Processo de insolvência;
exoneração do passivo restante*
I. O sumário de RL 9/1/2023 (2943/22.1T8FNC-B.L1-1) é o seguinte
1. Aceitando-se a competência internacional do tribunal português (art.ºs 59.º e 62.º do CPC) e considerando que se verifica o condicionalismo aludido no nº 1 do art.º 294.º do CIRE, isto é, o devedor, pessoa singular, não tem em Portugal o seu domicílio, nem o CIP, conclui-se que o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português: o legislador permite que o interessado possa, ainda assim, instaurar o processo de insolvência em Portugal, limitando, no entanto, o seu objeto, que se restringe aos bens do devedor situados em território nacional.
2. As várias normas constantes do capítulo III, do Título XV, do CIRE não são todas coincidentes no seu campo de aplicação: a aplicação de cada uma dessas normas pressupõe sempre que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional, mas, em segunda linha, é necessário aferir se a hipótese que se depara ao julgador configura, ou não, uma situação subsumível à disciplina jurídica vertida no Regulamento (EU) nº 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.
3. Centrando-nos no art.º 295.º do CIRE a aplicação das “especialidades” aí referidas pressupõe que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular ou, noutra designação, de um processo territorial (nº 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º, compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União, mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva).
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2. O presente processo de insolvência foi instaurado em Portugal, por apresentação da devedora, em 31-05-2022 e, como decorre dos autos, o tribunal recorrido não questionou a sua competência para a tramitação dos autos e apreciação respetiva, nem qualquer interveniente processual deduziu questão atinente à competência internacional do tribunal português [---], sendo que a hipótese que se nos depara é a seguinte:
- A requerente/devedora, ora apelante, tem nacionalidade portuguesa;
- À data em que se apresentou à insolvência residia no Reino Unido, situação que se mantém [---];
- A requerente /devedora tem bens em Portugal, nomeadamente, é titular de uma quota ideal de herança que engloba bens imóveis;
- Alegando a apelante que “o processo de insolvência foi aberto em Portugal, encontrando-se aqui localizado o único credor da recorrente e os seus bens, tendo neste país sido contraída a divida indicada nos presentes autos”, invocando ainda na petição inicial que corre termos contra si, instaurado em Portugal, ação executiva tendo em vista a cobrança do crédito no valor de €18.557,81, que indica ser o seu único passivo, tendo como único credor a exequente daquele processo [---].
Donde, à data de instauração da ação, momento processualmente relevante para aferição dos pressupostos de natureza processual, a devedora não tinha o seu domicílio em Portugal – cfr. os art.ºs 82.º a 88.º do Cód. Civil – tendo-o no Reino Unido, que já não é um Estado-Membro da União Europeia, salientando-se que, a essa data, já tinha terminado o período de transição para a consolidação da saída (21-12-2020), em que ainda seria aplicável no Reino Unido o direito da União Europeia, conforme “Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte da União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica” (2019/C 384 I/01), publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 12-11-2019.
Não se conhecendo qualquer convenção internacional celebrada entre o Estado Português e o Reino Unido, incidindo sobre esta matéria, aceita-se, tendo em conta a relação jurídica tal como ela foi configurada pela apelante na petição inicial e o disposto nos art.ºs 59.º e 62.º, alíneas b) e c) do CPC que o tribunal recorrido, admitindo a tramitação dos autos, proferisse decisão sobre a insolvência, assumindo-se como internacionalmente competente [---].
No entanto, não se cuida aqui de aferir de questão atinente à (in)competência internacional do tribunal português e da aferição de elementos/fatores de conexão, de natureza pessoal ou real, mas, exclusivamente, da caraterização do presente processo como processo particular de insolvência, com as especificidades elencadas no art.º 295.º que, sob a epígrafe “[e]specialidades de regime”, preceitua:
“Em processo particular de insolvência:
a) O plano de insolvência ou de pagamentos só pode ser homologado pelo juiz se for aprovado por todos os credores afectados, caso preveja uma dação em pagamento, uma moratória, um perdão ou outras modificações de créditos sobre a insolvência;
b) A insolvência não é objecto de qualificação como fortuita ou culposa;
c) Não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante”.
Acentuando-se que essas “peculiaridades que assistem ao processo particular” se colocam “no seu confronto com o processo comum de insolvência”, mas, ainda assim, “não há uma forma especial para o processo particular de insolvência” [Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015, Lisboa: Quid Juris, p. 966.].
