Litigância de má-fé
1. O sumário de STJ 12/1/2017 (59970/12.8YIPRT.E1.S1) é o seguinte:
I. O facto de as partes terem exarado transacção não interfere na avaliação da sua conduta processual em termos de litigância de má-fé.
II. Litiga de má-fé a parte que usa os mecanismos processuais com o único objectivo de retardar o trânsito em julgado da decisão, como sucede com a dedução de pretensão recursória cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar.
III. Assim acontece quando, numa acção em que é pedida a condenação da R. no pagamento de facturas que foram emitidas no âmbito da execução de um contrato de empreitada, a R. vem invocar, pela primeira vez, no recurso de revista a falta de prova escrita desse contrato, cuja existência, no entanto, reconhece e que pela própria R. foi junto aos autos depois de oferecida a contestação cujo desentranhamento foi ordenado.
"5. O processo civil actual, depois da reforma de 1995/96, passou a penalizar a lide em que a parte actue com culpa grave e não apenas lide dolosa.
Apesar disso - ou por isso – a grande maioria das usuais actuações não acarretará outras consequências para além das resultantes da improcedência da acção ou da defesa e da consequente condenação em custas da parte vencida.
Mas constituindo o direito processual o modo como se manifesta o exercício do direito de acção e de defesa amplamente garantidos pelo nosso sistema jurídico, natural é a exigência de que se faça um uso correcto desses mecanismos postos à disposição das partes, sem que se sirvam deles para fins ilegítimos.
Através da litigância de má-fé a lei pune a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes, quer ela se apresente como uma forma de conseguir um objectivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quer como um meio de impedir a descoberta da verdade, quer ainda como forma de emperrar a máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios, quer ainda, mais concretamente, como forma de impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a parte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido.
Através da qualificação da actuação como má-fé instrumental, procura-se sancionar os comportamentos que, motivados por dolo ou por culpa grave, digam respeito não ao fundo ou mérito da causa, mas à relação jurídica processual.
6. Não importa que nos debrucemos sobre as questões que integravam o objecto do recurso cuja apreciação, como se referiu, se revela supervenientemente inútil em face da transacção que as partes exararam no processo de execução.
Centrar-nos-emos na questão da litigância de má-fé que foi assinalada pelo ora relator em anterior despacho e cuja apreciação não é prejudicada pelo facto de as partes terem transigido.
Com efeito, a transacção constitui um negócio jurídico que as partes celebram no exercício da autonomia privada e da liberdade contratual, não afectando as consequências que devam ser extraídas da actuação processual pregressa quando, como sucede agora, se revelar a existência de litigância de má-fé.
Em termos sintéticos, a litigância de má-fé da R. recorrente, nas vertentes enunciadas, é o corolário dos seguintes pontos essenciais:
- Na primeira contestação que a R. apresentou não colocou em causa a existência do referido contrato de empreitada, limitando-se a arguir a ineptidão da petição inicial, na medida em que nas facturas apresentadas não estariam referenciadas as obras a que correspondiam;
- Na sequência da apresentação de petição aperfeiçoada, a R. apresentou também nova contestação, na qual indicou a junção de 8 documentos, os quais, porém, foram juntos em requerimento autónomo de fls. 79 e segs. Entre tais documentos contava-se precisamente o contrato de empreitada em causa (fls. 80 a 84);
- Por acórdão da Relação foi determinado o desentranhamento do “acto de oposição” (fls. 249), mas tal decisão, embora não tenha sido cumprida pela secretaria, respeitava apenas formalmente à segunda contestação e não aos documentos que posteriormente foram apresentados em requerimento avulso;
- Por isso o desentranhamento da contestação, se acaso tivesse sido executado, nem sequer determinaria o desatendimento dos documentos que com a mesma fossem apresentados; ademais nenhuma reacção as partes tiveram quanto ao facto de esses documentos se manterem nos autos na data em que foi proferida a decisão da matéria de facto;
- Seja como for, o certo é que tais documentos sempre estiveram nos autos, onde puderam ser analisados na ocasião em que foi proferida decisão da matéria de facto e a sentença, assim como o acórdão da Relação;
- A sentença foi julgada procedente e, embora a R. tenha apelado, a Relação confirmou a sentença, considerando que as questões que a R. suscitou na apelação eram novas e que, por isso, não poderiam ser discutidas. Tratava-se de questões unicamente em redor do vencimento da obrigação de pagamento do preço, nada se referindo acerca da validade ou da prova do contrato de empreitada;
- A questão da falta de demonstração, pela A. do contrato de empreitada reduzido a escrito apenas foi suscitada pela R. apenas no recurso de revista, depois de ter sido completamente ignorada na 1ª instância e no recurso de apelação;
- A R. sustenta a sua pretensão de declaração de nulidade num outro acórdão do Supremo, de 3-12-15, relatado pelo ora relator e com intervenção dos dois juízes adjuntos, mas a situação que nele se configurava não tinha qualquer semelhança com a que decorre dos autos. Com efeito, em tal caso não fora formalizado qualquer contrato de empreitada, ao passo que no caso presente esse contrato foi reduzido a escrito, como a recorrente bem o reconhece, tendo sido esta a apresentar nos autos a prova desse mesmo contrato;
- O ónus da prova dos factos é de natureza objectivo (art. 413º do CPC), como é entendimento uniforme na jurisprudência e na doutrina, de modo que não importa qual a origem do meio de prova para que o tribunal possa afirmar a existência do facto que visa demonstrar;
- O exercício do direito de defesa tem limites objectivos, sendo ilegítima a dedução de meios de defesa que manifestamente não encontram sustentação legal e que apenas se destinam a colocar a parte contrária e o Tribunal em posição desvantajosa ou mais difícil quanto ao exercício do direito ou quanto ao reconhecimento desse direito, respectivamente;
- Os recursos, e mais ainda os recurso de revista para um Supremo Tribunal de Justiça, são instrumentos processuais graves que interferem no trânsito em julgado das decisões e na celeridade processual, não devendo ser usados, como é manifesto que no caso ocorreu, como simples actos destinados a dificultar ou a atrasar o reconhecimento do direito, enquanto porventura decorrem negociações com vista à transacção;
- Os argumentos de ordem jurídica que é legítimo usar não se confundem nem podem confundir com artifícios formais, mais a mais quando a sua invocação é infirmada directamente quer pela actuação pregressa da parte, quer pela análise do processo;
- A recorrente reconhece que existiu contrato de empreitada reduzido a escrito, contrato que, aliás, foi por ela apresentado e que continua junto aos autos, onde pôde ser analisado pelas instâncias quando se pronunciaram sobre a decisão da matéria de facto;
- Neste contexto, no encontra o menor fundamento legal ou racional a alegação de que este Supremo Tribunal de Justiça deveria declarar a nulidade do contrato por vício de forma, sob o pretexto de que era a A. que estava onerada com o ónus da prova da demonstração desse facto, desvalorizando por completo a actuação da própria recorrente que se traduziu na junção aos autos do documento, no reconhecimento da sua existência real e, além disso, na sua incontornável percepção que resulta do facto de continuar nos autos.
Em suma, a actuação da R. recorrente é de qualificar como litigância de má-fé, merecedora de sancionamento cível."
[MTS]