Articulados; aperfeiçoamento;
pedido reconvencional
1. O sumário de RE 15/12/2022 (3183/18.0T8STB.E1) é o seguinte:
I - Uma das finalidades do despacho pré-saneador é a de o Juiz providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, o que ocorrerá, no âmbito de aplicação da norma do n.º 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil, quando o juiz se confronte com articulados irregulares que careçam de requisitos legais ou que não venham instruídos com documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
II - Tendo réu alegado os factos pertinentes à demonstração do direito a que se arroga e pedido na contestação que se decidisse quais as benfeitorias realizadas no imóvel e o seu valor, assim como o crédito de que é titular – para se ordenar o prosseguimento dos autos de inventário para a operação de partilha do que se vier a apurar –, mas não tendo formalizado reconvenção, sob o entendimento de que tal não era admissível na acção de simples apreciação negativa, concluindo o julgador em sentido contrario e que sempre se impunha acautelar entendimento diverso, deve, ao abrigo do disposto nos artigos 590º, n.º 3, 6º e 193º, n.º 3, do Código de Processo Civil, convidar o réu a deduzir a correspondente reconvenção, com observância do formalismo legal.
III - A vantagem patrimonial adveniente de benfeitorias úteis para o titular da coisa, em caso de divórcio, confere ao outro cônjuge o direito a ver-se indemnizado, segundo as regras do enriquecimento sem causa, na medida da sua contribuição para a valorização do imóvel.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Da ilegalidade do despacho de convite à dedução de reconvenção
1. Com o recurso da sentença vem a A./Recorrente impugnar o despacho de 29/05/2018, que convidou o R. a apresentar reconvenção.
O despacho em causa é do seguinte teor:
«Nos presentes autos de simples apreciação negativa (pedido de inexistência do crédito), veio o réu contestar e peticionar a final que se julgue improcedente o pedido da autora e se declare quais as benfeitorias realizadas e seu valor, assim como o crédito de que ele é titular.
Coloca-se antes de mais a questão, já debatida nos articulados, da necessidade ou não de pedido reconvencional.
Não se desconhece a existência de jurisprudência no sentido de que «nesta sede da simples apreciação, o âmbito da acção está confinado à mera declaração da existência ou inexistência do direito, pelo que se entende ser redundante a dedução de pedido reconvencional por parte do Réu, pois a mesma não constitui nenhuma mais-valia perante a eventual procedência da defesa que vier a ser deduzida, constituindo esta o contra ponto da posição do Autor ao pedir a declaração de inexistência do direito que o Réu se arroga.» - acórdão do STJ, de 25.02.2014, processo 251/09.2TYVNG-H.P1.S1, www.dgsi.pt.
Porém e salvo o devido respeito, afigura-se antes que a improcedência deste tipo de acção, na ausência de pedido reconvencional, não determina que seja declarada a existência do direito – assim, acórdão do TRL, de 04.07.2013, processo 563/12.8TBSSB.L1-2, www.dgsi.pt.
Na verdade, “se o réu quiser afirmar a existência da situação jurídica (que o autor pretende ver negada) e não somente a falta de prova da inexistência dessa situação) deve formular um pedido reconvencional: se esse pedido reconvencional for julgado procedente, tendo o réu logrado provar o facto constitutivo da situação jurídica alegada na reconvenção (…) a acção de simples apreciação é julgada improcedente, mas fica estabelecida a existência da situação negada pelo autor (…)” - Remédio Marques, «A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto», 2ª ed, pág. 120.
Pois, como também explica Teixeira de Sousa: «Nessa acção, como em qualquer outra, incumbe ao autor provar os factos invocados como causa de pedir (que, no caso concreto, é constituída pelos factos impeditivos ou extintivos do direito alegado pelo réu ou pelos factos pelos quais o autor retira a inexistência daquele direito); se não conseguir realizar essa prova, a acção é julgada improcedente, ou seja, o tribunal não declara inexistente o direito alegado pelo réu. Mas o réu também pode obter nessa mesma acção a declaração da existência do direito que se arroga: nessa hipótese, tem de formular o correspondente pedido de apreciação (positiva) desse direito e alegar e provar os respectivos factos constitutivos (…) Deve atentar-se que a improcedência do pedido do autor, não implica o reconhecimento de que o direito invocado pelo autor (e agora negado) pertence ao réu (…)».
