Providência cautelar;
arrolamento; caução
1. O sumário de RP 14/11/2022 (2694/21.4T8VFR-A.P1) é o seguinte:
I - A alteração da decisão de facto provinda do Tribunal de 1ª instância só se justifica quando seja possível constatar uma violação ou desvio na formação crítica da convicção do julgador e não quando essa convicção, analisada de forma independente e autónoma pela Relação, colhe pleno apoio na prova produzida e a mesma se mostra justificada segundo as regras da experiência e da lógica, aplicáveis ao caso.
II - O decretamento da providência de arrolamento (que consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens) depende da demonstração sumária de dois elementos: a) do seu direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar; b) do receio do seu extravio ou dissipação.
III - No arrolamento, por princípio, deve ser nomeado como depositário dos bens arrolados o respectivo detentor ou possuidor, a não ser que, em face das circunstâncias do caso e por forma a salvaguardar a eficácia da providência, isso se mostre inconveniente, segundo um juízo de sã prudência – artigo 408º, n.º 1, do CPC.
IV - Como vem sendo posição do Tribunal Constitucional e do próprio Supremo Tribunal de Justiça, “o mero apelo a um princípio constitucional ou mesmo de um direito fundamental não se mostra por si só como adequado para a apreciação de uma alegada inconstitucionalidade, antes se exigindo para além da identificação da norma jurídica ordinária contrária à tutela daqueles, sobretudo, que se elucide, discriminando o conteúdo e a extensão da interpretação alegadamente inconstitucional”, pois que só assim se coloca uma concreta questão de constitucionalidade que ao Tribunal cabe dirimir.
V - O arrolamento de saldos bancários (e títulos do tesouro ou certificados de aforro) com a sua consequente imobilização, face ao risco sério de dissipação e extravio dos mesmos, não confronta os princípios constitucionais previstos nos artigos 36º, n.º 2 e 62º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, antes se revelando uma solução adequada e proporcional para salvaguarda da própria eficácia e utilidade da providência, que tem por fim último esconjurar o perigo daquela dissipação ou extravio de bens que se mantêm litigiosos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"IV.VI. Arrolamento – Pressupostos – Apreensão de bens.
A questão subsequente, tendo presente que se manteve o quadro factual proveniente do julgamento em 1ª instância, é aferir da verificação ou não dos pressupostos do arrolamento decretado, não deixando de ter presente que apenas foram arrolados os saldos das contas bancárias tituladas ou co-tituladas pela Requerida BB (alínea a, do pedido), os saldos das contas bancárias tituladas ou co-tituladas pelos Requeridos CC e DD (alínea b, do pedido), os bens móveis e numerário existentes no cofre que se encontrava na residência da Requerida BB (alínea c do pedido) e, ainda, os certificados de aforro e certificados de tesouro titulados pelo falecido EE e sua esposa BB (alínea d).
Dito isto, o arrolamento é, à luz do preceituado no artigo 403º, do CPC, uma medida cautelar de caracter conservatório que pode apresentar-se sob duas vertentes: a) como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na acção principal; b) como medida destinada a garantir a conservação de documentos necessários para provar a titularidade do direito.
Naquela primeira modalidade – que ora está em causa -, o arrolamento apresenta algumas semelhanças com o arresto, tendo em conta a latitude dos bens sobre que pode incidir e o modo de execução, dele diferindo quanto à situação de perigo que visa prevenir: em lugar do perigo de perda de garantia patrimonial, típica do arresto, o arrolamento visa eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos. Por outro lado, ainda que no procedimento cautelar comum se possam inserir providências gerais que consistam na apreensão de bens ou na sua entrega a um fiel depositário, o arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de especificação no processo principal, nos termos do já citado artigo 403º, n.º 2, do CPC, no caso dos bens que deverão ser objecto da partilha por óbito do falecido EE, seu pai.
Neste aspecto, cabe, à partida, excluir a aplicação ao caso da providência cautelar de arresto, pois que, ao contrário do que invocam infundadamente os Recorrentes, a Requerente não alega ser credora da herança aberta por óbito de seu pai e existir algum perigo de perda da garantia patrimonial daquele seu crédito, mas antes, em termos radicalmente diversos, alega que é herdeira por óbito de seu pai, alega que, como tal tem direito sobre o acervo hereditário deixado por aquele, e alega, ainda, que existe o risco sério de extravio, dissipação ou ocultação de vários valores que fazem parte daquele acervo e, em especial, dos saldos das contas bancárias referidas nos autos, dos valores em títulos de tesouro e certificados de aforro e, ainda, dos bens móveis (ouro, jóias e moedas antigas) e numerário que existem num cofre na residência da 1ª Requerida, BB. [Sobre a distinção entre o arrolamento e o arresto, vide, por todos, J. ALBERTO dos REIS, Código de Processo Civil Anotado”, II volume, 3ª edição, 1981, pág. 116.]
