"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/07/2016

Jurisprudência (411)


Factos supervenientes;
alteração da causa de pedir


1. O sumário de RC 26/04/2016 (2933/12.2TBCLD.C1) é o seguinte:

I - Pela via do articulado superveniente é permitido ao autor proceder à alteração ou ampliação da causa de pedir fora do condicionalismo dos artigos 264.º e 265.º CPC;

II - Um aumento do capital social que, por si só, determine a alteração da titularidade das posições sociais em mais de 50% integra a previsão da alínea b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU (actual al. b) do n.º 3 do art.º 28 do mesmo diploma, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto), por interpretação extensiva da norma, podendo o senhorio denunciar o contrato mediante o cumprimento do pré-aviso ali previsto;

III - No caso de ocorrer transmissão inter vivos de posição ou posições sociais após aumento de capital, este não deverá ser considerado no apuramento da percentagem que as posições transmitidas representavam no capital social.

2. Importa conhecer esta parte da fundamentação do acórdão: 

"[...] resultou apurado que os AA senhorios denunciaram o contrato mediante comunicação efectuada à Ré em Outubro de 2007, invocando a alteração da titularidade do capital social em mais de 50%, previsão normativa da citada al. b) do n.º 6 do art.º 26.º.

Todavia, o fundamento de facto da alegada alteração, conforme resulta claramente dos termos da petição inicial, foi o aumento de capital que, tendo sido inteiramente subscrito por um novo sócio, determinou que este passasse a ter o domínio da sociedade, com uma participação superior a 66%.

Nada foi dito, até porque o facto era então desconhecido, quanto a eventuais cedências das quotas dos primitivos sócios em favor de um terceiro (cfr. artigos 7.º a 14.º da petição inicial).

Por outras palavras, a causa de pedir invocada na presente acção como fundamento do direito de denúncia previsto na al. b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU foi o referido aumento do capital e sua subscrição por terceiro nas apontadas circunstâncias.

Posteriormente, e por via da legítima apresentação do articulado superveniente, foram pelos AA. trazidos aos autos novos factos, traduzindo a cessão da totalidade das participações da sociedade ré a um terceiro - na circunstância, o seu sócio-gerente -, os quais, tendo ficado documentalmente demonstrados, ingressaram na sentença, correspondendo aos pontos 15. a 18. da matéria de facto assente. E foi precisamente com fundamento nesta nova factualidade, que integrou na previsão da disposição legal em referência, que a Mm.ª juíza julgou validamente cessado por denúncia o contrato de arrendamento aqui ajuizado.

Parece oportuno referir, a propósito, que a causa de pedir, tal como resulta do preceituado no n.º 4 do art.º 581º do CPC, é o facto jurídico concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido. Assim, quando a lei faz recair sobre o autor o ónus da alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.ºs 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, al. d), este desincumbe-se de tal ónus fazendo a indicação do facto jurídico concreto em que baseia o seu direito, ou seja, por referência ainda à teoria da substanciação, e isto porque “o tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos, quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir. (…) a causa petendi não é norma de lei que a parte invoca em juízo; é o facto que se alega como capaz de converter em concreto a vontade abstracta da lei" [...][...].

Ora, in casu, ao alegar em sede de articulado superveniente que a Ré viu o pacto social alterado por força da transmissão das quotas por negócio “inter vivos” que representavam a totalidade do capital social, procederam os AA a relevante alteração da causa de pedir, a qual veio a ser fundante da decisão [...].

Cremos, porém, que sem infracção das regras processuais atinentes. Vejamos:

O art.º 588.º permite a alegação posterior “de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito”. Trata-se de factos essenciais que a lei permite sejam tardiamente introduzidos em juízo, uma vez que ocorreram depois de terminados os prazos para apresentação dos articulados - superveniência objectiva - ou porque, tendo embora ocorrido em data anterior, só posteriormente foram conhecidos pela parte a quem aproveitam -superveniência subjectiva.

