Competência internacional;
regime interno; princípio da causalidade
1. O sumário de STJ 30/11/2022 (3902/19.7T8FNC-A.L1.S1) é o seguinte:
I – Assentando a causa de pedir neste autos na alegada existência do vício de nulidade, por simulação, e no instituto da impugnação pauliana, relativamente ao negócio jurídico celebrado em Portugal entre a vendedora, residente na Namíbia, e a sociedade adquirente, sediada nesse mesmo país, tendo por objecto bens imóveis sitos na Madeira, a discussão desta matéria não tem a ver directamente com o fenómeno sucessório entretanto aberto por morte da transmitente, que se coloca em momento logicamente posterior e autónomo em relação à dita invalidade (ou à ineficácia) do negócio jurídico impugnado, embora possa vir a ter inerentes e consideráveis reflexos (mediatos) no que tange à composição do acervo hereditário respectivo.
II – Assim sendo, a competência internacional do tribunal português para o conhecimento da causa estriba-se, em primeiro lugar, no Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, uma vez que estamos perante uma discussão sobre matéria civil (concretamente sobre a (in)validade de contrato de compra e venda celebrados entre particulares).
III - Nesta mesma medida, torna-se forçoso excluir a aplicação do Regulamento (UE) nº 650/2012, de 4 de Julho de 2012, para aferir da competência internacional dos tribunais portugueses, dado que a discussão desenvolvida nos autos não incide sobre matéria de natureza sucessória.
IV - Excepcionando a situação das acções que estejam previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, constitui condição de aplicabilidade das regras contidas neste Regulamento que o demandado tenha domicílio num Estado Membro da União Europeia.
V – Sendo a acção instaurada por portugueses, residentes em território nacional; não residindo o réu num dos Estados-Membro da União Europeia (in casu, trata-se de uma sociedade sediada na Namíbia); havendo sido realizado em Portugal o negócio jurídico impugnado por nulidade e acção pauliana (compra e venda de imóveis alegadamente simulada); situando-se no nosso país os bens imóveis que constituíram o seu objecto, a competência internacional dos tribunais portugueses é deferida em estreita conformidade com o preceituado no art. 62º, alínea b), do Código de Processo Civil (isto é, ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram).
VI – Pelo que assiste na situação sub judice competência internacional aos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, não se verificando a excepção de incompetência absoluta oportunamente suscitada pela Ré.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Discute-se na presente revista a verificação, ou não, da excepção de (in)competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, tendo em conta que a situação sub judice reveste conexões com diferentes ordenamentos jurídicos (in casu, o português e o namibiano).
Conforme referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in “Manual de Processo Civil”, Volume I, AAFDL, 2022, a página 173:
“A atribuição de competência internacional aos tribunais de um Estado pressupõe que a causa apresenta um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica desse Estado. Elementos de conexão comuns são o lugar da situação dos bens, o lugar do cumprimento da obrigação, o lugar da ocorrência do dano, o domicílio do demandado e a vontade das partes. Estes elementos de conexão são escolhidos em função dos diversos interesses, como, por exemplo, a boa administração da justiça, a efectividade da tutela processual, a harmonia das decisões sobre um litígio, o interesse das partes, a protecção de partes mais fracas e a proximidade do litígio”. [...]
No caso concreto, a causa de pedir nos presentes autos assenta no alegado vício de invalidade (nulidade), por simulação, nos termos do artigo 240º do Código Civil, bem como no funcionamento do instituto da impugnação pauliana previsto nos artigos 610º a 618º do mesmo diploma legal, relativamente ao negócio jurídico celebrado em Portugal entre CC, residente na Namíbia, como vendedora, e a Ré Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited, sediada nesse mesmo país, na qualidade de (formal) adquirente, tendo por objecto a transmissão de bens imóveis sitos na Madeira.
Ora, a discussão desta matéria (invalidade de contratos de compra e venda por simulação, a que acresce o funcionamento do instituto da impugnação paulinana) não tem a ver directamente com a controvérsia que possa suscitar-se no âmbito da sucessão entretanto aberta por morte da vendedora CC, a qual se coloca em momento logicamente posterior e autónomo em relação à causa da dita invalidade do negócio jurídico impugnado.
Concretamente, não se discute nos presentes autos qualquer particularidade jurídica pertinente ao regime sucessório respeitante à herança aberta por morte de CC, sendo certo que a interpretação das respectivas normas jurídicas de natureza sucessória aqui não se coloca.
Ou seja, a controvérsia jurídica em torno da declaração de nulidade da transmissão desse bens da esfera jurídica de CC para a da sociedade Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited, que poderá, é certo, conduzir à sua eventual restituição ao património da transmitente, não se integra, em termos imediatos, no âmbito da discussão da sucessão por morte de CC, mormente através da análise do regime jurídico-sucessório aplicável, embora possa naturalmente vir a ter inerentes e consideráveis reflexos (mediatos) no que tange à composição do acervo hereditário respectivo.
