"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/07/2016

Jurisprudência (407)


Taxa de justiça; dispensa;
constitucionalidade


1. O sumário de RL 28/4/2016 (473/12.9TVLSB-C.L1-2) é o seguinte:

I. A dispensa da taxa de justiça remanescente correspondente ao valor tributário do processo que exceda € 275 000,00 (n.º 7 do art.º 6.º do RCP), deverá ser concedida na decisão final do processo, na aceção que o conceito de “processo” tem no RCP.

II. As partes deverão deduzir eventual discordância acerca dessa decisão por meio de requerimento de reforma da decisão quanto a custas ou, se houver lugar a recurso da decisão final, na respetiva alegação.


III. A reclamação da conta de custas não é o meio processualmente adequado *a dedução da pretensão de dispensa da taxa de justiça remanescente ao abrigo do n.º 7 do art.º 6.º do RCP. 

IV. Porém, poderá equacionar-se, na sequência da reclamação de conta de custas, a apreciação da constitucionalidade do atual regime legal, em situações de manifesta iniquidade, de insuportável desequilíbrio entre o que é reclamado das partes a título de custas e o que foi prestado pelo sistema de justiça, em termos tais que não possam deixar indiferente o aplicador do direito.


2. Da fundamentação do acórdão extrai-se a seguinte parte:

"Como se sabe [...], a possibilidade concedida ao juiz de dispensar o pagamento de taxa de justiça remanescente em ações de valor tributário superior a € 275 000,00 foi introduzida para fazer face à inconstitucionalidade material de que padecia o regime então em vigor, o qual permitia que fossem impostas às partes custas de valor absolutamente desproporcionado, sem qualquer correspondência com o serviço de administração da justiça prestado, podendo assumir montantes tais que as pessoas se viam compelidas a afastarem-se dos tribunais, num atropelo do direito de acesso à justiça.

O facto de a lei permitir, atualmente, o referido movimento corretor do valor das custas, poderá fundamentar um juízo de constitucionalidade da lei quanto a esta questão, como, por exemplo, se decidiu no acórdão do STA, de 20.10.2015, processo 0468/15. Mais, existem decisões jurisprudenciais que defendem que, tendo o tribunal rejeitado a reclamação da conta de custas consubstanciada em extemporâneo requerimento de dispensa do pagamento de taxa de justiça remanescente, a aludida questão de inconstitucionalidade nem sequer se põe (vide STA, acórdão de 29.10.2014, processo 0547/14; Relação de Lisboa, de 15.10.2015, processo 6431-09.3TVLSB-A.L1-6).

Porém, à semelhança do que foi ponderado no acórdão desta Relação, de 03.7.2012, processo 741/09.7TBCSC.L2-L2-7, afigura-se-nos que é possível ao tribunal averiguar, como nesse acórdão se diz, “se a aplicação estrita das normas jurídicas, vocacionadas à hipótese concreta, pelos resultados atingidos(…) não será passível de esbarrar com disposições de natureza constitucional (…) de tal maneira se impondo algum ajustamento normativo.”

De facto, como se diz no acórdão n.º 421/2013, do Tribunal Constitucional, de 15.7.2013, “os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adoção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito”.

Se é certo que, como se disse, o sistema legal tem atualmente a referida válvula de escape, capaz de refrear a tributação que uma tabela tributária sem limites poderia implicar, e reiterando-se que tal sistema deverá ser acionado aquando da decisão final (sentença; decisão sumária ou acórdão proferido em sede de recurso), com a disponibilização de reação contra essa decisão em sede de pedido de reforma ou de recurso contra a mesma, haverá que reconhecer que, como se infere da diversidade de entendimentos que esta temática suscita, o atual dispositivo legal aparenta falta de clareza, podendo levar a que a associação de inércia desatenta do lado do julgador com descuido do lado das partes conduza a uma tributação que, pela sua exorbitância, imponha os efeitos de uma fiscalização concreta de constitucionalidade.

Aqui se sufragando o exarado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 301/2009, de 22.6.2009, segundo o qual “…estando em causa o apuramento da proporcionalidade ou não de um valor quantitativamente determinado, as configurações casuísticas, no plano da fiscalização concreta da constitucionalidade, contam como elemento de valoração, sem pôr em cheque a natureza normativa do nosso sistema de controlo. Daí a admissibilidade, sem contradição, de juízos discordantes sobre o mesmo critério normativo, dada a sua diferente projecção consequencialista sobre distintas realidades, do ponto de vista da natureza e do valor do serviço prestado.”

Atendendo a que, como se disse, a lei já permite o controlo do montante de taxa de justiça a cobrar às partes, a correção a operar por aplicação direta de critérios constitucionais só deverá ocorrer em situações de manifesta iniquidade, de insuportável desequilíbrio entre o que é reclamado das partes e o que foi prestado pelo sistema de justiça, em termos tais que não poderão deixar indiferente o aplicador do direito.