Esclarecendo ainda este autor, em comentário ao citado acórdão do STJ, de 25.02.2014, que a solução reside em entender que:
i) O autor tem o ónus de alegar – e, em caso de impugnação pelo réu, provar – os factos impeditivos, modificativos ou extintivos que constituem a causa de pedir do seu pedido de declaração da inexistência de um direito ou facto;ii) O réu pode limitar-se a impugnar os factos alegados pelo autor e a procurar obter (apenas) a improcedência da causa com base na contraprova ou na prova do contrário daqueles factos;iii) O réu pode ainda, além de procurar obter a improcedência da causa, pretender obter o reconhecimento do seu direito; nesta hipótese, deve deduzir o respectivo pedido reconvencional, aplicando-se então (mas apenas então) o disposto no art. 343.º, n.º 1, Código Civil (https://blogippc.blogspot.com/2014/03/accoes-de-apreciacao-negativa-e-onus-da.html)
No mesmo sentido, veja-se igualmente o acórdão do STJ, de 23.01.2001 - Revista n.º 3364/00 - 1.ª Secção, citado pela autora na réplica e que se mostra assim sumariado:
«I - Numa acção de declaração negativa, o réu tem o ónus do seu direito para assim fazer improceder o pedido do autor de que se reconheça que o direito do réu não existe.II - Mas, para o réu obter nessa acção o reconhecimento do seu direito e a condenação tem de deduzir contra o autor o correspondente pedido reconvencional (…)»
Face ao que fica exposto, e acompanhando-se os descritos argumentos da doutrina e jurisprudência no sentido da necessidade de formulação de pedido reconvencional, o que sempre importaria acautelar atenta a existência de entendimentos diversos, entendo que deverá o réu ser convidado a deduzir a correspondente reconvenção, com observância do legal formalismo, o que determino nos termos do art. 590º e 6º do CPC.
Prazo: 15 dias.
Notifique.»
2. Diz a apelante que “o convite dirigido ao réu para apresentar reconvenção pelo despacho de 29.05.2018 não tem suporte legal, antes viola o disposto no n.º 3 do artigo 590º do CPC e, portanto, deve tal despacho, nesta parte, ser revogado, ordenando-se o desentranhamento/apagamento da reconvenção”, porquanto “…, deduzir, ou não, reconvenção, é uma opção do réu em que o juiz não deve interferir e a contestação que omite a reconvenção nos casos em que a lei a permite não é, por isso, um articulado padecente de irregularidades” (cf. conclusão 1.ª)
Entende ainda a apelante que “o recurso não está, nesta parte, interditado pelo disposto no nº 7 do artigo 590º do CPC, pois que o despacho sobre o qual incide não tem acolhimento em nenhum dos segmentos deste artigo e, face ao disposto no nº 3 do artigo 644º, também do CPC, é este o momento e local próprio para impugnar tal despacho” (cf. conclusão 2ª).
Vejamos:
3. No âmbito dos poderes de gestão inicial do processo conferidos ao juiz estabelece-se no 590º do Código de Processo Civil que “3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa”, e que “4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”, acrescentando-se que “7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.” [...]
Como resulta dos citados preceitos uma das finalidades do despacho pré-saneador é a de o Juiz providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, o que ocorrerá, no âmbito de aplicação da norma do n.º 3, quando o juiz se confronte com articulados irregulares que careçam de requisitos legais ou que não venham instruídos com documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
Neste contexto, como salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, Almedina 2020. Pág.701): “…, pode dizer-se que os articulados irregulares encerram duas categorias: os irregulares propriamente ditos e os documentalmente insuficientes (cf. Paulo Pimenta, ob. cit., p. 234).
(…) Na primeira situação, estão os articulados carecidos de requisitos legais, desde logo aqueles cuja falta, sendo notada, implica a recusa do recebimento da petição inicial pela secretaria, designadamente a identificação das partes, a indicação do valor da causa e a indicação da forma do processo (artigo 578º). São, igualmente, requisitos legais dos articulados, entre outros, a articulação da matéria de facto (artigo l47, n.º 1), a especificação separada das excepções deduzidas (artigo 572º alínea c)), a dedução discriminada da reconvenção (artigo 583º, n.º l) e a indicação do valor da reconvenção (ar. 583º, n.º 2).”