A tudo isto acresce a circunstância de, do ponto de vista da própria Ré demandada (que suscita a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses), os bens para si transferidos serem alheios ao fenómeno sucessório que se gerou pelo falecimento da transmitente, não se integrando, na sua singular perspectiva, no acervo hereditário desta, nada tendo a ver com a aplicação das respectivas normas sucessórias.
Assim sendo, a competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa estriba-se, em primeiro lugar, no denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012), que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial, único instrumento legislativo europeu aqui aplicável dado estarmos efectivamente perante uma discussão sobre matéria civil (concretamente sobre a (in)validade e/ou ineficácia de contrato de compra e venda celebrados entre particulares).
Este diploma entrou em vigor na data prevista no seu artigo 81º (vigésimo dia seguinte à sua publicação em Jornal Oficial, que ocorreu em 12 de Dezembro de 2012) e é aplicável às acções judiciais instauradas depois de 10 de Janeiro de 2015 (referido artigo 81º, “in fine”).
Neste tocante, estabelece o artigo 4º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012:
“1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.2. As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais”.
Acrescenta o nº 1 do art. 6º do referido Regulamento:
“Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18º, nº 1, do artigo 21º, nº 2, e dos artigos 24º e 25º, regida pela lei desse Estado-Membro”.
O que significa que, excepcionando a situação das acções que estejam previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, constitui condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro da União Europeia.
Para a hipótese desse requisito não se encontrar preenchido – como sucede in casu -, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros será então definida através do recurso às leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).
Neste mesmo sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Almedina, Janeiro 2021, 4ª edição, a página 154, onde se refere:
“(...) se a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para certa acção, nomeadamente em atenção ao seu objecto e ao domicílio do réu, não puder ser resolvida à luz de um regulamento europeu ou de um instrumento internacional, há que resolvê-la à luz do artigo 62º (ou do artigo 63º)”.
Adoptando tal entendimento, vide João Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada supra, a página 181, onde pode ler-se:
“As regras sobre a determinação da competência segundo o Regulamento 1215/2001 só são aplicáveis, em princípio, quando o demandado tiver o seu domicílio ou sede no território de um Estado Membro (artigo 6º, nº 1). Mas quando o litígio apresentar um elemento de estraneidade e entrar no âmbito de aplicação material do Regumento 1215/2012, se o demandado tiver o seu domicílio no território de um Estado-Membro, as regras de competência previstas no Regulamento 1215/2012 devem, em princípio, ser aplicadas e prevalecer sobre as regras nacionais de competência.Se o demandado não tiver domicílio num Estado Membro, em regra o Regulamento 1215/2012 não é aplicável.”.
Conforme se afirma, a este propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 4974/19.9T8LSB.L1.S1., publicado in www.dgsi.pt:
“No que tange ao seu âmbito de incidência objectiva, este Regulamento aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição.Já relativamente ao seu âmbito subjectivo, estabelece o artigo 4º, como critério geral de competência, o do domicílio do Réu: como regra, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente da sua nacionalidade.Temos, assim, que o domicílio do demandado no território dos Estados-Membros da União Europeia desempenha a função não só de critério geral de competência, mas também de condição para aplicar as regras de competência directa previstas no próprio Regulamento, nos termos do artigo 4º, nº 1.(...) opondo o litígio duas partes com domicílio fora da União Europeia, nunca seria aplicável o Direito da União Europeia, em particular o aludido Regulamento (EU) 1215/2012. É nesse pressuposto que o artigo 6º do Regulamento sob referência dispõe que “....a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é (...) regida pela lei desse Estado-Membro”.
Precisamente no mesmo sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2022 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 533/21.5T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se consignou que:
“Impõe-se dizer neste particular que constitui Jurisprudência consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça que o âmbito espacial de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da UE.É o que resulta da interpretação a contrario do art.º 6º, n.º 1 desse Regulamento segundo o qual: “Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”.
(Em geral sobre esta temática, vide ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2019 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 2300/18.4T8PRT.P1.S1; 8 de Junho de 2021 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo nº 20526/18.9T8LSB.L1.S1; 15 de Janeiro de 2019 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 27881/15.0T8LSB-A.L1-A.S1, todos publicados in www.dgsi.pt).
Assim sendo, e ao invés do afirmado e pretendido pela recorrente, torna-se forçoso excluir, para aferir a (in)competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, a aplicação do Regulamento (UE) nº 650/2012, de 4 de Julho de 2012, mormente os seus artigos 21º e 23º, dado que discussão desenvolvida nos autos não incide, como se viu, sobre matéria de natureza sucessória.
