Competência internacional; Reg. 44/2001;
obrigação contratual; incumprimento
1. O sumário de STJ 5/4/2016 (27630/13.8YIPRT-A.G1.S1) é o seguinte:
Tendo uma empresa comercial, ora Ré, com sede em França, contratado com uma empresa com sede em Portugal, a Autora, o fabrico de caixilharia que foi entregue em França nos termos por elas convencionados e sendo a causa de pedir o incumprimento pela Ré do pagamento do preço, avultando na economia do contrato a obrigação da entrega da coisa, tendo em conta o conceito autónomo do lugar do cumprimento da obrigação, contemplado no art. 5º, nº1, b) do Regulamento (CE) nº44/2001, do Conselho de 22 de Dezembro de 2000, e os termos do contrato, a competência internacional radica na jurisdição francesa, sendo materialmente incompetente o tribunal português onde a acção foi proposta.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] o litígio deve ser resolvido de harmonia com o Regulamento CE/44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, em vigor desde 1.3.2002, que se aplica, obrigatoriamente, a todos os Estados-Membros, com excepção da Dinamarca, prevalecendo as suas regras, sobre as do direito interno português.
O Regulamento define, no que respeita à competência internacional para dirimir os litígios a que alude o seu art.1º, nº1:
“O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.” [...]
O Regulamento define, no que respeita à competência internacional para dirimir os litígios a que alude o seu art.1º, nº1:
“O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.” [...]
Nos termos do art. 2º, nº 1, do Regulamento – “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”.
Artigo 3º – “As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.
Dentre essas avulta o artigo 5°:
“Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) – Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
A dificuldade está na interpretação da expressão “o lugar de cumprimento da obrigação”, que, no caso que nos ocupa, é apenas o pagamento do preço, já que foi convencionado que os bens vendidos seriam entregues pela Autora à Ré, em França onde esta tem a sua sede – art. 60º, nº 1, do Regulamento.
A regra geral está, a nosso ver, definida na al. b) do nº1, precedentemente transcrito, como resulta inequivocamente da al. c) “Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
Neste enfoque importa saber, antes de mais, se se aplica a al. b) 1ª parte.
O litígio tem conexão com as duas jurisdições, mas, dada a prevalência das normas de direito internacional sobre as de direito interno – art.59º do Código de Processo Civil e art. 8º, nº 4, da Constituição da República, onde se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático” – aquelas são as aplicáveis.
As partes apodaram o contrato que celebraram de empreitada – art. 1207º do Código Civil que é uma modalidade de contrato de prestação serviços – art. 1155º.
O objecto do contrato foi o fabrico de caixilharia pela Autora, nas suas instalações em Portugal, bens que seriam entregues em França para utilização da Ré que aí tem a sua sede.
A questão que muito divide os litigantes é a de saber, em função do Regulamento, qual o local “onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, pois que, nos termos do art. 5º, “o lugar de cumprimento da obrigação será: - no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados”.
A Autora sustenta que, tendo prestado o serviço, leia-se executado a empreitada, em Portugal, releva esta conexão, devendo considerar-se competente a jurisdição portuguesa, irrelevando a questão da entrega e transporte para o dono da obra cuja sede, como vimos, se localiza em França.
Por sua vez a Ré enfatiza não só este facto como também constar da factura alegadamente em dívida que o local da entrega seria em França, sendo que os bens foram efectivamente aí entregues.
Para efeitos do disposto na alínea b) do n°1, do art. 5º do Regulamento (CE) n°44/2001, “local da entrega” é o local do destino final dos bens e não o local contratualmente estipulado para efeitos de cumprimento da obrigação do vendedor, tratando-se de contrato de compra e venda.
De outro modo, o local geográfico em que ocorre a transferência da posse sobre os bens teria relevância superior ao local do destino final.
A regra prevista na referida al. b) é especial, rege para os contratos de compra e venda e prestação de serviços estabelecendo nestes casos, a competência do lugar onde os bens foram ou devam se entregues, ou os serviços prestados (no contrato de prestação de serviços).
No Acórdão deste Supremo Tribunal, de 3.3.2005, de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa – aresto acessível emwww.dgis.pt – Proc.05B316, pode ler-se:
“[…] Releva a alínea b) do referido n°1 do artigo 5°, segundo o qual, para efeito da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
É um normativo inspirado, por um lado, pela ideia divulgada pela doutrina nacional e estrangeira de que a prestação característica do contrato de compra e venda é a do vendedor, por assumir natureza não monetária… […]
Visou-se o estabelecimento de um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação nos mais frequentes contratos, que são o de compra e venda e o de prestação de serviços, por via de um critério factual, com vista a atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro.