Ora, numa ação em que a A. pretendia obter uma utilidade económica no montante total de € 2 370 325,31, foi-lhe exigida a taxa de justiça de € 25 704,00. E, na apelação, em que a A. contra-alegou tendo em vista a defesa do que lhe havia sido reconhecido pelo tribunal de primeira instância, no valor de € 1 050 000,00, e contra o que a R. nesse recurso pretendia, que era a perda do sinal por parte da A., no montante de € 525 000,00, foi-lhe cobrada taxa de justiça no montante de € 8 772,00. No recurso de revista, em que a A. pretendia a reposição do decidido pela primeira instância, foi-lhe exigida taxa de justiça no valor de € 2 346,00 e, pela contra-alegação do recurso subordinado interposto pela R., mais € 5 559,00 de taxa de justiça.

Se a estes valores se somarem as taxas de justiça exigidas à R. (embora não esteja demonstrado nos autos que a R. pagou a totalidade das taxas liquidadas e as já reclamou da A. a título de custas de parte), conclui-se que o custo total suportado pela A., pela atuação nas três instâncias, a título de taxa de justiça, poderá somar € 82 416,00, sendo € 51 408,00 na primeira instância, € 17 544,00 na Relação e € 13 464,00 no STJ (não se contabilizando aqui as custas do incidente que suscitou a deliberação do STJ em conferência). Trata-se de valores elevados, porventura exagerados face às circunstâncias do litígio, embora não se possa dizer que o processo tivesse sido linear e desprovido de complexidade jurídica. Quanto à alegada singeleza jurídica, invocada pela apelante, a disparidade das decisões proferidas em todas as instâncias e a necessidade, sentida pela A., de apresentar perante o STJ um parecer de um ilustre jurisconsulto, desmentem-na. E no que concerne à leveza da tramitação processual, o número de articulados (quatro, na primeira instância) e a realização de quatro audiências (audiência preliminar e sessões de julgamento), a que se seguiu apelação com reapreciação da prova gravada e documental e duas revistas seguidas de convocação, após o julgamento, de conferência, retiram-lhe evidência.

Afigura-se-nos, ainda assim e tudo ponderado, que se justificaria, se assim as partes o tivessem atempadamente requerido, se não a dispensa total, pelo menos a redução das taxas de justiça incidentes sobre o valor superior a € 275 000,00 (solução intermédia – redução da taxa de justiça remanescente, em lugar da dispensa integral - cuja admissibilidade não tem suscitado controvérsia, estando proficientemente fundamentada, v.g., no acórdão do STJ, de 12.12.2013, processo 1319/12.3TVLSB-B.L1.S1).

Porém, tendo as partes omitido atempada intervenção naquele sentido, decisão contrária à lei ordinária só se justificaria se, como se disse, os valores cobrados à A. ultrapassassem flagrantemente padrões de proporcionalidade, em termos qualificáveis de iníquos, atingindo níveis que impusessem o afastamento do regime legal. Situações como algumas daquelas que demandaram do Tribunal Constitucional a sua intervenção corretora da legislação tributária-processual, antes da alteração do direito ordinário já exposta, seja no RCP, seja, anteriormente, no CCJ: cobrança de € 118 360,80 de taxa de justiça (sem considerar a devida pela parte vencedora), em ação, com o valor tributário de € 10 000 000,00, que terminara ainda antes de decorrido o prazo da contestação, com a homologação da desistência do pedido apresentada pelo autor (TC 421/2013, de 15.7.2013); cobrança de custas no valor total (sem consideração de custas da outra parte) de € 584 403,82, num procedimento cautelar com recurso para a Relação, com o valor tributário de € 51 742 000,00 (TC 227/2007, de 28.3.2007); cobrança de € 15 204,39 (sem consideração das custas das outras partes) de taxa de justiça pela mera interposição de recurso de decisão interlocutória por terceiro por ela afetado, em ação com o valor tributário de € 2 334 408,57.

Como se disse supra, a A., quando propôs a ação, tinha todas as condições para calcular antecipadamente o montante que provavelmente lhe seria cobrado, a título de taxa de justiça, pelo recurso aos tribunais. Cálculo esse a que, enquanto entidade empresarial, naturalmente vocacionada para a ponderação da relação custo-benefício no exercício da sua atividade, seguramente procedeu. Ora, nada ocorreu que tenha contrariado essas expetativas. Inclusivamente, o pedido reconvencional deduzido pela contraparte não foi considerado autonomamente pela primeira instância para o efeito de fixação do valor tributário da ação. Sendo certo que a lei possibilitava à A. exonerar-se ou mitigar tais encargos, nos termos supra explanados, o que não fez. Assim, a A. deve a si própria as consequências do encargo que ora terá de suportar.."

[MTS]