O tribunal recorrido deu resposta positiva, considerando estarmos perante um processo particular de insolvência e, decretando a insolvência da devedora, indeferiu liminarmente a pretensão de exoneração, fundamentando como segue:
“Nos termos do art.º 294.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos seus principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
No caso em análise, a requerente reside no Reino Unido, país para o qual emigrou, no qual se encontra a desempenhar a sua actividade profissional.
Deste modo, e tomando em consideração a noção de domicílio expressa no art.º 82.º do Código Civil, resulta que, tal como assumido pela própria, o domicílio da requerente é no Reino Unido.
Por outro lado, os factos alegados pela requerente não permitem de todo concluir que esta tem o centro dos seus principais interesses em Portugal.
O mero facto de a requerente ter nacionalidade portuguesa e até ser titular de um quinhão hereditário em território português, só por si, não é de molde a integrar tal conceito.
Com efeito, de acordo com o art.º 7.º, n.º 2, entende-se por centro dos principais interesses aquele em que o devedor os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros.
Sendo o devedor pessoa singular, a doutrina tem acolhido o lugar da residência habitual, ou da principal residência habitual, tendo mais que uma, como o elemento de mais fácil concretização (o determinável ou cognoscível por terceiros).
A nosso ver é o critério que deve prevalecer na falta de outros elementos que sugiram que o centro principal de interesses não corresponde ao do local de residência habitual – pode muito suceder que, por exemplo, o devedor tenha residência habitual num Estado-Membro e, directamente ou por interposta pessoa, tenha a administração de sociedades ou de estabelecimentos sediados noutro Estado-Membro. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 2304/13.3TBVCT-A.G1, de 22/05/2014, disponível em www.dgsi.pt)
Assim, nos termos do art.º 294.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o presente processo de insolvência abrange apenas os bens situados em território português.
E, nesta decorrência, de acordo com o art.º 295.º, alínea c), do mesmo diploma, não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante.
Deste modo, resta indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante”.
Entendemos que, tendo por referência exclusivamente a avaliação da admissibilidade da formulação de pedido de exoneração do passivo restante pela devedora, não procede a argumentação expendida na decisão recorrida [---].
Dispõe o art.º 294.º, que o tribunal recorrido convoca, sob a epígrafe “[p]ressupostos de um processo particular”:
“1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
2 - Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
3 - Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário”.
Aceitando-se a competência internacional do tribunal português, nos moldes supra indicados e considerando que se verifica o condicionalismo aludido no nº 1 do referido preceito [---], conclui-se que o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português: o legislador permite que o interessado possa, ainda assim, instaurar o processo de insolvência em Portugal, limitando, no entanto, o seu objeto, que se restringe aos bens do devedor situados em território nacional.
Daqui não segue que deva aplicar-se o disposto no art.º 295.º, afigurando-se nos que as várias normas do capítulo III do Título XV, não são todas coincidentes no seu campo de aplicação. Assim, a aplicação de cada uma dessas normas pressupõe sempre que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional [---] mas, em segunda linha, é necessário aferir se a hipótese que se depara ao julgador configura, ou não, uma situação subsumível à disciplina jurídica vertida no Regulamento (EU) nº 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015 [---] [---] [---]; aliás, essa constatação é evidente em face do nº 2 do art.º 294.º, preceito que, notoriamente, não é compatível com o disposto no art.º 3.º, nº 2 do Regulamento [---], de sorte que uma leitura articulada dos dois regimes e tendo em conta o disposto no art.º 275.º, passa por circunscrever a sua aplicabilidade, exclusivamente, às situações internacionais não abrangidas pelo Regulamento [---] [ ---]. Conclusão que também ressalta do nº 3 do art.º 294.º, impressionando a referência daí constante – “[s]sempre que seja aplicável o Regulamento (…)” – o que deixa antever a necessidade de ponderação da aplicação de cada uma das normas desse Capítulo no contexto do Regulamento, ou à margem do mesmo [---].
Centrando-nos, então, no referido art.º 295.º, atento o objeto do presente recurso, a aplicação das “especialidades” desse regime pressupõe, em nosso entender, que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular, ou, noutra designação, de um processo territorial (nº 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º [---] [---], compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União [---] [---], mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 [---] [---], cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva).
