"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/07/2023

Jurisprudência 2022 (233)


Falta de citação;
ónus de arguição*


1. O sumário de RG 15/12/2022 (469/20.7T8AVV-A.G1) é o seguinte:

I - Ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objeto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.

II - Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC.

III - Verifica-se nulidade por falta de citação do réu quando se tenha empregado indevidamente a citação edital (art. 188/1-c do CPC), nomeadamente se tiverem sido omitidas as diligências de averiguações previstas no art. 236º do CPC, tudo com vista a apurar do paradeiro do réu, nomeadamente a informação junto da autoridade tributária e, no caso, entretanto, de informação de ser residente no estrangeiro, ainda deverá ser colhida informação da morada junto dos consulados e embaixadas.

IV - Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).

V - Numa interpretação atualista da lei, atenta a tramitação eletrónica, não pode considerar-se que a mera junção de procuração forense a mandatário judicial é suficiente para sanar aquela nulidade e pôr termo à revelia absoluta, constituindo intervenção processual que faz pressupor o conhecimento do processo, nos termos e para os efeitos do art. 189 do C.P.C.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Vejamos agora se se verifica a alegada falta de citação por se ter ocorrido a citação edital indevidamente e que, conforme conclui o apelante, tem como consequência a «nulidade de todo o processado, nos termos da alínea a) do artigo 187.º do Código de Processo Civil».

Quid iuris?

Em primeiro lugar, dir-se-á que se avançou para a citação edital por se ter considerado que a situação processual era a de «ausência do citando em parte incerta», no quadro do disposto no art.º 236.º do CPCiv..

Estabelece este preceito legal (no seu n.º 1) que:

«Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da citação edital, junto das autoridades policiais.».

Assim, por considerada «ausência do citando em parte incerta», mostrava-se, nesta ótica, «impossível a realização da citação» por via pessoal, restando, então, aberta a perspetiva da citação edital, como ultima ratio.

Lê-se no sumário do AC do STJ de 15-02-2022 (relator Jorge Silva):

IA citação edital é remedeio para evitar a paralisação dos processos, pelo que, apenas, dela deve lançar-se mão quando seja impossível o contacto pessoal com o citando, ou contacto direto por outro meio, dada a multiplicidade de meios de contacto na atualidade.

II - A Constituição, consagrando o respeito pelo direito de defesa, no art. 20º, pretende alcançar a garantia de que o réu/demandado tenha efetivo conhecimento do processo contra ele instaurado.”.

Mas se a situação era essa – de frustração da citação pessoal, por via postal ou mediante contacto pessoal (cfr. art.º 231.º do NCPCiv.), então impunha-se a obtenção, por quem tinha a tarefa da realização da citação, de informações sobre o último paradeiro ou residência conhecida do citando ausente em parte incerta, como estabelece o citado art.º 236.º do NCPCiv., designadamente, se absolutamente indispensável, junto das autoridades policiais.

Ora, no caso sub judicio, ressuma dos autos que o AE deslocou-se à morada indicada na pi e informou os autos de que ninguém se encontrava em casa e colhidas informações consignou que o Réu estaria a viver em ....

E mais: aquele agente de execução ainda ventilou a hipótese de lhe ser dada autorização para consultar a autoridade tributária, mas nada foi dito.

Apenas foram consultadas algumas das entidades das previstas no artigo 236º do CPC, a segurança social e registo automóvel e IMT e sendo a mesma a morada onde havia sido frustrada a citação postal e pessoal, a secção, conforme despacho judicial, procedeu à citação edital, sem curar de averiguar junto das outras entidades como a autoridade tributária e como era dada informação de ser residente em ..., junto dos consulados ou embaixadas (vide neste sentido AC RL de 09.09.2021 (relator FF).

Isto é, não estava afastada a possibilidade de o mesmo residir noutra morada.

Conclusão esta que deixa instável – como logo tem de inferir-se – o dito entendimento de que se tratava de um caso de ausência do citando em parte incerta, posto essa ausência ainda não poder ter-se por seguramente demonstrada, o que vem a ser comprovado como ressuma do documento junto com as alegações do apelante donde consta na autoridade tributária uma morada em ... (!).

Por isso, foi prematuro avançar para a citação edital, último recurso dos instrumentos de citação, visto que não estaria claro que a situação fosse de ausência do citando em parte incerta.

Em suma, dos autos ressuma que outras diligências poderiam e deveriam ter sido levadas a cabo, com vista a apurar do paradeiro do réu, nomeadamente a informação junto da autoridade tributária.

E, julgando que o réu estaria em ..., conforme informação colhida pelo AE, podiam ter sido feitas averiguações junto das entidades competentes, nomeadamente embaixada ou consulado.

