Competência material; contrato de factoring;
jurisdição administrativa
1. O sumário de RE 21/4/2016 (10887/12.9YIPRT.E1) é o seguinte:
É da competência da jurisdição administrativa o julgamento de uma acção em que uma instituição financeira pede a condenação de um município a pagar-lhe créditos que foram cedidos nos termos de um contrato de factoring, quando esses créditos emergem de um contrato de empreitada de obras públicas.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] importa começar pela excepção de incompetência que o recorrido levanta agora nas alegações, sendo certo que, uma vez que ainda não há sentença transitada em julgado sobre o fundo da causa, este tribunal pode dela conhecer (art.º 97.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil).
A causa de pedir e o pedido definem os termos da instância, dos seus pressupostos.
No caso dos autos, a causa de pedir é um contrato de factoring (aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, nos termos do art.º 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 171/95), sendo que os créditos cedidos têm na sua base um contrato de empreitada de obras públicas. O que o recorrente pretende é ser pago dos créditos que lhe foram cedidos, independentemente da sua fonte. Podem ocorrer vicissitudes a respeito destes créditos e que resultem imediatamente da execução do contrato donde eles, em primeiro lugar, derivam. Mas a causa de pedir não se limita a isto. A causa de pedir abrange também a fonte dos créditos, o pedido baseia-se também nas relações jurídicas que originaram os créditos e que podem até ter provocado a sua alteração (como se discute aqui).
*Como logo se escreveu após a reforma de 2002, «uma das grandes novidades desta reforma do contencioso administrativo reside precisamente, como já referi, na eliminação da referência às questões de direito privado no elenco de matérias que se consideram excluídas do foro administrativo. Finalmente desaparece a dicotomia tradicional “gestão pública/ gestão privada” como critério de repartição de competência entre o foro administrativo e o foro comum» (cfr. M.ª João Estorninho, «A reforma de 2002 e o Âmbito da Jurisdição Administrativa», em C.J.A., n.º 35, p. 5). E logo adianta: «Sintomática desta eliminação da dicotomia “gestão pública/gestão privada” é a atribuição aos tribunais administrativos, no art.º 4º., n.º 1, alínea g), do novo ETAF, de todo o contencioso da responsabilidade civil extracontratual das pessoas, colectivas de direito público (e não apenas, como agora acontece, do contencioso da responsabilidade civil extra-contratual por actos de gestão pública)» (idem, ibidem).
Lê-se no ac. da Relação de Lisboa, de 13 de Março de 2014, o seguinte: a «actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal».
A jurisdição administrativa não é hoje uma jurisdição por atribuição, no sentido de que a ela cabe conhecer dos litígios que a lei expressa e restritivamente indica. Como se escreve no mesmo acórdão, os «tribunais administrativos são, actualmente, os verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa». A sua competência abrange a quase totalidade, se não mesmo a totalidade, dos litígios que envolvam a Administração Pública, seja directamente, seja por intermédio de particulares que a ela se associam para prosseguir objectivos públicos, com bass nos instrumentos jurídicos disponíveis (o contrato de empreitada de obras públicas é um exemplo).
O que se passa em termos de responsabilidade civil, passa-se também quando esteja em questão um litígio em que se discuta a execução de um contrato administrativo. O art.º 4.º, n.º 1, al. e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, inclui na jurisdição destes tribunais: «Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público»; a al. f), por sua vez, dispõe o seguinte: «Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público» (redacção da Lei n.º 107-D/2003).
E sobre esta questão em concreto (casos em tudo semelhantes ao do presente processo) o Tribunal de Conflitos, com a autoridade própria que lhe advém da sua competência, já por diversas vezes se pronunciou — e no sentido de que são competentes os tribunais administrativos.
Vejam-se os acórdão de 19 de Dezembro de 2014, de 16 de Janeiro de 2014 (citado pelo recorrente) e o de 18 de Junho de 2014.
Em todos eles o problema tinha na base um contrato de factoring cujo objecto eram créditos originados num contrato de direito público. Transcrevemos um trecho do acórdão citado em último lugar:
«Do exame e análise da petição inicial da presente acção e documentos que a acompanham, resulta que a demandante pretende que o Município do Seixal seja condenado a pagar-lhe determinada importância, acrescida de juros, com o fundamento de que, enquanto instituição de crédito que se dedica à actividade de factoring, celebrou um contrato de factoring com a empresa B…..., SA, através do qual esta lhe cedeu créditos que detinha sobre o município demandado, resultantes de trabalhos feitos a favor deste por aquela, entre eles, fornecimento de pinturas e outras beneficiações no edifício destinado à assembleia municipal e outros serviços municipais.
«Daqui decorre que a causa de pedir da acção não se circunscreve, como alega a demandante, ao contrato de factoring que celebrou com a empresa B……., SA, contrato no qual o município demandado não interveio nem por qualquer forma participou. Ao invés, a causa de pedir também se funda nos contratos celebrados entre o município demandado e aquela empresa, contratos que originaram os créditos cedidos à demandante e que esta pretende ver satisfeitos através da presente acção.
«Tais contratos, atenta a circunstância de o demandado ser uma autarquia local e o facto de o seu objecto abranger prestações susceptíveis de sujeição à concorrência de mercado, podem ser submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, ex vi n.ºs 1 e 2 do artigo 1º, alínea, c) do artigo 2º e alínea d) do n.º 1 e alíneas b) e e) do n.º 2 do artigo 16º do Código dos Contratos Públicos».
Em função destes elementos, também nós concluímos que é a jurisdição administrativa a competente para conhecer esta acção. Discutem-se aqui direitos emergentes da execução de um contrato de direito administrativo, seja indirectamente em relação ao recorrente (que não celebrou com o recorrido qualquer contrato), seja directamente com o recorrido (que celebrou o contrato que deu causa aos créditos que foram cedidos). Mas o facto de o recorrente não ser parte no contrato que o recorrido celebrou com o cedido não altera a natureza do crédito nem a sua fonte."
3. Em conclusão: segundo a RE, o factoring não altera a qualidade do crédito cedido; assim, se os tribunais administrativos eram os competentes para a cobrança do crédito antes da sua cessão, esses tribunais continuam a ser os competentes após a cessão.
MTS