Ora, no caso em apreço, verifica-se que na contestação o R., efectivamente, não deduziu formalmente reconvenção, não o tendo feito por haver entendido que nas acções de simples apreciação negativa não tem, em principio, cabimento a defesa por excepção nem sequer a dedução de reconvenção, mas apenas a alegação dos factos constitutivos do direito que o réu se arroga ou dos sinais demonstrativos da existência do facto que afirma, “já que, a improcedência da acção de mera apreciação negativa, determina, só por si, o reconhecimento dos direitos invocados pelo réu”. Razão pela qual, acrescentou, “no âmbito da contestação, invocar-se-á os direitos, sem que tal, formalmente, se designe por “reconvenção”” (cf. artigos 18 a 20 da contestação inicialmente apresentada).
E, com este entendimento, aduziu o R. os factos tendentes a demonstrar a existência do seu direito às benfeitorias e, a final, além de pedir a improcedência dos pedidos deduzidos pela A., pediu que se decidisse quais as benfeitorias realizadas e o seu valor, assim como o crédito de que o réu é titular, para se ordenar o prosseguimento dos autos de inventário para a operação de partilha do que se vier a apurar.
Resulta claro da contestação que o R. pretendeu alcançar os mesmos efeitos que decorreriam da dedução da reconvenção, embora sem a formalização de tal pretensão, nos termos previstos no artigo 583º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Assim, e entendendo o julgador, pelas razões que enunciou, que era possível a dedução de reconvenção nas acções de simples apreciação negativa e/ou que se devia acautelar essa possibilidade, convidou o R. a deduzir reconvenção.
Neste contexto, em que o R. alegou na contestação os factos que servem de suporte ao pedido reconvencional, mas sem deduzir separadamente tal pretensão, o despacho convite proferido, constitui um convite ao suprimento das irregularidades do dito articulado, visando ultrapassar os vícios formais de que o mesmo padece, inserindo-se, por conseguinte, no âmbito de aplicação da norma do n.º 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil, sendo por isso irrecorrível, por força do disposto no n.º 7 do mesmo artigo, não podendo, por conseguinte, apreciar-se tal questão no presente recurso.
4. De todo o modo, caso se entendesse que a questão da ilegalidade do dito despacho se encontrava fora da alçada impeditiva da norma do n.º 7 do artigo 590º do Código de Processo Civil, por o convite ao aperfeiçoamento ultrapassar os poderes conferidos ao juiz no artigo 590º do Código de Processo Civil, para providenciar pela correcção das irregularidades dos articulados, e que era admissível o recurso com o interposto da sentença, ao abrigo do n.º 3 do artigo 644º do Código de Processo Civil, e se conhecesse da questão, sempre se concluiria pela sua improcedência, porquanto se entende que o convite ao aperfeiçoamento do articulado com a formalização da reconvenção se impunha, não só em aplicação da norma do n.º 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil, mas também, conjugadamente, com a norma do artigo 6º (deveres processuais de gestão processual), igualmente referido na decisão recorrida, e do n.º 3 do artigo 193º, todos do mesmo código, de onde resulta o dever do juiz, quando ocorra erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte, de o corrigir oficiosamente, determinando que se sigam os termos processuais adequados.
Em idêntico sentido, da admissibilidade do despacho convite, veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/02/2022 (proc. n.º 2191/20.5T8GDM.P1), disponível, como os demais citados, sem outra referência, em www.dgsi.pt, bem como a demais jurisprudência nele referida, onde se concluiu, a respeito da correcção do erro de dedução na contestação por via de excepção da compensação de créditos, que: «Ocorrendo um erro na qualificação do meio processual utilizado e na formulação do mesmo, na medida em que o Réu deduziu a compensação de créditos como excepção, cabe ao juiz proferir o necessário despacho-convite de aperfeiçoamento no sentido de cumprir as normas atinentes à dedução de reconvenção (Arts. 193º, nº 3, 590º, nº 3 e 583º do CPC)».
[MTS]