Fica, assim, salvaguardada a igualdade de tratamento dos cidadãos no que concerte à possibilidade de o devedor insolvente obter um perdão de dívida (art.º 13.º da CRP) [---]; o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art.º 245.º, nº 1), permitindo-se ao devedor “um novo começo (fresh start), recuperando assim da sua situação de insolvência” [Luís Meneses Leitão, 2009, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, p.319.]; esse foi, conforme expresso no preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, o objetivo do legislador. Relativamente a pessoas singulares, cidadãos de um Estado- Membro da União, a que se aplica o regime do Regulamento, a concessão desse benefício já é assegurada no denominado processo territorial, a correr termos no Estado-Membro correspondente ao domicílio do devedor ou em que se situa o CIP, por via da aplicação do regime da Diretiva, pelo que não tem cabimento o tratamento dessa matéria no processo secundário, de âmbito limitado. O mesmo já não acontece quando a situação de insolvência transfronteiriça ou internacional se coloca relativamente ao Estado Português e outro Estado que se situa fora da União Europeia e/ou em que não é aplicável o Regulamento, não se vislumbrando razões para, nesses casos, relativamente ao processo que corre termos em Portugal, o devedor não poder usufruir do mesmo direito, beneficiando da mesma oportunidade de exoneração do passivo restante, se verificado o condicionalismo respetivo.
Adere-se, pois, ao entendimento sufragado no acórdão do TRC de 01-06-2020 em que, numa situação que temos por similar à dos autos, se considerou que “[o] critério estabelecido nos art.ºs 294.º a 296.º do CIRE apenas tem aplicação quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro, e quando, verificando-se tal situação de insolvência transfronteiriça, o Estado Português não é o internacionalmente competente para o chamado “processo de insolvência principal [---] [---].
Em suma, com a delimitação feita, conclui-se que não se aplica ao caso o regime do processo particular de insolvência, inexistindo fundamento para, com base no art.º 295.º, alínea c), indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; os autos devem, pois, prosseguir os normais trâmites para apreciação do pedido de exoneração formulado pela devedora, sem prejuízo, obviamente, da eventual existência de outros fundamentos para o indeferimento liminar desse pedido, o que aqui não esteve em apreciação."
*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, as razões apresentadas no acórdão para se concluir que a exclusão da exoneração do passivo restante que consta do art. 295.º, al. c), CIRE não se aplica no caso sub iudice não são nada convincentes.
b) O raciocínio utilizado como fundamento do decidido no acórdão parece ser o seguinte:
-- O art. 295.º CIRE só se aplica a insolvências transfronteiriças ou internacionais com referência exclusiva a Estados-Membros da União Europeia;
-- Logo, no caso concreto, o art. 295.º, al. c), CIRE não se aplica.
Ora, o disposto no art. 275.º CIRE (que define o âmbito de aplicação das normas de conflitos constantes do CIRE, entre as quais as que se encontram nos art. 294.º a 296.º CIRE sobre o "processo particular de insolvência") contraria aquela solução sobre o âmbito de aplicação do art. 295.º CIRE. Tenha-se presente o que estabelece aquele primeiro preceito:
"1 - Os processos regulados neste Código a que se aplica o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, regem-se pela disciplina vertida naquele instrumento e, em tudo quanto a não contrarie, pelo presente diploma.
2 - As disposições do presente título são aplicáveis apenas na medida em que não contrariem o estabelecido no Regulamento referido no número anterior ou noutras normas de Direito da União Europeia ou em tratados e convenções internacionais."
Disto não se pode concluir que o art. 295.º CIRE só se aplica entre Estados-Membros da União Europeia, isto é, quando seja aplicável o Reg. 2015/848. O que há que concluir é exactamente o contrário: o art. 295.º CIRE só se aplica quando o Reg. 2015/848 não for aplicável, seja porque o caso concreto não cabe no seu âmbito de aplicação, seja porque aquele instrumento europeu é omisso sobre a questão a resolver.
Sendo assim, nada justificaria que o disposto no art. 295.º, al, c), CIRE não fosse aplicável à questão da exoneração do passivo restante em análise no acórdão.
c) Resta acrescentar que não é nada estranho que a exoneração do passivo restante não possa ser concedida num "processo particular de insolvência", dado que o pedido dessa exoneração afecta, quer durante o período de cessão, quer após a concessão da exoneração todos os créditos sobre o insolvente (art. 245.º, n.º 1, CIRE).
[MTS]