"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/05/2017

Jurisprudência (622)


Direito de retenção;
graduação de créditos


1. O sumário de RP 7/2/2017 (5306/15.1T8OAZ-A.P1) é o seguinte:

I - A sentença proferida em sede de ação declarativa que reconheça ao credor reclamante a existência do direito de retenção não constitui caso julgado contra o exequente que não interveio nessa ação, não lhe sendo, por isso, oponível. 

II - Contudo, como os credores reclamantes, em sede de reclamação de créditos, não deduziram qualquer impugnação ao crédito garantido pelo direito de retenção, conforme lhes competia, dá-se como reconhecido o crédito proveniente desse direito de retenção e gradua-se em conformidade.

III - No confronto entre o crédito garantido por direito de retenção, o crédito por impostos do Estado e o crédito por contribuições à Segurança Social, estes com privilégio mobiliário geral, aquele assume prevalência na ordem da graduação, seguindo-se o crédito do Estado e, por último, o crédito da Segurança Social. 

IV - Quando, além do direito de retenção, concorrem com o crédito por contribuições à Segurança Social o crédito do Estado por impostos, ambos garantidos por privilégio mobiliário geral, não se dá aplicação ao segmento normativo do artigo 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social que confere prioridade sobre o penhor, ainda que de constituição anterior.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"O núcleo da dissidência da recorrente reside na desconsideração do direito de retenção de que beneficia relativamente aos bens penhorados e que, na sua ótica, sobrelevam na graduação o privilégio mobiliário dos créditos do Estado e da ISS, IP.

O direito de retenção é o direito conferido ao credor que se encontra na posse de certa coisa de recusar a sua entrega enquanto o devedor não cumprir, bem como de executar e se fazer pagar à custa do valor dela, com preferência aos demais credores (artigos 754º, 758º e 759º do Código Civil).

O ordenamento civilista clarifica a dupla natureza do direito de retenção: um meio de coerção ao cumprimento da obrigação e um verdadeiro direito real de garantia, a significar que apresenta uma função coercitiva e uma função de garantia [...]. À luz desta natureza de direito real o devedor tem o direito de ser pago preferencialmente pelo valor da coisa retida e, estando em causa, a retenção de coisas móveis, aplica-se-lhe a disciplina do penhor, pois o regime legal equipara o retentor de coisas móveis ao credor pignoratício (artigo 758º do Código Civil).

Na situação factual delineada, em prévia ação declarativa interposta pela exequente contra a executada, foi proferida sentença, transitada em julgado, que reconheceu àquela direito de retenção sobre os móveis penhorados. Como os credores reclamantes não foram demandados nessa ação, pode questionar-se a oponibilidade dos efeitos da sentença e se, por essa via, estarão vinculados ao declarado direito de retenção. A questão tem sido jurisprudencialmente debatida a propósito dos credores hipotecários e tem alcançado soluções divergentes. Enquanto há jurisprudência que entende que a sentença que reconhece a existência do direito de retenção sobre a coisa hipotecada faz caso julgado quanto ao credor hipotecário não interveniente na ação respetiva, pois este é de qualificar como terceiro juridicamente indiferente e não como terceiro juridicamente interessado [Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª ed., Almedina, 2006, pág. 230; in www.dgsi.pt: Acs. do STJ de 20-10-2011, processo 2313/07.1TBSTR-B.E1.S1; RP de 02/06/2014, processo 3508/09.9TBVNG-A.P1], outra defende que, não tendo sido partes na ação declarativa que reconheceu o direito de retenção, não lhes é oponível a respetiva sentença, mas opondo-se ao direito de um terceiro juridicamente interessado, incompatível, os credores reclamantes têm legitimidade para impugnar o direito de retenção (artigo 789º, 3, do CPC) [In www.dgsi.pt: Ac. RP de 01-06-205, processo 3487/12.5TBVFR-B.P1; Ac. STJ de 20-10-2011, processo 2313/07.1TBSTR-B.E1.S1.].