Parece não suscitar dúvida, à luz do que dispõe o n.º 2 do art.º 573.º, que factos supervenientes que integrem novas excepções peremptórias são, ainda aqui, admitidos, sem que tal colida com o princípio da concentração da defesa na contestação, uma vez que à data da apresentação deste articulado não era possível à parte deles fazer-se valer (ou porque não tinham ainda ocorrido, ou porque deles não tinha conhecimento).

Maiores dúvidas tem suscitado a questão de saber se ao autor é lícito, por esta via, proceder à alteração da causa de pedir, designadamente substituindo os factos inicialmente alegados por outros que formam outra causa de pedir, ou proceder à sua ampliação, acrescentando àqueles factos outros que, por si, são capazes de desencadear o efeito jurídico pretendido, hipótese em que se insere a situação dos autos.

Suscitada nestes termos, a questão não tem merecido resposta uniforme, afigurando-se todavia que será de reconhecer também ao autor tal possibilidade. Com efeito, e tal como conclui Nuno Pissarra [Nuno Andrade Pissarra, “O conhecimento de factos supervenientes relativos ao mérito da causa pelo Tribunal de Recurso em Processo Civil”, acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B351b450a-50b9-4b7d-9f5e-94e815424f9f%7D.pdf, págs. 11-12 [...]], “Os termos do art. 506.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não são incompatíveis com tal possibilidade e a ressalva do art. 663.º, n.º 1, do mesmo Código, reportada às normas que determinam as condições em que pode ser alterada a causa de pedir, tanto abrange o art. 273.º como o art. 506.º. Reduzir a função dos factos constitutivos invocáveis em articulado superveniente ao preenchimento de causas de pedir incompletas, como fazia o Prof. Castro Mendes, parece ser excessivamente redutor. A razão do articulado superveniente reside na superveniência e não pode ser equiparada à do articulado para correcção de deficiências previsto no art. 508.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código de Processo Civil. Acresce que, sendo a alternativa da modificação da causa de pedir o início de uma nova instância, a economia processual aconselha à solução ora propugnada, sem que o dever de respeito por uma disciplina processual seja prejudicado, porque se está perante um facto sobre o qual, por virtude da superveniência, a disciplina não pode actuar. Enfim, dificilmente se compreenderia que a lei processual civil admitisse, como admite (no referido art. 489.º, n.º 2), a alegação, por articulado superveniente, de factos supervenientes integrantes de novas excepções e não fizesse o mesmo quanto aos factos constitutivos que alterassem ou ampliassem a causa de pedir. Em suma, fora dos casos do art. 273.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a causa de pedir pode ainda ser unilateralmente alterada ou ampliada mediante a articulação de factos supervenientes. [No mesmo sentido, Prof. Lebre de Freitas, “A acção declarativa comum à luz do Código revisto”, 2.ª edição, págs. 138-139, para quem “O princípio da economia processual e a consideração de que o alcance do preceito (…) seria quase nulo se a sua previsão fosse reduzida, quanto ao autor, aos factos que complementem a causa de pedir já invocada, atendendo a que a alegabilidade desses factos já está prevista em outras disposições, leva a perfilhar a solução de não o limitar pelo disposto nos art.ºs 272.º e 273.º”].
 
A situação em causa nestes autos evidencia, parece-nos, o acerto da posição vinda de expor, pois a desconsideração da nova causa de pedir emergente dos factos supervenientes, para mais reconduzível à mesma fattispecie normativa, obrigando à propositura de uma nova acção no caso de improcedência da causa de pedir inicialmente invocada, resultaria num injustificado desperdício de tempo e de meios."
 
3. Sobre a admissibilidade da alteração da causa de pedir com base em factos supervenientes, sem a sujeição aos pressupostos dos (actuais) art. 264.º e 265.º CPC, cf. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa (1995), 189 s.
 
MTS