurso de revista per saltum da decisão proferida em primeira instância, e pretendendo a apelada ampliar o objeto do recurso com impugnação de determinados pontos da matéria de facto, a apelada não beneficia do prazo adicional de dez dias previsto no Artigo 638º, nº7, do Código de Processo Civil, para apresentação das suas contra-alegações.


2. Na fundamentação do acórdão (proferido com um voto de vencido) escreveu-se o seguinte:

"A Autora/recorrente apresentou o seu recurso no prazo legal de 30 dias (Artigo 638º, nº 1, do Código de Processo Civil), cabendo à Ré/recorrida apresentar contra-alegações no mesmo prazo (Artigo 638º, nº 5, do Código de Processo Civil).

Todavia, a Ré/recorrida apresentou contra-alegações em quarenta dias, entendendo que lhe assiste tal prazo porquanto ampliou o objeto do recurso com a impugnação de três factos (cf. Artigo 636º, nº 2).

A discussão centra-se, pois, em saber se se aplica o disposto no Artigo  638º, nº7, no caso de o apelado pretender ampliar o objeto do recurso na vertente de impugnação da matéria de facto, num contexto em que o recorrente não impugnou a decisão relativa à matéria de facto, como aconteceu nos autos.  

A Ré/reclamante invoca em abono da sua posição dois arestos.

O primeiro dos referidos arestos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.2015, Garcia Calejo, 2689/08) não analisou expressamente a questão em causa, afirmando apenas que:

«Nos termos do art.º 636.º, n.º 2, do mesmo Código, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelos recorrentes, os recorridos podem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como assente. Neste caso, à impugnação da matéria de facto é-lhe aplicável as regras atinentes à impugnação da matéria pelo recorrente, donde resulta que a matéria de facto impugnada pelos recorridos, só poderá ser apreciada pela Relação se os mesmos cumprirem as determinações ínsitas no art.º 640.º, n.º 1.»

Ora, estas asserções nada de novo trazem face ao teor expresso dos Artigos 636º, nº 2 e 640º, nº 3, nos termos do qual: «O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável no caso do recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º

Já no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.10.2017, Mário Coelho, 1891/15, a questão foi expressamente analisada nestes termos:

«Com efeito, quer se partilhe da tese da ampliação do âmbito do recurso não constituir um autêntico recurso, quer se entenda tratar de um recurso subsidiário, está sempre em causa o direito do recorrido a introduzir na instância recursiva questões não apresentadas pelo recorrente, prevenindo a hipótese do tribunal de recurso aderir in totum aos fundamentos apresentados pelo recorrente.

Uma vez que a ampliação do prazo de recurso e de resposta, em caso de reapreciação da prova gravada, se justifica pelo facto do impugnante ter o ónus, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, de indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, podendo proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes [---], incumbindo à parte contrária proceder do mesmo modo, designando os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente – art.º 640.º n.º 2, al.s a) e b) do Código de Processo Civil – as razões que justificam a ampliação do prazo de recurso são as mesmas que justificam tal ampliação no caso de resposta.
 
E assim, tendo a parte o dever de indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, podendo proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, justificando esse labor acrescido a concessão de maior prazo, o recorrido que pretenda ampliar o âmbito do recurso e suscitar a reapreciação da matéria de facto, sendo sujeito a tal ónus, tem igualmente direito à ampliação do prazo da sua resposta, independentemente do modo como o recorrente fundamentou o seu recurso.»
 
A posição deste aresto é acolhida por Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, 2020, p. 312.

Em sentido oposto, invocou-se no anterior despacho a posição de Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., 2022, p. 177:

«A extensão do prazo por mais 10 dias (de que também beneficiará o recorrido nas contra-alegações, nos termos do nº 5) apenas está prevista para os casos em que o recorrente introduz nas alegações a impugnação da decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova que tenham sido gravados (nº 7). Não abarca os casos em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja suscitada, a título subsidiário, pelo recorrido, nos termos do art.º 636º, nº 2, ou seja, a título de mera ampliação do objeto do recurso interposto pela parte contrária.

Por conseguinte, pretendendo ampliar o objeto do recurso nesses termos, o recorrido deve fazê-lo nas contra-alegações que serão apresentadas em prazo idêntico que vigorou para o recorrente. Notificado este das contra-alegações em que seja ampliado o objeto da apelação, o recorrente responderá no prazo de 15 dias, sem qualquer adicional.»

