"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/07/2016

Jurisprudência (409)


Causa de pedir; poderes do tribunal
 convolação

I. O sumário de STJ 7/4/2016 (842/10.9TBPNF.P2.S1) é o seguinte: 


1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídicoque ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica,convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.

2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.

3. Tendo o A. optado por formular um pedido de reconhecimento de um direito relativamente à contitularidade em determinado património imobiliário, na óptica fundamental de um contrato de associação em participação, decorrente de actividade exercida conjuntamente com o R., não é possível, como decorrência da subsunção da relação material controvertida no âmbito da figura normativa das sociedades irregulares, atribuir-lhe antes o direito a uma determinada participação ou quota na dita sociedade, tendo como fim e objecto a actividade de rentabilização do património imobiliário entretanto adquirido pelos interessados.

4. Na verdade, neste caso verifica-se uma perfeita heterogeneidade – quer jurídica, quer pático-económica – entre o pedido efectivamente formulado pelo A., situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa.

5. Perante a especialidade do procedimento de liquidação das sociedades, regulado no CSC, não é admissível que se proceda incidentalmente, no âmbito de uma qualquer acção, processada na forma comum e que corra termos entre os sócios, culminando no decretamento oficioso de nulidade do contrato de sociedade, às operações de liquidação do ente social extinto, definindo logo qual era a parcela dos bens sociais que caberia a cada um deles.
 


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. O objecto da presente revista mostra-se [...] circunscrito à questão da admissibilidade processual da convolação que, em sede do pedido formulado, a sentença realizou – entendendo a Relação que não era, no caso, admissível convolar ou converter um pedido deduzido em sede de contitularidade de direitos reais sobre determinados imóveis para a titularidade de uma determinada participação na sociedade irregular que – conforme qualificação da relação contratual existente entre as partes – considerou existir.

Invoca, em primeiro lugar, o recorrente a violação de caso julgado, que considera resultante de o primeiro acórdão proferido pela Relação – que determinou a audição das partes acerca da admissibilidade da convolação operada na sentença inicialmente proferida, reconhecendo a nulidade processual decorrente da violação da regra do contraditório – já ter considerado admissível tal reconfiguração normativa do pedido formulado.

Tal argumento é, porém, manifestamente improcedente, já que, como é óbvio, o acórdão proferido primeiramente pela Relação, reconhecendo apenas o cometimento da dita nulidade processual e mandando dar às partes oportunidade para se pronunciarem sobre a possibilidade de tal convolação ser feita, não se pronunciou, nem tinha que se pronunciar, sobre a regularidade procedimental da convolação a que o juiz a quo havia procedido na sentença primeiramente emitida: como é evidente, esta matéria dependia naturalmente do prévio cumprimento da regra do contraditório, permitindo-se às partes a pronúncia sobre a – surpreendente – convolação do objecto do pedido, alegadamente realizada naquela sentença, só podendo e devendo o Tribunal pronunciar-se sobre tal questão depois de as partes terem tido plena oportunidade para exporem as suas razões, sustentando a admissibilidade ou inadmissibilidade da dita convolação – só nesse momento cumprindo naturalmente ao Tribunal emitir pronúncia sobre tal tema, depois de ponderadas as razões apresentadas pelas partes.

Em suma: não pode considerar-se ínsito na decisão que – reconhecendo a existência de determinada nulidade processual, por violação do princípio de proibição de decisões surpresa, manda ouvir as partes sobre a matéria em questão – qualquer juízo antecipatório ou pré juízo acerca da matéria ou questão essencialmente controvertida – a possibilidade de convolação do pedido formulado na petição inicial - a qual só pode e deve ser solucionada pelo tribunal após se haver facultado adequadamente o contraditório aos litigantes.

