"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/05/2017

Jurisprudência (612)




Prova testemunhal;
advogado constituído


1. O sumário de RP 30/1/2017 (881/13.8TYVNG-A.P1) é o seguinte: 

I - Em matéria processual, apenas se forma caso julgado formal relativamente às questões concretamente conhecidas e decididas.

II - Não deve ser admitida a depor como testemunha oferecida por uma parte a advogada que patrocina a parte contrária.



2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente imputa à decisão recorrida a violação do seu direito à prova, bem como das regras legais que disciplinam a prova testemunhal, nomeadamente a capacidade e os impedimentos para depor.

Cumpre apreciar e decidir.

A questão que a recorrente ora suscita não é doutrinal nem jurisprudencialmente virgem e, tanto quanto conseguimos apurar, tem tido uma resposta uniforme.

Assim, logo em 1998, o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados Augusto Lopes Cardoso, em obra intitulada “Do Segredo Profissional na Advocacia”, editada pelo Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, páginas 82 e 83, escreveu o seguinte [...]:

Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído.
 
É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.
 
Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a acção, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a acção e antes deve ser aferida objectivamente.
 
Isso também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara.
 Igual solução merece o caso de a pretensão de depor incidir apenas em apenso da acção principal, ainda que iniciado só depois do substabelecimento (em providência cautelar, embargos, incidente da instância, etc.).”

Mais recentemente, Luís Filipe Pires de Sousa [In Prova Testemunhal, Almedina 2013, página 259], antes de citar parte do trecho anteriormente transcrito refere:

O que está arredada é a hipótese de o advogado prestar depoimento em processo no qual esteja ainda constituído como advogado.

Na jurisprudência, consonante com a doutrina antes citada, embora no âmbito do processo penal, foram proferidos os seguintes acórdãos: da Relação do Porto, de 07 de fevereiro de 2007, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXII, Tomo I, páginas 205 a 209; da Relação do Porto, de 07 de outubro de 2009, proferido no processo nº 874/08.7TAVCD-A.P1 e acessível no site da DGSI; da Relação de Lisboa, de 07 de março de 2013, proferido no processo nº 2042/09.1IDLSB-A.L1-9, acessível no site da DGSI.

Não se encontrou doutrina nem jurisprudência em sentido dissonante.

Pela nossa parte, não vemos razões válidas para nos afastarmos da doutrina e jurisprudência antes citada.

Se é verdade que o caso em análise não está expressamente contemplado nas normas processuais que regulam a capacidade e os impedimentos para depor, esse impedimento é implícito e decorre da regulamentação dos estatutos do advogado da parte e da testemunha que são em si mesmos incompatíveis, implicando a impossibilidade de a mesma pessoa assumir, simultaneamente o estatuto de advogado de uma das partes e de testemunha oferecida pela parte contrária. 

Se essa intervenção simultânea fosse admitida, onde se sentaria o advogado testemunha, na bancada ou na teia? Porventura, contra-interrogar-se-ia a si próprio? 

Esta incompatibilidade de estatutos processuais tem também um afloramento na prova pericial, quando se prevê o impedimento de intervir como perito de quem haja de depor como testemunha (vejam-se os artigos 470º, nº 1 e 115º, nº 1, alínea h), ambos do Código de Processo Civil).

Ora, se a lei prevê uma incompatibilidade de estatutos processuais relativamente a entidades que apenas intervêm na fase de instrução e enquanto meros meios de prova, esse impedimento é mais candente quando se trata da assunção simultânea da qualidade de testemunha com a do profissional forense que conduz a lide em representação de uma das partes.

Não se diga que esta incompatibilidade de estatutos tem solução, bastando para tanto que logo que o advogado de uma parte seja indicada como testemunha, cessa a sua intervenção como advogado. De facto, se assim fosse, estaria achada a forma expedita de afastar quem se quisesse do patrocínio da parte contrária, assim interferindo no direito de livre escolha que cada parte tem do Advogado que a patrocina.

A aplicação analógica do artigo 499º do Código de Processo Civil, também não nos parece possível, pois o estatuto do julgador não tem, na nossa perspetiva, analogia com o estatuto de mandatário de uma das partes. De facto, o julgador tem um estatuto de independência e imparcialidade que o mandatário da parte não tem, o que, a nosso ver, obsta à referida aplicação analógica.

Assim, pelo que precede, bem se percebe e entende a limitação do direito à prova que dessa interpretação resulta.

No caso em apreço, a autora só de si própria se pode queixar no que respeita o seu direito à prova, pois que, logo na petição inicial, poderia ter oferecido a testemunha D…, pessoa que logo mencionou no artigo 4º desse articulado. Se porventura assim tivesse procedido, ressalvado o caso do exercício abusivo do oferecimento de prova testemunhal, era a ré que estava impedida de constituir advogada essa pessoa nos autos em que precedentemente foi oferecida para depor como testemunha."

[MTS]