A afirmação produzida pela recorrente de que “(...) entende que todas as questões relacionadas com os bens deixados ou pretensamente deixados pela falecida CC devem ser dirimidas no país, denominado Namíbia, onde vivia habitualmente, aquando do seu óbito, tudo de acordo com o citado Regulamento” enferma de um evidente equívoco: a presente acção não se destina a discutir, em primeira linha, o enquadramento jurídico que abrange o fenómeno sucessório da referida autora da sucessão, mas sim, e diferentemente, a questionar a validade de um negócio translativo de bens sitos em Portugal – firmado em 21 de Outubro de 2013 e qualificado de simulado – que a mesma pessoalmente realizou na qualidade de vendedora, em momento temporal em que não se colocava (obviamente) qualquer questão de natureza sucessória respeitante a ela própria (que veio a falecer em .../.../2017).
No mesmo sentido, e para efeitos de aferir da competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente causa, é absolutamente irrelevante que as ora AA. tenham tido, ou não, intervenção no processo de inventário por óbito de CC que se encontra pendente na Namíbia.
Tendo-o feito, essa sua actuação processual, que se prende efectivamente com matéria sucessória, não é a que se encontra, em termos de apreciação substantiva, em discussão nos presentes autos, não integrando o respectivo objecto.
O mesmo sucede com a alegação de que “o Supremo Tribunal da Namíbia já preveniu a competência para conhecer de toda a matéria respeitante à sucessão dos bens deixados pela falecida CC”.
Com efeito, repete-se que a presente acção, e em estreita conformidade com a causa de pedir que a suporta, não versa a matéria sucessória relativa à abertura da sucessão em causa, mas apenas questões de natureza meramente contratual no domínio civil (ainda que com reflexos na composição naquele acervo patrimonial deixado mortis causa).
Por outro lado, o teor da escritura de habilitação feita pelas recorridas serve unicamente, em termos instrumentais, para lhes conferir a imprescindível legitimidade processual activa para a instauração do presente pleito, não se repercutindo na factualidade que aqui concretamente se discute.
Acresce outrossim que o disposto no artigo 2316º do Código Civil, invocado pela recorrente e respeitante à alienação ou transformação de coisa legada, não interfere, por sua natureza, e de modo algum, na atribuição de competência intenacional dos tribunais portugueses.
O que as AA. visam demonstrar, através da forma como concretamente se encontra estruturada a sua causa de pedir e formulado o seu pedido, é que o identificado negócio translativo sobre diversos imóveis foi celebrado com divergência entre a vontade real e a vontade declarada dos contraentes, por via do pacto assumido nesse sentido pelos celebrantes, com o intuito de enganar um terceiro (uma entidade bancária credora da transmitente), nos precisos termos do artigo 240º do Código Civil.
Tal matéria, na sua singularidade própria, nada tem a ver com actos de alienação praticados pela testadora que possam vir a cair na alçada do artigo 2316º do Código Civil, desde logo e na medida em o que verdadeiramente se alega – e que se procura demonstrar - é que inexistiu sequer efectiva e verdadeira vontade da autora da sucessão de transmitir tais bens imóveis à aparente adquirente (tendo permanecido aqueles na sua inteira e exclusiva disponibilidade e não na da transmissária), sendo assim nulo o formal acto de transmissão ou alienação.
Logo, em conformidade com o concreto pedido formulado neste acção e com a respectiva causa de pedir, os bens (em caso da procedência do peticionado) deverão permanecer na esfera jurídica da vendedora e de cujus na sucessão a que as AA. entendem ter sido validamente chamadas, mantendo nesse tocante o respectivo título sucessório, não existindo juridicamente qualquer situação de alienação de bens legados.
Concretamente quanto à questão da atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses na situação sub judice:
Na situação sub judice, a Ré tem a sua sede na República da Namíbia, sendo aplicável o artigo 6º, nº 1, do mencionado Regulamento, que, in casu, defere o critério de apuramento da competência internacional para a lei portuguesa.
Ora, tendo sido realizado em Portugal o negócio jurídico impugnado (compra e venda de imóveis), onde igualmente se situam os bens que constituíram o seu objecto, a competência internacional dos tribunais portugueses é deferida em estreita conformidade com o preceituado no art. 62º, alínea b), do Código de Processo Civil, o qual determina que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da acção quando tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram.
É claro, portanto, que a situação de facto exposta na petição inicial deve integrar-se, plenamente e sem a menor dúvida, na previsão normativa do artigo 62º, alínea b), do Código de Processo Civil.
Logo, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento da presente acção, sobroçando [sic] as razões apresentadas pela recorrente com vista à sua pedida declaração de incompetência absoluta daqueles.
[MTS]