Sustenta, em segundo lugar, o recorrente que a dita convolação do objecto do pedido, operada em 1ª instância, se deveria ter por suportada na matéria de facto alegada na petição inicial, já que da mesma emergiria em termos suficientes que teria sido vontade das partes constituir uma sociedade comercial, financiá-la e através dela prosseguir uma finalidade económica comum: ou seja, tendo o A. configurado, em termos minimamente consistentes, matéria de facto que poderia efectivamente integrar a existência de um contrato de sociedade, não extravasaria da matéria litigiosa a sentença que lhe atribuísse uma determinada participação nessa sociedade.

Note-se que, na situação dos autos, ninguém questiona a possibilidade de o tribunal qualificar livremente a matéria de facto apurada, em termos de ter por preenchida determinada realidade contratual : na verdade, o que, para tal, releva é naturalmente a factualidade alegada e provada, considerada em si mesma, independentemente da qualificação jurídica que os litigantes lhe deram, a qual não vincula o juiz, que não está sujeito à qualificação jurídica que as partes realizaram da realidade factual em litígio.

Daqui decorre naturalmente que a qualificação jurídica, operada quanto à causa petendi invocada, configurando normativamente a respectiva factualidade complexa como integrando uma sociedade irregular, pressuponha obviamente que tinham sido invocados, efectiva e oportunamente, pelas partes factos essenciais configuradores da existência de um contrato de sociedade…

Ora, como é evidente, perante tal possível qualificação jurídica dos factos essenciais que integravam a causa de pedir – que o A. vem agora dizer que ele próprio admitia – cabia-lhe ter tomado as devidas cautelas no momento da formulação do – ou dos – pedidos,adequando-os minimamente à eventual prevalência da tese que considerasse existir uma sociedade irregular: ou seja, numa estratégia processual adequada cabia ao A. ter formulado pretensão – pelo menos, a título subsidiário - cujo conteúdo e natureza se adequasse minimamente à possível prevalência do entendimento que visse nos factos alegados o preenchimento da figura da sociedade irregular. Ora, tal não ocorreu manifestamente no caso dos autos, já que a pretensão formulada, assente num direito à contitularidade de determinado património imobiliário, se não coaduna minimamente com a configuração da relação material controvertida como implicando a existência de uma sociedade entre os litigantes…

7. Resta, assim, determinar se era ou não processualmente admissível a convolação operada na sentença apelada, em termos de – tendo o A. optado por formular um pedido de reconhecimento de um direito relativamente à contitularidade em determinado património imobiliário, decorrente de actividade exercida conjuntamente com o R. – será possível, como decorrência da subsunção da relação material controvertida no âmbito da figura normativa das sociedades irregulares, atribuir-lhe antes o direito a uma determinada participação ou quota na dita sociedade, tendo como fim e objecto a actividade de rentabilização do património imobiliário entretanto adquirido pelos interessados.

Como é sabido, o processo civil é há muito regido pelo princípio dispositivo (sendo manifesto e incontroverso que, apesar de o novo CPC o não enunciar explicitamente nas disposições introdutórias, ele continua a estar subjacente aos regimes estabelecidos em sede de iniciativa e de delimitação do objecto do processo pelas partes, não sendo postergado pelos regimes de maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes): é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem – e continuam inquestionavelmente a incumbir - às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido , ou seja , indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida .

Daqui decorre naturalmente um princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte, devendo o decidido pelo juiz adequar-se às pretensões formuladas, ser com elas harmónico ou congruente, sob pena de se verificar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

Não estando obviamente em causa que o pedido formulado constituirá normalmente o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir, importa, porém, aprofundar esta matéria, de modo a verificar quais as exactas balizas à actuação nesta sede do juiz

Deverá, nomeadamente, valer em sede de pedido um regime paralelo ao que sempre vigorou pacificamente quanto à causa de pedir, distinguindo-se a materialidade desta - expressa no conjunto de factos que a integram – da respectiva qualificação jurídica – para se concluir que tal qualificação jurídica, sem alteração da realidade ou materialidade dos factos, é – como sempre foi - facultada ao juiz ? Ou seja: poderá também em sede de pedido – pretensão material ou processual – operar-se uma cisão entre a materialidade da pretensão formulada e a coloração ou qualificação jurídica desta?

Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respectivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correcção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efectivamente adequado à situação litigiosa ( vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3/2001).

Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, pags. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da acção inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a acção correcta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal acção sero bjectivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspectivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora, sendo actualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efectiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma acção reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exactamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…

Como exemplos paradigmáticos da prevalência na jurisprudência desta visão substancialista e mais flexível das coisas, podem referir-se, desde logo, o Assento do STJ de 28/3/95 e o Acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001.

No primeiro daqueles arestos, entendeu-se (de forma, aliás, unânime) que Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº1 do art. 289º do CC.

O que estava em causa na controvérsia jurisprudencial dirimida pelo citado assento era a questão da admissibilidade de convolação pelo tribunal da configuração jurídico - normativa que o A. dava à causa de pedir em que fundava a respectiva pretensão, passando a sustentá-la, não no cumprimento de certa relação contratual, mas antes nas consequências legais da declaração oficiosa da nulidade do negócio jurídico invocado como base da pretensão do demandante – envolvendo ainda tal reconfiguração jurídica da «causa petendi» uma alteração na configuração jurídica do próprio pedido, da pretensão material deduzida, que deixava de assentar na obtenção de uma prestação por via do contrato, para passar a incidir sobre a obtenção de determinado bem ou quantia pecuniária como mera decorrência da declaração oficiosa de nulidade dessa relação contratual.

Subjacente ao assento está, pois, não apenas o reconhecimento de que é lícito ao Tribunal convolar para uma qualificação jurídica da causa de pedir diferente da formulada pelo A. – no caso, como decorrência da inquestionável possibilidade de conhecimento oficioso das nulidades da acto jurídico - mas também a admissibilidade de uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático-jurídico que este pretende alcançar ( só assim se explicando que o tribunal possa atribuir o bem, valor ou montante pecuniário pedido, não em consequência ou a título de cumprimento do contrato em que se consubstanciava a causa de pedir, mas através da figura do dever de restituir tudo aquilo que se obteve em consequência de um negócio oficiosamente tido por nulo).

Esta mesma ideia é realçada – ainda com maior nitidez – no Ac. 3/2001, em que se uniformizou a jurisprudência no sentido de que,tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar a ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC.

Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal , alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.

Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.

O Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1, ilustra, de forma clara, as balizas em que é lícita esta actividade dereconfiguração ou reconstrução normativa pelo juiz da pretensão efectivamente formulada pela parte. Assim, entendeu-se que:

- nada obstava a que se pudesse convolar do pedido de anulação de certo negócio jurídico de doação, realizada mediante intervenção de procurador, cuja legitimação assentava em procuração que havia sido anulada por se ter verificado erro dolosamente provocado, para a declaração de ineficácia do negócio jurídico em relação ao doador, decorrente da representação sem poderes, nos termos do art. 268º do CC; porém:

- tendo-se o autor limitado a formular um pedido constitutivo de anulação do negócio jurídico de doação, já não seria, porém, lícito ao tribunal proferir sentença em que, para além do decretamento de certo valor negativo do acto ( independentemente de este se configurar como invalidade ou ineficácia) se condenasse ainda oficiosamente a parte a restituir o que obteve em consequência do negócio destruído, já que, nesse caso, a decisão acabaria por incidir sobre um objecto material – a restituição de certos bens – claramente diferenciado e destacável do objecto da pretensão formulada, situada apenas no plano da aniquilação dos efeitos do negócio.

Deste modo, tendo-se o autor limitado a formular um pedido de anulação de certo negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença de condenação na restituição ou entrega dos bens, consequente ao decretamento da invalidade - ou da ineficácia do negócio - por tal implicar violação do princípio de que o juiz não pode condenar em objecto diverso do pedido.

