"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/07/2023

Jurisprudência 2022 (218)


Processo executivo;
responsabilidade do exequente*


1. O sumário de RC 25/10/2022 (2159/21.4T8SRE-A.C1) é o seguinte:

I - No artigo 858º do CPC, tal como sucede com o regime da litigância de má fé, a lei distingue entre o uso reprovável do processo ou dos meios processuais, isto é, a ofensa de valores de natureza pública - o que implica o sancionamento da parte no pagamento de uma multa - e as consequências danosas que poderão advir dessa conduta para a parte contrária, ou seja, a responsabilidade civil do litigante. Tratam-se [sic], por isso, de regimes distintos e autónomos, na medida em que qualquer deles pode ser aplicado sem dependência do outro.

II – A responsabilidade do exequente prevista no artigo 858º do CPC depende da   verificação cumulativa de três requisitos: 1) que a penhora tenha sido efectuada sem a citação prévia do executado, por imposição legal ou a requerimento do exequente; 2) que o executado haja deduzido oposição à execução, imputando ao exequente uma conduta dolosa, ou com negligência grosseira tendente a causar-lhe danos ou prevendo a possibilidade desse resultado;  3) que o juiz não só acolha os fundamentos invocados na oposição, como além disso reconheça que o exequente agiu sem a prudência normal exigível.

III - Verificados que estejam estes requisitos, e tendo o executado deduzido oposição por embargos – que procedeu -, e neles peticionado neste particular apenas a condenação do embargado/exequente, em multa, é no apenso de embargos que o pedido deve ser decidido.

IV- Tal pedido irreleva para a determinação do valor da causa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No ponto V) do pedido de embargos, a Embargante – I..., Lda  peticionou

Condenar a Executada ao pagamento de coima nos termos do Art. 858º do CPC, em quantia correspondente a 10% do valor da execução, ou seja, € 3.642,00 (três mil seiscentos e quarenta e dois euros), por ter actuado sem a prudência normal a que se encontrava obrigada, uma vez que resulta do título executivo apresentado pela Exequente, a inexistência de sentença condenatória que obrigue a Executada, a pagar à Exequente, a quantia de € 33.108,87.

A douta sentença proferida vem recorrida na parte em que concluiu ser legalmente inadmissível o conhecimento de tal pedido. [...]

* [...]

Estamos agora em condições de melhor enquadrar a situação dos autos à luz das normas aplicáveis.

*

Dispõe o art. 858.º que "Se a oposição à execução vier a proceder, o exequente, sem prejuízo da eventual responsabilidade criminal, ­responde pelos danos culposamente causados ao executado, se não tiver actuado com a prudência normal, e incorre em multa correspondente a 10% do valor da execução, ou da parte dela que tenha sido objecto de oposição, mas não inferior a 10 UC, nem superior ao dobro do máximo da taxa de justiça.".

Corresponde, com alterações, ao anterior artigo 819º na redacção do DL 38/2003 de 8-3.

*

A incorrência na responsabilidade do exequente prevista no artigo 858º do CPC depende da verificação cumulativa de três requisitos:

1- que a penhora tenha sido efectuada sem a citação prévia do executado (quer seja por disposição legal quer seja por via de requerimento do exequente);

2- que o executado haja deduzido oposição à execução, imputando ao exequente uma conduta dolosa, ou com negligência grosseira tendente a causar-lhe danos ou prevendo a possibilidade desse resultado; e

3- que o juiz não só acolha os fundamentos invocados na oposição, como além disso reconheça que o exequente agiu sem a prudência normal exigível.

Relativamente ao requisito 3º, entende-se que o legislador quis adoptar um conceito idêntico ao da má fé que decorre do artigo 456º do m.d. – cfr. Ac. TRL de 22-2-2006, proferido no p. nº 6528/2005-4, a que se pode aceder no site da dgsi.net.

No caso dos autos a Exequente, A..., S.A., intentou acção executiva com processo comum para pagamento de quantia certa (Ag. de Exec.), demandando I..., Lda,  trazendo como título executivo alegada “decisão judicial condenatória”.

Trata-se de execução de sentença prolatada em processo declarativo instaurado no tribunal de comarca, em que a Exequente demandou a Executada - Proc. nº 2180/16...., que correu no Juízo Central ... -Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....