Por outro lado, ainda, importa também deixar claro, à partida, que, em sentido oposto ao defendido pelos Recorrentes, não resulta da factualidade sumariamente provada que o arrolamento em causa (com impossibilidade de movimentação dos valores e títulos arrolados) possa colocar em perigo a satisfação das necessidades básicas da Requerida BB, sendo certo que não foi deferido o arrolamento das rendas provenientes dos vários imóveis dados em arrendamento (pedido formulado em e) do requerimento inicial), rendas estas que atingem valores significativos. Relativamente aos demais Requeridos, CC e marido, os mesmos terão, segundo as regras da normalidade, os seus próprios rendimentos resultantes da sua actividade profissional e, portanto, o arrolamento dos saldos bancários e demais títulos não colocará em causa também a sua subsistência, não sendo despiciendo lembrar que a medida cautelar em apreço é uma medida provisória que cessará com a partilha do acervo hereditário no respectivo inventário por óbito de EE.
Mais, ainda, é de referir que, não tendo sido alterada a matéria de facto impugnada pelos Recorrentes, não existe qualquer base para considerar a sobredita transferência de 1 milhão de euros para os Requeridos DD e CC como uma doação manual ou remuneratória e, enquanto tal, dispensada da colação – vide artigo 2113º, n.º 3, do Cód. Civil – antes se tratando, pois, de valores que fazem parte da herança por óbito de EE e que devem ser considerados para o cômputo do seu valor global, embora este só possa ser definido com exactidão no subsequente inventário.
Feitas estas considerações, segundo o artigo 405º, n.º 1, do CPC, o requerente da providência deve fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação, sendo que se o direito relativo aos bens depender de acção já proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente.
Assim, produzidas as provas oferecidas, o juiz ordenará o arrolamento se adquirir a convicção de que, sem o mesmo, o interesse do requerente corre sério risco – artigo 405º, n.º 2, do CPC.
Por conseguinte, o decretamento do arrolamento (que consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens) depende da demonstração sumária – que cabe ao requerente – de dois elementos: a) do seu direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar; b) do receio do seu extravio ou dissipação. [Vide, neste sentido, por todos, AC RP de 8.03.2021, relator Sr. Juiz Desembargador MANUEL DOMINGOS FERNANDES, em que interviemos como Juiz Adjunto, disponível in www.dgsi.pt, ou, ainda, MARCO C. GONÇALVES, “Providências Cautelares”, 2ª edição, pág. 256.]
Com efeito, efectuada a prova sumária destes elementos constitutivos, estará demonstrado que, sem a tomada de providências, existe o risco sério de dissipação ou extravio de bens a que o requerente tem direito e que, como tal, tem direito a ver, a título conservatório e transitoriamente (até à decisão definitiva da causa principal), mantidos, sob pena de, a final, a decisão que definitivamente lhe venha a reconhecer esse direito, não passar de uma decisão platónica, sem eficácia prática, face ao dito risco de dissipação ou ocultação dos bens.
Note-se que, como referia A. Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV volume, 3ª edição, pág. 277, a propósito do anterior 421º, do antigo CPC, o periculum in mora que o arrolamento visa acautelar não é o da genérica ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável que é caracterizador do procedimento cautelar comum, pois que tem por objectivo esconjurar uma específica situação de perigo relacionada com o extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos, situação de perigo essa que é (ou pode ser) potenciada pela demora do próprio processo principal.