Ou seja: é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.

O grupo de situações em que se pode admitir – e em que vem sendo mais frequentemente admitida - a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor situa-se no campo dos valores negativos do acto jurídico: pretendendo o autor, em termos práticos e substanciais, a destruição dos efeitos típicos que se podem imputar ao negócio jurídico celebrado, ocorre uma deficiente perspectivação jurídica desta matéria, configurando a parte o efeito prático-jurídico pretendido – de aniquilação do valor e eficácia do negócio – no plano das nulidades quando, afinal, a lei prevê para essa situação um regime de ineficácia ou inoponibilidade; ou na invocação de um regime de anulabilidade quando o valor negativo do acto se situa no plano da nulidade, ou vice-versa.

Sendo o objectivo prosseguido pela parte a aniquilação ou destruição dos efeitos produzidos pelo acto em causa, não deverá um simples erro de configuração normativa do valor negativo do acto e do particular regime que lhe corresponde ditar a injustificável improcedência da acção, com os custos de celeridade e economia processual a que atrás se aludiu, quando, com toda a certeza, o autor se conformaria inteiramente com a aplicação do regime que decorre da correcta caracterização normativa da pretensão deduzida .


8. Ora, como parece evidente e inquestionável, nada disto se passa no caso dos autos, dada a perfeita heterogeneidade – quer jurídica, quer prático-económica – entre o pedido efectivamente formulado pelo A., situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa .

Na verdade, para além de direitos reais e associativos serem realidades juridicamente bem diferenciadas, é manifesto que – mesmo noplano prático-jurídico - representam posições totalmente diversificadas quanto ao seu conteúdo e efeito prático as de comproprietário num conjunto de imóveis identificados e de sócio numa sociedade irregular que, porventura, detenha – ou haja detido – tais imóveis no património social.

E, nesta medida, nada há censurar ao decidido pela Relação no acórdão recorrido, não se mostrando violadas as disposições legais invocadas pelo recorrido.

Sustenta o recorrente, na respectiva contra alegação, que seria indispensável atentar na circunstância de a sociedade irregular, cuja nulidade foi oficiosamente decretada pelas instâncias, ter necessária e imediatamente entrado em liquidação: e, deste modo, os direitos patrimoniais, reivindicados pelo A. na petição inicial, poderiam ser precisamente decorrência de tal liquidação da sociedade, representando a quantificação da quota detida pelo A. no património da sociedade extinta.

Tal via argumentativa é, porém, manifestamente inviável, já que o procedimento de liquidação de uma sociedade extinta obedece a regras específicas, definidas cabalmente e de modo imperativo pelo C. S. Comerciais, por tal matéria afectar os direitos de terceiros-credores da sociedade em liquidação.

E, por isso, nunca seria admissível que se procedesse incidentalmente, no âmbito de uma qualquer acção, processada na forma comum e que corresse termos entre os sócios, às operações de liquidação do ente social, definindo logo qual era a parcela dos bens sociais que caberia a cada um deles: para além de tal matéria não ter sido minimamente aflorada durante o processo, já que o decretamento oficioso da nulidade que origina a liquidação apenas ocorreu na sentença proferida no termo da presente acção, a partilha dos activos patrimoniais entre os sócios –a definição do produto da liquidação que a cada um deles cabe – só poderá naturalmente ter lugar depois de apurado se existem dívidas sociais, impondo-se ainda a prática das operações preliminares de liquidação que têm necessariamente lugar no âmbito daquele procedimento especial, regulado nos arts. 146º e seguintes do CSC.

Em suma: a liquidação dos direitos dos sócios numa sociedade extinta e em liquidação só pode operar-se no âmbito daquele procedimento especial, nunca podendo ser incidentalmente decretada no termo de uma acção declaratória comum, a correr termos entre os sócios, versando sobre objecto que nada tem a ver com as referidas operações de liquidação do ente social extinto."

[MTS]