"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/05/2017

Jurisprudência (629)


União de facto; prestações por morte;
impugnação; tribunais administrativos e fiscais



1. TConf 25/1/2017 (028/16) decidiu o seguinte:

I - Incumbe aos serviços da segurança social o reconhecimento da situação de união de facto como pressuposto do direito às prestações por morte de membro de uma situação união de facto, estabelecidas na Lei n.° 7/2001, de 11 de maio, na redação resultante da Lei n.° 23/2010, de 30 de agosto.
 
II - Sempre que os elementos probatórios recolhidos na avaliação levada a cabo por aqueles serviços não suscitem dúvidas fundadas no sentido da existência ou inexistência da mencionada relação de união de facto, os referidos serviços, no âmbito das suas atribuições, reconhecem ou recusam o direito às prestações em causa.

III - A discordância dos interessados relativamente à avaliação feita pelos serviços da segurança social sobre a existência da situação de união de facto, integra litígio emergente de uma relação jurídica administrativa da competência dos Tribunais da Jurisdição Administrativa, nos termos do artigo 4.º, n.° 1, alíneas a) e c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"1 - Resulta do artigo 211.º, n.° 1, da Constituição da República (CRP), que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Por outro lado, resulta do artigo 212.°, n.° 3, da Constituição da República, que compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n 13/2002 de 17 de fevereiro (Lei n.° 13/2002, de 19 de fevereiro, com as alterações decorrentes do DL n.° 214-G/2015, de 02/10, da Lei n.° 20/2012, de 14/05; da Lei n.° 55-A/2010, de 31/12; do DL n.º 166/2009, de 31/07; da Lei n.° 59/2008, de 11/09; da Lei n.º 52/2008, de 28/08; da Lei n.° 26/2008, de 27/06; da Lei n.º 2/2008, de 14/01; da Lei n.º 1/2008, de 14/01; da Lei n.º 107-D/2003, de 31/12; da Lei n.º 4-A/2003, de 19/02 e objeto da Retificação n.° 18/2002, de 12/04 e da Retificação n.º 14/2002, de 20/03.), no quadro das normas constitucionais acimas citadas, reafirmando-se no n.° 1 do artigo 1.º daquele diploma que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567.)

Resulta, por outro lado, do artigo 64.° do Código de Processo Civil que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Conforme ensina MANUEL DE ANDRADE, a propósito dos elementos relevantes para a determinação da competência para conhecer de determinado litígio, «são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que proveem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação - seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes)» (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p.p. 90 e 91.).

Prosseguia aquele autor, referindo que «a competência do tribunal - ensina REDENTI, “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes» (Ibidem.) .

Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição inicial que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento do mesmo.

Foi também neste sentido que se fixou a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, conforme pode ver-se, entre outros, no acórdão de 12 de janeiro de 2010, proferido no processo n.° 1337/07.3TBABT.E1.S, da 1.ª secção, onde se refere «como se deixou já dito e se decidiu no Ac. deste S.T.J. de 13/3/2008, (...) “Para decidir a matéria da exceção, da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa petendi e, também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante” e mais adiante “no fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância - no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante - que determina a resolução desses pressupostos”» (Disponível nas bases de Dados Jurídicas da DGSI.) .

Será, portanto, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial, nomeadamente da causa de pedir e do pedido, que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação.

2 - Conforme se alcança da petição inicial, a Autora, não se conformando com a decisão do Réu que indeferiu a sua pretensão no sentido de lhe serem reconhecidos os direitos de natureza social derivados da situação de união de facto que invoca, demandou o Réu para que este fosse condenado a reconhecer que «a) (…) à data do falecimento de B…………….. existia uma relação de união de facto entre o “de cujus” e a Autora»; a reconhecer «b) (...) o direito à Autora às prestações por morte de B…………….. »; a «c) (...) a reconhecer a união de facto entre a autora e B…………….. »; a «e) (...) a reconhecer que a Autora tem direito a ser titular das prestações por morte do “de cujus”» e «f) (...) ao pagamento das prestações por morte referente ao “de cujus”, desde a data do óbito, acrescidas dos respetivos juros à taxa legal».

No fundo, a Autora pretende a alteração da situação jurídica emergente do ato administrativo que recusou as prestações sociais peticionadas através da condenação do Réu a reconhecer a existência da situação de união de facto e a reconhecer o direito àquelas prestações.

Nos pressupostos desse direito encontra-se a situação de união de facto que a Autora entende que teria de ser declarada judicialmente nos tribunais judiciais e escaparia à competência dos tribunais administrativos.

Tal como se mostra configurado, o litígio entre a Autora e o Réu emerge de uma relação jurídica de natureza administrativa que decorre da responsabilidade da segurança social pelo sistema de prestações sociais consagrado na Lei n.° 7/2001, de 11 de maio, na versão resultante da Lei n.° 23/2010, de 30 de agosto.

A Autora e o Réu divergem relativamente à demonstração da existência da situação de união de facto como pressuposto do direito às prestações que a Autora reclama e cujo reconhecimento se insere nas atribuições da segurança social.

A relação jurídica em causa é disciplinada pelo direito público e é nos quadros deste ramo do Direito que o litígio terá de ser resolvido.

À luz do acima exposto, bem andou o Tribunal da Relação quando decidiu que a competência para conhecer do litígio pertence aos Tribunais da Jurisdição Administrativa, nos termos do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais."
 
[MTS]