Neste contexto, e estando em causa essencialmente o arrolamento de saldos bancários e de títulos de tesouro ou certificados de aforro que, como já se referiu ascendem a cerca de € 4.000.000,00 (4 milhões de euros), estes bens são facilmente movimentáveis e, por isso, não sendo adoptada qualquer providência de manutenção dos mesmos, o risco de dissipação ou ocultação é bastante significativo, risco este que, no caso dos autos, é, aliás, claramente reforçado pela circunstância demonstrada nos autos de os Requeridos, em conjunto, terem procedido à transferência de 1 milhão de euros para a conta do Requerido DD, transferência que, como também já se referiu, em nosso ver, foi efectuada para dissipar ou ocultar aquele valor do acervo hereditário por óbito de EE a que pertence, sendo que, à luz da factualidade provada, não se encontra nenhuma outra explicação plausível para tal movimentação. Aliás, diga-se, se assim não fosse e vingando a tese dos Requeridos/Recorrentes, estaria encontrada a maneira fácil de esvaziar por completo o conteúdo do acervo da herança, bastando, na véspera do falecimento do «de cujus», transmitir para outrem todo o dito património, para, em seguida, argumentar que não existiam bens na herança e, portanto, nada há para partilhar…
Por outro lado, ainda, resulta evidente da prova carreada aos autos, que os Requeridos não mantêm qualquer tipo de relacionamento com a Requerente, o que, no caso, mais inculca o risco de ocultação ou extravio daqueles bens da herança, como forma de atingir os interesses da Requerente. [Vide, neste sentido e em situação similar, AC RP de 12.12.2011, relatora Sr. Juíza Desembargadora MARIA JOSÉ SIMÕES, disponível in www.dgsi.pt]
Por conseguinte, em nosso ver, mostra-se justa e fundada a convicção de que, sem o arrolamento daqueles saldos e títulos, o interesse da Requerente em ver aqueles bens integrarem o dito acervo hereditário de seu falecido pai, corre sério risco, para efeitos do preceituado no artigo 405º, n.º 2, do CPC.
De facto, se é certo, como se refere no AC STJ de 30.01.2013, com vasta indicação de jurisprudência no mesmo sentido, que “… até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois são apenas titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens em concreto que preenchem tal quota.” [AC STJ de 30.01.2013, relator Sr. Juiz Conselheiro ÁLVARO RODRIGUES, disponível in www.dgsi.pt], isso não significa que cada herdeiro não tenha o direito/interesse em conservar/manter como parte integrante da universalidade da herança determinados bens e que, como tal, deverão oportunamente ser partilhados e atribuídos, em função das regras legais aplicáveis à concreta sucessão, a cada um dos herdeiros, que, por via da partilha, passarão a ser os respectivos titulares, com efeitos retroactivos à data da abertura da sucessão. [---]
Nesta perspectiva, e com o devido respeito por opinião em contrário, não está em causa o direito ou o interesse da Requerente a uma determinada quota-parte na herança, nem, ainda, a determinação desse valor – pois que essas questões só podem ser dirimidas, com o devido rigor e precisão, no inventário por óbito de EE -, mas antes, como se disse, a título cautelar, esconjurar o perigo ou o risco de serem dissipados ou ocultados bens/valores que devem integrar a herança, herança que será, oportunamente, partilhada no dito inventário nos termos legais e com observância das disposições efectuadas pelo «de cujus» e na qual é interessada a Requerente AA, enquanto sua herdeira legitimária. [Sobre a noção de interesse na conservação dos bens a que alude o n.º 1 do artigo 404º como pressuposto material da legitimidade de requerer o arrolamento, o mesmo Professor J. ALBERTO dos REIS, op. cit., pág. 120, esclarece que “Ter ou não interesse equivale a ter ou não direito (certo ou eventual) aos bens que se pretendem por a coberto do risco de extravio ou dissipação.” / Ora, neste enquadramento, qualquer que seja a quota-parte da Requerente no acervo hereditário, é indiscutido que a Requerente tem interesse jurídico quanto à integração de tais bens no activo da herança, tanto mais que a sua quota-parte será tanto maior quanto maior for aquele acervo hereditário.]
Destarte, em nosso julgamento, não colhe fundamento legal reduzir-se o arrolamento decretado acima referido para montante inferior, nomeadamente para uma alegada quota-parte da Requerente na herança no montante de € 300.000,00 (sabendo-se que a quota-parte da Requerente só pode ser definida no inventário e em função de todo o património hereditário que ali se venha efectivamente a apurar como fazendo parte da herança e do seu valor) ou, ainda, para excluir do arrolamento os valores titulados pelos Requeridos, BB, CC e DD, sendo certo que se mostra sumariamente demonstrado que esses valores fazem parte da herança a partilhar por óbito de EE e existe o sério risco de, a nada ser providenciado, os mesmos poderem ser dissipados ou ocultados daquele acervo hereditário, como já antes se referiu.
