"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/05/2017

Jurisprudência (626)


Processo de insolvência; venda executiva;
formalidades; preterição



1. O sumário de RP 30/1/2017 (530/16.2T8AVR-F.P1) é o seguinte: 

I - A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo administrador da insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da venda.
 
II - A declaração da ineficácia do acto relativamente à massa insolvente, só pode ser declarada nos termos do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelos credores, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem.
 
III - Não obstante, isso não afasta a eventual responsabilidade do Srº. Administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (artigo 59.º do CIRE),
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Entre as [...] funções consignadas no artigo 55.º incumbe ao administrador da insolvência promover a venda dos bens do insolvente, tendo em vista o pagamento das dívidas do insolvente [alínea a), do n.º 1].

Tais funções são exercidas sob a fiscalização da Comissão de Credores ou, na falta desta, pela Assembleia de Credores, e pelo juiz do processo (artigos 55.º, n.º 5, 58.º e 68.º), sendo que, no exercício desse poder de fiscalização, o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, considere, fundadamente, existir justa causa (artigo 56.º).

O administrador responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem, sendo a sua culpa apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º, n.º 1). O administrador responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador (artigo 59.º, n.º 2).

No que concerne em particular à liquidação e ao contrário do que sucedia no CPEREF, o administrador dispõe mesmo da faculdade de escolher a modalidade da alienação dos bens que entender ser a mais adequada à maximização do produto da liquidação, que é o objectivo que está adstrito a prosseguir com zelo, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente, sem para o efeito depender de qualquer deliberação ou autorização dos credores (artigo 164.º, n.º 1) [...].

Ora, esta faculdade de escolha de modalidades de venda não reguladas no processo executivo tem inerente a possibilidade de o administrador de insolvência escolher formas atípicas de venda e de definir ele mesmo as regras a que a modalidade escolhida deve obedecer, nada obstando a que a modalidade escolhida seja, afinal, uma mistura de procedimentos próprios das modalidades típicas do processo executivo.

Como nos parece evidente, nessa escolha e definição o administrador deve optar, necessariamente, por aquelas que, de acordo com as circunstâncias concretas que se lhe deparam, se mostrarem mais aptas para optimizar o resultado da liquidação e a satisfação do interesse dos credores, tendo sempre presente o critério de um administrador criterioso e ordenado.

O administrador pode iniciar a venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente logo que a declaração de insolvência tenha transitado em julgado, tenha sido realizada a assembleia de apreciação do relatório e desde que as deliberações tomadas pelos credores na assembleia de apreciação do relatório não se oponham a essa venda (artigo 158.º).

Para a prática de alguns actos, pelo seu relevo económico, a lei exige, porém, que o administrador obtenha o consentimento da comissão de credores, ou, não existindo aquela, da assembleia de credores (artigo 161.º). 

Segundo o artigo 161.º, nº 1, a prática de actos jurídicos, que assumam especial relevo para o processo de insolvência, depende do consentimento da comissão de credores, ou, não existindo aquela, da assembleia de credores. São, assim, actos que dependem de uma actuação conjunta de diversos órgãos da insolvência. 

Apesar de a actuação do administrador da insolvência estar genericamente submetida à fiscalização da comissão de credores, a lei subordina a eficácia de certos actos jurídicos a prévio consentimento dos credores. Estamos perante a concessão de um poder de fiscalização prévia aos credores, que acresce ao poder geral, previsto no artigo 68.º, nº 1. 

Mas que actos têm especial relevo? 

Como refere Paula Costa e Silva [In ROA 65 (2005), 3, pág.740 e ss.] “A lei utiliza uma técnica mista de qualificação que visa, seguramente, conferir flexibilidade ao preceito. Por um lado, apresenta índices de qualificação no n.° 2 do art. 161, por outro, enuncia, no n.° 3 do mesmo preceito, tipos de actos que se presumem ter particular relevo. Isto implica ter especial relevo quer um acto relativamente ao qual se preencham os índices do n.° 2, quer um acto que se apresente como análogo àqueles que estão enunciados no n.° 3.

Tanto dos índices, quanto dos casos expressamente previstos, resulta que terão especial relevo actos que influenciem decisivamente o processo de insolvência, quer porque têm especial impacto na massa insolvente, quer porque repercutem efeitos no conjunto das dívidas da insolvência. Curiosamente, entre os actos que assumem especial relevo não se prevêem especificamente as actuações processuais”.

No que interessa aos autos, cabe à Comissão de Credores ou, não existindo esta, à Assembleia de Credores, dar o consentimento prévio para a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência, entre eles o da alienação de qualquer bem do insolvente por preço igual ou superior a € 10.000,00, que represente pelo menos de 10% do valor da massa insolvente à data da declaração da insolvência [art.º 161º, n.ºs 1, 2 e 3 al. g)].