Decorrentemente, é fundado o entendimento de que a alínea b) do n° l do artigo 5° abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objecto mediato”.
Assim o “lugar do cumprimento da obrigação” é o local efectivo da entrega dos bens, sendo a jurisdição desse local (país Estado-Membro) a competente internacionalmente para apreciar o alegado incumprimento do preço.
Não obstante o contrato celebrado entre a Autora e a Ré ter por objecto o fabrico de caixilharia o destino final dos bens era o território francês tendo aí sido recebidos pela Ré para lhes dar o destino conforme à sua actividade que, depreende-se ser a da construção civil.
Assim não pode ser desprezado este facto, sendo que, pela natureza da prestação compreendida no objecto do contrato, a actividade útil e final do fabrico da caixilharia não cessava com a conclusão da obra; se pensarmos que só mediante a aplicação da caixilharia em França se poderia até avaliar da boa execução da empreitada, concluiremos que o conceito “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação” seja um conceito autónomo “para se atenuarem os inconvenientes do recurso ás regras de direito internacional do Estado do foro.”
Na doutrina Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado” vol. III, pág. 82, elucida:
“A competência em matéria contratual compreende a apreciação da existência dos elementos constitutivos do contrato, quando for controvertida a própria existência do contrato.
A obrigação relevante para o estabelecimento da competência a é que “serve de base à acção judicial”. Tratando-se de uma pretensão de cumprimento de uma obrigação, serão competentes os tribunais do Estado onde a obrigação deve ser cumprida.
Observe-se que a obrigação relevante é sempre a obrigação primariamente gerada pelo contrato e não a obrigação secundária que nasça do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.
O elemento de conexão aqui utilizado não se refere ao contrato no seu conjunto mas a cada uma das obrigações por ele geradas”.
A fls. 83/84:
“ […] No entanto, relativamente a dois tipos contratuais da maior importância – a venda de bens e a prestação de serviços – o Regulamento veio introduzir uma dita “definição autónoma” do lugar de cumprimento das obrigações contratuais.
Com efeito, o art. 5.°/l/b determina que para efeitos desta disposição, e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Segundo a Exposição de Motivos que acompanha a proposta da Comissão, esta dita “definição autónoma” dispensa o recurso ao Direito de Conflitos do Estado do foro.
Não parece, porém, que assim seja. Bem vistas as coisas, não se trata de uma verdadeira definição autónoma de lugar de cumprimento, mas de estabelecer que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços.
Assim, é irrelevante o lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nesta obrigação.
Mas como determinar o lugar onde os bens devem ser entregues ou onde os serviços devem ser prestados?
O art. 5.°/l/b refere-se aos “termos do contrato”. Se as partes estipularam expressamente o lugar de cumprimento o problema está resolvido. Mas o preceito não deve ser interpretado no sentido de prever apenas casos em que as partes estipularam o lugar de cumprimento. Na falta de designação expressa poderá ser possível inferir do conjunto das circunstâncias do caso uma estipulação tácita. Se também não for possível apurar uma vontade tácita, parece inevitável o recurso ao Direito de Conflitos do Estado do foro”. (destaque e sublinhado nossos)
Ponderando a lição do Ilustre tratadista e analisando os “termos do contrato”, não obstante se referir no requerimento da injunção e nunca ser questionado pelas partes, que se trata de contrato de empreitada (contrato de prestação serviço – art. 1155º do Código Civil), o certo é que foi convencionado que a entrega da caixilharia executada pela Autora, sob encomenda da Ré, seria entregue no domicílio do cliente em França, sendo que a injunção não se reporta senão à obrigação alegadamente incumprida pela Ré do não pagamento do preço.
A relação jurídico-contratual tem mais afinidade com um contrato de compra e venda – art. 874º do Código Civil – que com um contrato de prestação de serviços, uma vez que até foi convencionada a entrega da coisa no domicílio do comprador a efectuar pela Autora.
Por outro lado, tendo sido convencionada a entrega da caixilharia na sede da Ré, em França, existe um convenção de entrega da coisa a cargo da Autora que, na economia do contrato, assume um elemento essencial no que respeita ao “lugar onde os bens devem ser entregues ou onde os serviços devem ser prestados”.
[MTS]