Dito isto, suscitam, ainda, os Recorrentes a questão de os bens arrolados não deverem ser apreendidos e retirados da disponibilidade dos Requeridos, na medida em que o arrolamento, ao contrário do que sucede com o arresto, não visa a apreensão de bens, mas apenas a sua descrição, avaliação e depósito, nos termos do artigo 406º, n.º 1, do CPC.
Segundo o Professor Alberto dos Reis (op. cit., pág. 123), há aqui dois interesses em conflito: o do requerente, no sentido de se proceder à apreensão judicial dos bens; o do possuidor ou detentor, no sentido de se manter o «status quo». Por isso, com o arrolamento não se pode pretender prejudicar o gozo e utilização normal que os bens possibilitam; daí que o depositário deva ser, à partida, o seu possuidor ou detentor. Todavia, em casos excepcionais, havendo manifesto inconveniente, os bens em causa devem ser retirados da disponibilidade do seu possuidor/detentor, sob pena de se colocar em causa o risco de dissipação ou extravio que a providência em causa pretende, precisamente, evitar.
Ora, com o devido respeito, é o que ora sucede com os valores constantes das contas bancárias e com os títulos de tesouro e certificados de aforro arrolados (e retirados da disponibilidade dos Requeridos), pois que, em face da conduta anterior de transferência de um milhão de euros de uma conta bancária para a conta de outrem (o Requerido DD), em face da evidente animosidade familiar que existe entre a partes e dada a facilidade de movimentação de saldos bancários, mostra-se-nos imprudente e inconveniente colocar esses bens arrolados na disponibilidade dos Requeridos, que, aproveitando-se de tal facto, os podiam ocultar e extraviar, como fizeram com a já referida transferência de 1 milhão de euros na véspera do falecimento do «de cujus».
Destarte, também nesta parte não se vislumbram razões para alterar o decidido, ou seja, para nomear como depositário de tais saldos bancários as instituições bancárias em apreço, com a consequente imobilização de tais valores ali existentes, assim como para nomear como depositário dos títulos e certificados a entidade encarregue da sua gestão, com a mesma imobilização, como determinado na decisão recorrida.
Improcede, assim, em nosso julgamento, este outro segmento a apelação.
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IV.VII. Substituição do arrolamento por caução.
A questão subsequente traduz-se em saber se deveria ter sido deferida a caução oferecida pelos ora Recorrentes em substituição do arrolamento decretado.
Nesta matéria, como salienta A. Abrantes Geraldes, “Temas …”, cit., pág. 256, as normas do procedimento comum podem ser transpostas para os procedimentos típicos, como é o caso do arrolamento, desde que a matéria não se encontre especialmente prevenida na respectiva regulamentação, como resulta do n.º 1 do artigo 376º, do CPC.
Por conseguinte, não se vê obstáculo em geral à substituição da providência de arrolamento pela prestação de caução adequada, a pedido do requerido, desde que a caução oferecida se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente. [---]
De facto, como salienta ainda o mesmo Sr. Juiz Conselheiro, as expressões legais que impõem a adequação e a suficiência da caução para prevenir ou reparar integralmente a lesão são suficientemente ricas de conteúdo para, consoante as circunstâncias, legitimarem a extensão ou a recusa relativamente a procedimentos específicos.
Em suma, em tese geral, nada obsta à substituição da providência em causa pela caução, ponto é que a caução, pelo seu montante e modo de prestação, previna de forma suficiente a lesão ou seja apta a repará-la integralmente.
Sucede que, no caso dos autos, isso não sucede por razão evidente: - os Requeridos dispõem-se a prestar caução apenas pelo montante de € 330.000,00, no pressuposto que é apenas esse o direito ou quota que assiste à Requerente, o que já antes se decidiu em sentido negativo, seja, ainda, por devolução aos Recorrentes dos valores apreendidos – o que, como se decidiu antes, também está excluído -, seja, ainda, por meio de hipoteca sobre alguns dos imóveis que integram o acervo hereditário.
Ora, sendo assim e mostrando-se, face ao anterior excurso, assente que o valor do património a arrolar não é de € 330.000,00, mas antes de 4.000.000,00 (quatro milhões de euros) será apodíctico dizer-se que a caução oferecida pelos Requeridos não garante a reparação integral do valor que deve manter-se arrolado por fazer parte da herança e face ao direito/interesse da Requerente na conservação daquele valor enquanto tal."
[MTS]