Sendo certo que a questão comporta margem de discussão, entendemos que esta última é a posição correta.

Em primeiro lugar, dispõe o nº 7 do Artigo 638º que «Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias».

Ora, no caso, a Ré não assume genuinamente as vestes de recorrente porquanto foi totalmente absolvida do pedido em primeira instância, sucumbindo-lhe legitimidade para recorrer (Artigo 631º, nº1). Ou seja, a Ré não interpôs nem podia interpor recurso da decisão proferida na primeira instância. Não sendo recorrente e não tendo o recorrente impugnado a decisão da matéria de facto, a Ré não beneficia do prazo de 10 dias do nº7, do Artigo 638º.

Note-se que a doutrina chega a afirmar que o recorrido, que requer a ampliação do objeto do recurso, não tem o estatuto de recorrente. Neste sentido, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, 3ª ed., 2022, p. 73:

«Mas o vencedor que se prevaleça desta faculdade não tem o estatuto de recorrente (Amâncio Ferreira, Manual cit., p. 162), dado que o objeto do recurso (a decisão final proferida) permanece idêntica (ver, porém, Ribeiro Mendes, Recursos 2007, p. 85, admitindo tratar-se de uma espécie de recurso subsidiário, ainda que o recorrente não haja sido vencido). À semelhança do que ocorre com o recurso subordinado (art. 633-3), a ampliação requerida só será apreciada se houver pronúncia sobre o mérito do recurso, mas as questões suscitadas pelo recorrido só serão apreciadas se, em consequência do recurso interposto, for modificada a decisão recorrida (…)».

Também Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., 2022, p. 149, afirma que:

«Na configuração legal, não estamos perante um verdadeiro recurso. Afinal sempre falta ao recorrido a qualidade de parte vencida relativamente ao resultado do processo que serve de critério aferidor da legitimidade, através do segmento decisório, nos termos dos arts. 631º, nº1, e 633º, nº1. Como reflexo, o vencedor que se prevalecer desta faculdade não terá o estatuto próprio de recorrente.»

Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, 2020, p. 309, afirma que:

«Trata-se, assim, de uma previsão excecional de recurso dos fundamentos. Um recurso condicional ou subsidiário em sentido impróprio já que a parte passiva do recurso pretende obter um efeito revogatório que afaste um eventual provimento do mesmo, em ordem a manter o dispositivo que lhe foi favorável.»

Nesta senda, o regime do Artigo 636º, nº2 - ao permitir ao vencedor na ação que, a título subsidiário, impugne a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto - integra uma norma excecional porquanto define um regime jurídico contrário ao que consta da regra geral (cf. Artigo 11º do Código Civil; Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, p. 226). Dito de outra forma, ao atribuir à parte vencedora uma legitimidade subordinada (cf. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, p. 140) para impugnar, num recurso interposto pela parte contrária, a matéria de facto, o nº 2 do Artigo 636º integra uma norma excecional face ao Artigo 631º e ao regime geral recursório em que se inclui o Artigo 638º que rege sobre os prazos.

Tratando-se de um regime excecional, o legislador estava atento ao mesmo e às suas implicações. Assim, o legislador sinalizou no nº 3 do Artigo 640º que: «O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º.» Tendo presente que, no âmbito da ampliação do objeto do recurso, o apelado poderia querer impugnar determinados pontos da matéria de facto, o legislador – atentamente – sinalizou que, nessa eventualidade, o recorrido está também vinculado aos ónus processuais impostos pelo Artigo 640º. Estando atento e pretendendo articular expressamente o regime da ampliação do objeto do recurso com o regime geral da impugnação da decisão de facto, o legislador – caso entendesse que se justificava nessa eventualidade a concessão do prazo adicional de dez dias – tê-lo-ia dito de forma explícita, o que não fez. Esta omissão compagina-se com a circunstância de a ampliação do objeto do recurso configurar, no melhor dos cenários, um recurso condicional ou subsidiário (cf. supra). [...]

Note-se ainda no teor dos nºs 7 e 8 do Artigo 638º:

7- Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.
 
8- Sendo requerida pelo recorrido a ampliação do objeto do recurso, nos termos do Artigo 636º, pode o recorrente responder à matéria da ampliação, nos 15 dias posteriores à notificação do requerimento.

