"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/07/2016

Jurisprudência (394)


PER; âmbito de aplicação pessoal


1. O sumário de  RL 21/4/2016 (2238/16.0T8SNT.L1-2) é o seguinte:

As normas que regem o Processo Especial de Revitalização devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade económica autónoma e por conta própria.

 2. O âmbito de aplicação do PER tem sido uma questão muito discutida, como decorre desta parte da fundamentação do acórdão:

"A questão concernente ao âmbito de aplicação do Processo Especial de Revitalização não tem sido convergente, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

De acordo com um primeiro entendimento, maioritário na doutrina, com expresso apoio num argumentário literal, com base no preceituado nos artigos 1º, nº 2 e 17º-A e segts do CIRE, poderá recorrer ao PER, o devedor, assim designado sem um significado preciso, defendendo-se, por isso - dado o silêncio da lei e o princípio de que “onde a lei não distingue não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção” - que o regime do PER é aplicável a qualquer devedor, logo, a pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou pessoas singulares, mesmo que não sejam agentes económicos – v. neste sentido, na doutrina, CATARINA SERRA, O regime português da insolvência, 5.ª edição, 2012, Almedina, 176; LUÍS M. MARTINS, Recuperação de pessoas singulares”, vol. I, 2.ª ed., 2013, Almedina, 14 e 15; MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, 6.ª ed. 2015, Almedina, 295 e 296; ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um curso de direito da insolvência, 2.ª ed., 2016, Almedina, 511, nota 5; ROSÁRIO EPIFÂNIO, O processo especial de revitalização, Almedina, 2016, 15; ISABEL ALEXANDRE, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, 235 e 236; FILIPA GONÇALVES, O processo especial de insolvência, “Estudos de Direito de Insolvência”, coordenação de Maria do Rosário Epifânio, 2015, Almedina, 55. E, na jurisprudência, cfr. a título meramente exemplificativo, Ac. R.P. de 16.12.2015 (Pº 2112/15.7T8STS.P1); Acs. R.E. de 09.07.2015 (Pº 1518/14.3T8STR.E1), de 10.09.2015 (Pº 1234/15.9T8STR.E1), de 05.11.2015 (Pº 371/15.4T8STR.E1) e de 21.01.2016 (Pº 1279/15.9T8STR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Para um segundo entendimento, o regime do PER apenas se dirige a empresas ou devedores empresários, e só a estes faz sentido, visto que a ideia de recuperabilidade do devedor tem sido sempre ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e neste sentido, à sua qualidade de empresário, sendo que a principal motivação da criação do processo de revitalização assenta no tecido empresarial, confessada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30.12.2011, que esteve na origem da Lei nº 16/2012, de 20.04, o que justifica uma restrição ao significado literal do texto da lei – cfr. em defesa desta tese, LUÍS CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 143, PAULO OLAVO CUNHA, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização das sociedades”, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, 220 e 221; NUNO SALAZAR CASANOVA E DAVID SEQUEIRA DINIS, PER – O processo especial de revitalização, Coimbra Editora, 2014, 13 e 14, E, na jurisprudência das Relações, cfr. mais recentemente e a título exemplificativo Ac. R.L. de 24.11.2015 (Pº 22219/15.0T8SNT-1); Acs. R.P. de 23.02.2015 (Pº 3700/13.1TBGDM.P1), de 23.06.2015 (Pº 1243/15.8T8STS.P1) e de 12.10.2015 (Pº 1304/15.3T8STS.P1); Ac. R.E. de 24.07.2015 (Pº 718/15.3TBSTR.E1) e de 10.9.2015 (Pº 979/15.8TBSTR.E1 e Pº 531/15.8T8STR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Sufraga-se este segundo entendimento defendido, aliás, pela jurisprudência da 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça (secção agora especializada para decidir sobre matérias de natureza comercial – artigo 42º, nº 2 da LOFTJ) – cfr. Ac. de 10.12.2015 (Pº 1430/15.9T8STR. E1.S1), acessível em www.dgsi.pt, bem como os Acórdãos desta mesma secção do STJ de 05.04.2016 (Pº 979/15.8T8STR.E1.S1) e de 12.04.2016 (Pº 53/15.8T8T8STR.E1.S1), estes últimos em vias de publicação no citado sítio da Internet.

É que, nos termos do nº 1 do artigo 9º do Código Civil a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo.

É igualmente consabido que a interpretação normativa assente na letra da lei, terá sempre de ser conjugada com os demais elementos lógicos de interpretação: 
 
a. elemento sistemático que tem em conta a unidade do sistema jurídico; 
 
b. elemento histórico, constituído designadamente por precedentes normativos e trabalhos preparatórios; 
 
c. elemento racional ou teleológico, i.e., a justificação social da lei.

Ora, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011, que esteve na origem da Lei nº 16/2012, de 20.04 (www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/codigo-da-insolvencia-/downloadFile/file/PPL_39_XII_6Alteracao_CIRE.pdf.), decorre que a principal motivação da criação do processo de revitalização, inserida na revisão do CIRE, foi a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial», referindo-se mais adiante que «a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».

Por outro lado, contempla a lei um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos artigos 249º e segs do CIRE, permitindo que estes sejam poupados a toda a tramitação do processo de insolvência, já que neste caso a insolvência que venha a ser decretada, após a homologação do Plano, tem um alcance limitado, não estando sequer sujeita a registo e publicidade, evitando-se prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa (v. Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3), sendo perfeitamente injustificável a duplicação de recursos que tal implicaria.

Assim, atento o fim visado pelo legislador e as circunstâncias políticas e económicas que motivaram a criação do processo especial de revitalização considera-se, tal como bem consta da decisão recorrida, que haverá que proceder a uma interpretação restritiva do artigo 17º-A do CIRE, por forma a considerar que o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria, sufragando-se, por conseguinte, o entendimento jurisprudencial expendido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos supra mencionados acórdãos."
 
3. A orientação defendida no acórdão parece ser a que melhor corresponde à justificação e às finalidades do PER, bem como à coexistência do PER com um regime específico para a insolvência de pessoas singulares (cf. art. 235.º a 266.º CIRE).
 
Era desejável que a questão fosse rapidamente esclarecida num acórdão de uniformização de jurisprudência, principalmente porque, não tendo a questão a ver com algo de estruturante ou substancial do sistema jurídico, se criaria certeza e a segurança numa área onde, no momento, reina a incerteza e a insegurança. Mais vale uma orientação previsível dos tribunais -- qualquer que ela seja -- do que uma permanente incerteza quanto à solução que vão adoptar.
 
MTS