No caso da alienação que seja considerada acto de especial relevo para efeitos do artigo 161º, ser feita por negociação particular, como aconteceu no caso em apreço, o Administrador da Insolvência deve comunicar à Comissão de Credores e ao Insolvente, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data prevista para a transacção, a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio (n.º 4 do artigo 161.º do CIRE).

Podendo o juiz do processo sobrestar na alienação do bem e convocar a Assembleia de Credores para dar o seu consentimento a essa alienação, se tal lhe for requerido pelo Insolvente, ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e resultar do requerimento que será plausível que a alienação a outro interessado se mostre mais vantajosa para a massa insolvente (n.º 5 do artigo 161.º).

Impondo-se ainda ao Administrador da Insolvência a obrigação de ouvir o credor com garantia real sobre o bem a alienar, sobre a modalidade de alienação, informando-o do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a determinada entidade, credor esse que pode, no prazo de uma semana, propor a aquisição do bem por preço superior ao do valor base ou da venda projectada (n.ºs 2 e 3, do artigo 164.º do CIRE).

Perante este quadro normativo e trazendo à liça as regras do CPCivil sobre a invalidade da venda, seria de prever que o CIRE consagrasse regime idêntico à invalidade da venda em processo executivo, ficando a mesma sem efeito, nomeadamente, por a irregularidade cometida poder influir no exame ou decisão da causa [art.º 839º, n.º 1, c) por referência ao art.º 195º, ambos do CPCivil], ou melhor dito, se da irregularidade cometida se concluísse que a alienação do bem, pela forma que foi efectuada, seria prejudicial à massa insolvente e, consequentemente, aos interesses dos credores do insolvente.

Nessa perspectiva, a nulidade da venda pelo Administrador da Insolvência seria de se verificar, à semelhança, aliás, do que acontece com a venda em processo executivo, nos casos em que, por exemplo, “da falta de audição do exequente, do executado e dos credores com garantia sobre os bens a vender sobre a modalidade de venda e o valor base dos bens (art.º 812º, n.º1)” [ Cfr. Lebre de Freitas, a Acção Executiva à Luz do CPC de 2013, págs. 399], nas situações de falta de consentimento prévio da Comissão de Credores ou da Assembleia de Credores quando a lei o exige, de falta de comunicação, no tempo devido, aos diversos interessados processuais da projectada venda e das suas condições negociais, nomeadamente, entre outros, ao credor com garantia real sobre o bem a alienar, etc.. 

Acontece que, o legislador do CIRE, pôs de lado todos os princípios que acima enunciámos relativamente à invalidade da venda em acção executiva e veio a consagrar, nos artigos 163.º e 164.º do CIRE, uma solução diversa em que é conferida excessiva protecção ao adquirente do bem em relação aos interessados processuais, em particular aos credores, mas também ao insolvente, desequilíbrio esse que é mitigado por via da ineficácia dos actos de alienação de bens que, violando o disposto nos art.º 161º e 162º, venham a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as da contraparte, ou seja, do adquirente dos bens (art.º 163º, n.º1 do CIRE) e ainda pela responsabilização do Administrador da Insolvência nos termos do n.º 3 do art.º 164º, que fica obrigado a colocar o credor na posição que decorreria se alienação fosse pelo preço proposto pelo credor ou ainda, na falta de notificação ao credor garantido nos termos do n.º2 do art.º 164º do CIRE, na responsabilização do Administrador da Insolvência pelo diferencial entre o preço da alienação do bem e o do crédito garantido, deitando mão ao disposto no art.º 59º do CIRE. [Cfr. CIRE Anotado, Carvalho Fernandes e João Labareda, 3ª Ed., págs. 612 e ss.

Por conseguinte, nessa situação devem distinguir-se os efeitos ao nível interno, isto é, entre o administrador, o insolvente e os credores, em que o administrador, para além de poder ser destituído, é chamado a responder pelas consequências da sua actuação ilícita e terá de indemnizar os danos resultantes para os credores, dos efeitos ao nível externo, isto é, ao nível das relações com terceiros, estranhos ao processo de insolvência, em que se mantém a validade e eficácia do acto praticado.

Destarte, a violação das formalidades legais previstas nos artigos 161º e 162º, não geram, só por si, a ineficácia da venda efectuada sem o cumprimento das mesmas, a menos que venha a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as do adquirente do bem.

O mesmo acontecendo relativamente à violação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 164º do CIRE, que gera apenas a responsabilização do Administrador da Insolvência nos termos acima referidos.

Isto, sem prejuízo de, em caso de colusão entre o Administrador da Insolvência e o adquirente do bem, poder considerar-se aplicável o disposto no artigo 281.º do Cód. Civil, declarando-se nulo o acto de venda. [] Vide Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª Ed., pág. 331 e Heinrich Ewald Hörster. A Parte Geral do Código Civil Português, pág. 489]."


[MTS]