A sistemática adotada no preceito não é despicienda. Na verdade, se o legislador – com o mesmo cuidado que teve na redação do nº 3 do Artigo  640º - pretendesse atribuir ao recorrido o prazo adicional de dez dias para ampliar o objeto do recurso com impugnação da matéria de facto, teria adotado preferencialmente uma de duas opções: ou trocaria a ordem dos números (passando o conteúdo do nº 8 a constar como nº 7 isto porquanto a redação do artigo 638º parte dos regimes mais gerais para os regimes  mais especiais) ou inseriria uma ressalva no nº 8 de teor equivalente a: “aplicando-se o disposto no nº 7”.

Invoca a reclamante que, a não se acolher a sua tese, ocorre uma violação do princípio da igualdade processual.

O princípio da igualdade processual encontra-se consagrado no Artigo 4º do Código de Processo Civil, nos termos do qual: «O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais

«(…) o princípio da igualdade das partes traduz-se numa igualmente de chances e de riscos: ambas as partes devem ter as mesmas chances de obter uma decisão favorável e sobre ambas as partes deve recair o mesmo risco de o tribunal vir a proferir uma decisão desfavorável. Durante o desenrolar do processo, ambas as partes devem ter as mesmas oportunidades de influenciar o seu resultado: é o que, por vezes, acentuando uma conceção “duelística” do processo se designa por igualdade de armas. (…) O princípio da igualdade impõe ao tribunal o dever de tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual» (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 99-100).

Por sua vez, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, À Luz do Código Revisto, pp. 105-106, afirma a este propósito que o princípio da igualdade de armas «(…) impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspetiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respetivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a diversidade das posições das partes impossibilita, exige, porém, a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticos, sempre que a posição perante o processo é equiparável, e um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigualdade objetiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte meios processuais não atribuíveis a outra.»

Releva também neste circunspecto a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que se colhe a lição expressa no Acórdão n.º 39/88:

«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, «reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade» – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).

O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.
 
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.

O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante».

O princípio da igualdade não pode conduzir à postergação de normas processuais que se apresentam com um conteúdo inflexível, como são os casos das normas processuais que fixam prazos perentórios (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 24). Perante normas processuais cogentes como são as atinentes a prazos perentórios, o juiz só tem que fazer acatá-las em relação a ambas as partes, sendo – deste modo – assegurado o princípio da igualdade. Assim, a aplicação no caso do disposto no Artigo 638º, nºs 1 e 5, a ambas as partes não colide com o princípio da igualdade, pelo contrário, observa-o.

Note-se que a situação da ré/reclamante não é materialmente equiparável à situação de um apelante que, ab initio, pretenda impugnar a decisão da matéria de facto. Enquanto aqui o apelante pretende socorrer-se de um meio de defesa da sua posição a título principal e que será necessariamente apreciado, diversamente na situação da reclamante (impugnação da matéria de facto em sede de ampliação do recurso, num contexto em que não houve impugnação da matéria de facto pela parte vencida) a mesma socorre-se de um meio de defesa subsidiário, condicional, que pode nem sequer ser objeto de apreciação em sede do recurso. A centralidade e operacionalidade da impugnação da matéria de facto não são equiparáveis nas duas situações e, não sendo equiparáveis, não justificam a aplicação idêntica do regime do nº7 do Artigo 638º.

Assim, conforme enfatiza a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o estabelecimento das distinções aqui preconizadas não fere o princípio da igualdade porquanto as mesmas radicam em situações substancialmente diferentes e não equiparáveis.

A atender-se a tese da reclamante, a mesma conduziria mesmo a resultados insólitos. Assim, num contexto em que a parte vencida, ab initio, impugnasse a decisão da matéria de facto beneficiando de um prazo de recurso de 40 dias, a parte vencedora/apelada beneficiaria do mesmo prazo para contra-alegações (Artigo 638º, nº7). Mas, se a apelada também pretendesse impugnar um facto em sede de ampliação do objeto do recurso, então passaria a beneficiar de um prazo de contra-alegações de 50 dias!"


*3. [Comentário] Tudo ponderado, ter-se-ia preferido uma diferente solução. É verdade que o recorrido que amplia o objecto do recurso não é, em termos legais, um recorrente. No entanto, nada impediria que, legalmente, fosse classificado como tal: em vez de a matéria ser tratada como uma ampliação do objecto do recurso, poderia ser perfeitamente enquadrada num recurso subordinado do recorrido. Apesar de não ter sido escolhida esta opção, a verdade é que, em termos substanciais, o recorrido não deixa de dirigir ao tribunal de recurso um pedido de reapreciação de uma determinada questão.

MTS