Independentemente do descrito, cremos que o artigo 789º, 5, do CPC, ao estatuir que se o crédito estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, a impugnação só pode basear-se nos fundamentos exarados nos artigos 729.º e 730.º do mesmo diploma, funda a ilação, por argumento a contrario sensu, que, se o direito de crédito reclamado não estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, a impugnação pode basear-se em qualquer pertinente fundamento [...].

No caso, os credores reclamantes não tiveram intervenção na ação declarativa que reconheceu o direito de retenção da devedora, exequente, mas não estavam inibidos de proceder à sua impugnação em sede de reclamação de créditos. Ora, nesta reclamação de créditos, os credores reclamantes não impugnaram o crédito exequendo, garantido por direito de retenção e reclamado com essa natureza, pelo que o mesmo assim tem de ser reconhecido e graduado em conformidade, no que procede a correlativa argumentação da recorrente.

A sentença recorrida efetuou a graduação a partir da data da penhora dos bens móveis e, no cotejo com os privilégios mobiliários conferidos aos créditos reclamados, deu-lhes prevalência e graduou em último lugar o crédito exequendo. Ora, desfrutando o crédito da exequente da garantia conferida pelo direito de retenção, como estão em causa bens móveis, ele está submetido ao regime do penhor (artigo 758º do Código Civil). Logo, nos termos do artigo 666º do Código Civil goza de preferência sobre os demais credores, mas se houver credores que gozem de privilégio sobre os mesmos bens, prevalecem as regras dos artigos 749º e 750º do Código Civil [...].

Como bem expõe a sentença recorrida, os créditos reclamados beneficiam de privilégio creditório, definido como a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (artigo733º do Código Civil). Privilégios creditórios que podem ser mobiliários ou imobiliários, sendo mobiliários gerais quando abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente e especiais quando compreendem apenas o valor de determinados bens móveis (artigo 735º do Código Civil) [...].

Compreensivelmente, no quadro dos privilégios imobiliários, o Código Civil não distingue os gerais dos especiais, porque a conceção adotada os ressume sempre a especiais, por incidirem sobre determinados bens imóveis. No entanto, como ulteriormente foram criados, por diplomas avulsos, alguns privilégios imobiliários gerais, entende-se que os privilégios imobiliários são também gerais e especiais, consoante se reportem a todos ou determinados bens imóveis do devedor [...].

O crédito de IVA, por estar em causa um imposto indireto, goza de privilégio mobiliário geral sem limitação temporal, ou seja, independentemente dos anos de cobrança(artigo 736º do Código Civil). O IRC, na sua natureza de imposto direto, goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário (especial), como decorre do preceituado no artigo 116.º do CIRC, relativamente aos três últimos anos, sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente. Portanto, datando a penhora de 25-11-2015, sendo o IRC de 2013 e o IVA privilegiado independentemente do ano de cobrança, para pagamento dos correspetivos créditos, a Fazenda Nacional goza de privilégio mobiliário geral sobre os bens penhorados.

O reconhecido crédito da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora, nos termos do disposto no artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, aprovado pela lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, goza de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral.

No concurso de créditos privilegiados, beneficiando de igual privilégio, dar-se-á rateio entre eles, na proporção dos respetivos montantes (artigo 745º do Código Civil). E o crédito da segurança social, gozando de privilégio mobiliário geral, gradua-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil, prevalecendo sobre qualquer penhor ainda que de constituição anterior. Como os privilégios mobiliários gerais decorrentes de impostos se graduam em primeiro lugar e, dentre estes, primeiros os do Estado e só depois os das autarquias, e quanto aos créditos da segurança social, como também gozam de privilégio mobiliário geral, há doutrina que tem defendido, como citado na sentença recorrida, que estes créditos da segurança social, no que respeita aos bens móveis, são graduados em pé de igualdade com os créditos fiscais, com rateio entre eles na proporção dos respetivos montantes (artigos 745º e 747º do Código Civil) [...].