Dela foram interpostos recursos para os Tribunais Superiores.

Houve penhora em saldo bancário de conta pertença da Executada.

Ordenou-se a notificação da Executada, nos termos do disposto nos artigos 626º e 856º do CPC, para em 20 dias, pagar ou deduzir oposição à execução e/ou à penhora.

A tramitação determinada por essas disposições legais para a execução em apreço é a prescrita para a forma sumária, havendo lugar à notificação do executado após a realização da penhora.

Cfr. facticidade do ponto 3)- do relatório supra.

Verifica-se o requisito 1º.

A Executada foi notificada da penhora e para deduzir oposição.

Deduziu oposição.

Cfr. facticidade do ponto 4)- do relatório supra.

Verifica-se o requisito 2º.

A Senhora Juiz julgou procedentes os embargos, decidindo: não há qualquer sentença condenatória que suporte a execução. Ou seja, temos uma sentença judicial, mas que não condena a “I..., Lda”, a pagar à “A..., S.A.” o montante de € 33.108,87 euros.

Desta decisão não se recorre, pelo que transitou em julgado.

O juiz acolheu os fundamentos invocados na oposição – conforme factualidade do ponto 8)- do relatório supra.

Verifica-se a 1ª parte do 3º requisito de aplicação ao caso da norma do artigo 858º do CPC.

Quanto à 2ª parte do 3º requisito, temos:

A decisão recorrida não conheceu dela.

Não conheceu dela com os seguintes fundamentos:

1º- Essa responsabilidade processual depende do preenchimento de vários pressupostos, desde logo a execução tem de fundar-se em título executivo extrajudicial (o que não sucede neste caso, pois o título apresentado é uma sentença judicial) e ter sido julgada procedente a oposição à execução.

2º- Acresce ainda vários requisitos de natureza substantiva, que são os pressupostos gerais da responsabilidade civil por factos ilícitos, a saber: facto voluntário, ilicitude, culpa e danos.

3º- Mas os embargos de executado não são o meio processual adequado à apreciação do pedido de condenação da exequente no pagamento de indemnização, dado que tal implicaria a dedução de pedido reconvencional que extravasa as finalidades do apenso declarativo dos embargos.

4º- O conhecimento da responsabilidade civil da exequente pela dedução de execução injusta está excluído da competência material dos Juízos de Execução, por não se integrar no art.º 129.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário.

Estes argumentos são facilmente rebatidos uma vez que se partiu do pressuposto de que a Embargante formulou pedido de condenação da Embargada em pedido cível de indemnização, o que não é verdade; se aplicou à situação dos autos a norma do artigo 866º do CPC, norma esta que dispor para a execução para entrega de coisa certa, o que não é o caso; a apreciação da pretensão da Embargante implicaria a dedução de uma reconvenção, o que não é o caso pois ao pedido da Embargante já respondeu a Embargada; e que finalmente estaria fora do âmbito da competência material dos Juízos de Execução.

O Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra integra, como Secção de Instância Central, a Secção de Execução com sede em Coimbra – artigo 75º, 1, i) do DL nº 49/3014, de 27 de Março, que regulamenta a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Sobre a competência dos Juízos de Execução dispõe o artigo 129º, 1 da Lei nº 62/2013 –: compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no CPC.

Já vimos supra na lição de Marco Carvalho Gonçalves que, no artigo 858º do CPC, tal como sucede com o regime da litigância de má fé, a lei distingue entre o uso reprovável do processo ou dos meios processuais, isto é, a ofensa de valores de natureza pública - o que implica o sancionamento da parte no pagamento de uma multa - e as consequências danosas que poderão advir dessa conduta para a parte contrária, ou seja, a responsabilidade civil do litigante. Tratam-se, por isso, de regimes distintos e autónomos, na medida em que qualquer deles pode ser aplicado sem dependência do outro.

A Embargante apenas pediu a condenação da Embargada em multa, tendo esta já tido oportunidade de responder, como efectivamente respondeu.

Não se vê que nestas condições, e face a este preciso pedido, e face a este normativo, se possa defender a declinação da sua apreciação nos embargos de executado.

A tal não obsta o artigo 129º, 1 da Lei nº 62/2013.

Neste contexto, a decisão recorrida não pode subsistir."

[MTS]