Sendo que perentoriamente ninguém afirmou (agente de execução ou secretaria), verbalmente ou por escrito, que o réu na ação se encontrava em parte incerta.

Atendendo à verificada incerteza sobre o paradeiro do citando ou se estava ausente em parte incerta, devendo prevalecer a perspetiva do cabal exercício do contraditório e possibilidade de utilização dos inerentes meios de defesa do réu, parece-nos que a situação dos autos justificava claramente que se explorassem outras diligências.

Só então, com mais detalhada informação, se poderia decidir, sem ameaça para o direito de defesa do citando, sobre a justeza/necessidade da citação edital.

Donde que seja inelutável a conclusão de que foi prematura a ocorrida adesão à citação edital e ordenada por despacho, verificando-se assim nos termos do art. 188º, nº1, al. c) do CPC nulidade por falta de citação por se ter empregue indevidamente a citação edital.

Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Como referia o Prof. A. dos Reis (Comentário, vol. 2º, pág. 446/447 e CPC Anot., I, 3ª ed., pág. 313) “para a arguição da falta de citação não há prazo; enquanto o réu se mantiver em situação de revelia, ou melhor, enquanto se mantiver alheio ao processo, está sempre a tempo de arguir a falta da sua citação, só perdendo o direito de o fazer se intervier no processo e não reagir imediatamente contra ela”.

Relevante será, pois, e antes de mais, definir o que deve entender-se por intervenção da parte na causa, sendo que é na primeira intervenção processual que deve ser “logo” arguida a falta de citação.

Na jurisprudência existe uma orientação que defende que a junção da procuração a advogado constitui intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do processo que a mesma permite, de modo a presumir-se que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação (neste sentido, AC da RE de 20-12-2018, proc. 4901/16; Ac. Rl de 20-04-2015, proc. 564/14, Ac da RE de 16.04.20125, proc. 401/10), entendimento esse seguido pelo juiz a quo.

A esta orientação opõe-se outra corrente, segundo a qual a forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso aos direito, no caso das ações tramitadas eletronicamente, é fazer uma interpretação atualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação da procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique, direta e necessariamente, a preclusão da possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação (neste sentido, Ac RP de 9-1-20, proc. 2087/17, RC 24-04-2018, proc. 608/10, Acórdão da Relação de Évora de 3.11.2016; os Acs. da Relação de Lisboa de 6.7.2017, e de 05.11.2019, e o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 29.6.2017 e ainda o AC desta RG de 23-01-2020, proc. 17/19.1T8PVL.G1, no qual a agora relatora foi ali adjunta, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim, como vimos defendendo, entendemos que uma interpretação atualista da lei (em consonância com o disposto no artº 9º, nº1, in fine, do Código Civil) leva a considerar como estando desatualizada a corrente jurisprudencial que pugnava por reputar como intervenção relevante - para efeitos do actual artº 189º, do Código de Processo Civil - a simples apresentação de uma procuração.

Isto é, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 3-11-2016, acima referido: “Tendo presente a realidade social, económica e a própria evolução tecnológica, inclusivamente na dimensão do acesso ao direito através do recurso a ferramentas informáticas, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, estando a hermenêutica actualista legitimada pelo Código Civil e pela Teoria do Direito, o julgador tem de tomar em consideração as circunstância de tempo e de modo em que a lei deve ser aplicada e, como corolário lógico, no domínio da Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais preconizada pela Portaria nº 280/2013, de 26/08, não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração, que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura, implica a sanação de eventual falta de citação de uma das partes e preclude a hipótese de suscitar a competente nulidade”.

Desta forma, entendendo que a junção da referida procuração não é suficiente para pôr termo à revelia absoluta, nem meio idóneo de tomar conhecimento do processo, de modo a presumir-se que logo aí o réu prescindiu, conscientemente, de arguir a falta de citação, é de concluir que não ficou então sanada a eventual nulidade da citação.

Destarte, está demonstrada a ocorrência da nulidade por falta de citação e, por consequência, a nulidade da sentença que veio a ser proferida na sequência e no pressuposto da regularidade de validade da citação.

Impõe-se, como tal, anular todo o processado e consequentemente, a sentença proferida nos autos, determinando que os autos baixem à 1ª instância para que aí seja concedido ao réu/recorrente o prazo de que dispõe para contestar, prosseguindo depois o processo a tramitação processual subsequente que se imponha."

*3. [Comentário] Já houve oportunidade de mostrar discordância perante a necessidade de uma interpretação actualista do art. 189.º CPC (clicar aqui).

MTS