Esta questão tem, contudo, sido objeto de lata discussão, que remonta ao domínio da equivalente norma do revogado artigo 10º do decreto-lei 103/1980, de 9 de maio. Nesse âmbito, como no atual regime, se concorrerem apenas créditos segurança social e créditos garantidos por penhor, na decorrência dessa norma excecional, o crédito da Segurança Social prevalece sobre o do direito do credor pignoratício. Porém, se concorrerem também créditos de impostos devidos ao Estado que beneficiam de privilégio mobiliário geral sobre os mesmos bens móveis, surge conflito entre as duas normas, porque o penhor prevalece sobre o crédito de impostos, por força da regra geral dos artigo 666º/1, 747º/1 e 749º/1 do Código Civil, mas o crédito da Segurança Social deve ser graduado após o crédito por impostos, por dever ser graduado depois deste [...].

Regras que se convocam, porque, como antecipámos, recaindo o direito de retenção sobre coisas móveis, o respetivo titular goza dos direitos e está sujeito às obrigações do credor pignoratício, salvo pelo que respeita à substituição ou reforço de garantia (artigo 758º do Código Civil). Por isso, nos termos da estatuição do artigo 666º/1, do Código Civil, o detentor goza de preferência sobre os demais credores. Logo, o exequente, à semelhança do credor pignoratício, no confronto com os titulares dos demais créditos reconhecidos, mas todos eles beneficiários de privilégio mobiliário geral, goza do direito do seu crédito ser graduado em primeiro lugar. É que o privilégio mobiliário geral não vale contra terceiro, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente (artigo 749. Do Código Civil). «Os direitos oponíveis ao credor exequente são aqueles que não podem ser atingidos pela penhora. Neles estão compreendidos não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja, entretanto, adquirido.» [...].

No tocante à graduação dos créditos que gozam de privilégio mobiliário geral, entendemos que fica paralisado o segmento normativo daquele artigo 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social que confere prioridade dos créditos da Segurança Social sobre o penhor, dando-se apenas aplicação ao vetor que remete para o artigo 747º/1 do Código Civil e, nessa medida, os créditos de impostos devidos ao Estado sobrelevam o crédito da Segurança Social [...].

Não ignoramos que há uma ou outra decisão jurisprudencial que considera que a regra do identificado artigo 204º/2, ao determinar a prevalência do crédito da segurança social por contribuições sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, tem uma natureza especial, que sobreleva a regra geral do artigo 749º do Código Civil e, portanto, prevalece sobre o penhor/direito de retenção [...].

Salvaguardando o muito respeito devido por essa posição, não a sufragamos porque os privilégios creditórios gerais não se configuram como direitos reais de garantia, mas apenas conferem prioridade no pagamento dos créditos que deles beneficiam. Estão, portanto, desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e não gozam de prevalência sobre as garantias reais que incidam sobre tais bens. De facto, os privilégios mobiliários gerais não constituem verdadeiros direitos reais de garantia, pois não incidem sobre coisa certa e determinada e, consequentemente, não conferem ao respetivo titular direito de sequela sobre os bens em que incidem. São apenas “direitos de prioridade” que, na execução do património do devedor, prevalecem contra os credores comuns. «(…) enquanto uma garantia real constitui um direito subjectivo pois que concede autorização legal de aproveitamento de um bem para efeito de assegurar o cumprimento da obrigação, os privilégios gerais são um mero esquema de beneficiação do credor, em termos de responsabilidade patrimonial, não constituindo um direito subjectivo.» [...]
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Em suma, em processo de graduação de créditos relativa a bens móveis em que concorram crédito garantido por direito de retenção, crédito de impostos a favor do Estado e crédito por contribuições para a Segurança Social, todos estes garantidos por privilégio mobiliário geral, são graduados, para serem pagos pelo produto dos bens móveis penhorados, do seguinte modo:

1. O crédito da exequente, garantido por direito de retenção;

2. O crédito por impostos devidos ao Estado;

3. O crédito do Instituto da Segurança Social.

As custas da execução sairão precípuas do produto dos bens penhorados."

[MTS]