"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/05/2017

Jurisprudência (628)


Matéria de facto; qualificação jurídica;
convolação do pedido; inadmissibilidade
 

1. O sumário de STJ 19/1/2017 (873/10.9T2AVR.P1.S1) é o seguinte

I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves- mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.

III. Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.

IV. Não tendo o A. logrado provar os factos que consubstanciam a causa de pedir invocada, provando-se antes uma relação jurídica diversa, firmada entre o autor e um dos réus, de que possa resultar também um efeito prático-jurídico distinto do peticionado, não resta senão julgar a ação improcedente. 
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como acima ficou enunciado, o objeto da presente ação, definido pelo pedido e causa de pedir deduzidos pelo A. contra os três R.R. consubstancia-se numa pretensão de condenação solidária destes no pagamento do preço das máquinas em falta que, alegadamente, teriam sido vendidas pelo A. à 1.ª R., nos termos constantes do escrito reproduzido a fls. 11, com a constituição do 2.º R e da 3.ª R. como fiadores da compradora pelo pagamento daquele preço.

Porém, os R.R., em sede de contestação, negaram a celebração daquele contrato, invocando que o escrito de fls. 11 fora por eles assinado em branco, pelo 2.º R., como gerente da 1.ª R., e pela 3.ª R. como “avalista” da mesma, sustentando ainda que fora outro o contrato celebrado entre o A. e o 2.º R. nos termos já acima expostos.

Perante esta defesa, o A. nem tão pouco procurou, na réplica, alterar a pretensão inicial, ainda que a título subsidiário, no sentido de demandar o 2.º R., a título de responsabilidade pela perda das máquinas em causa, para a eventualidade de se provar o contrato que os R.R. alegaram ter sido celebrado entre o mesmo A. e o 2.º R.. Manteve, pois, o A. a pretensão inicial nos seus precisos termos.

Provou-se, porém, que o escrito reproduzido a fls. 11 foi assinado em branco pelo 2.º R., apenas como gerente da 1.ª R., e pela 3.ª R. ali designada por avalista (pontos 1.20 e 1.21 da factualidade provada).

E, não obstante não se ter provado que os R.R. não autorizaram nem tiveram conhecimento do preenchimento daquele escrito (resposta negativa ao art.º 28.º da base instrutória correspondente ao ponto 2.6), provou-se ainda, no que aqui releva, o seguinte:

i) - foi celebrado um acordo entre o A. e o R. CC, segundo o qual este último venderia máquinas daquele, na Roménia, recebendo € 200,00 pela venda de cada máquina – ponto 1.2;

ii) - Conforme o acordado com o A., o R. CC informava-o do preço oferecido da identificação e dos números de fax e do telefone dos compradores, tratando, depois, o A. de toda a formalização dos contratos com os interessados na compra das máquinas, fixando o preço em definitivo, passando as faturas e os recibos e recebendo o preço, limitando-se aquele R. a receber de cada máquina vendida os € 200,00 acordados – pontos 1.9 a 1.11; [...]

viii) - A nota de “retorno de custódia”, constante do documento de fls. 90, significa a restituição de bens não vendidos pela 1.ª R. e que estavam sob custódia do R. em consignação – ponto 1.24.

Deste acervo fáctico resulta, desde logo, que o que assim foi acordado entre o A. e o 2.º R. é substancialemente diverso do que foi objeto de preenchimento pelo A. no escrito de fls. 11.

Com efeito, como foi entendimento das instâncias, o acordo celebrado entre o A. e o 2.º R. é suscetível de ser qualificado como contrato atípico designado por “contrato de consignação” ou “estimatório”, o qual vem sendo definido pela doutrina, no essencial, como o contrato em que uma das partes remete à outra unidades de determinada mercadoria para que esta as venda com direito a participar nos lucros e a obrigação de restituir as unidades não vendidas [...].

A esta espécie de contrato são aplicáveis, além do nele especificamente estipulado, subsidiariamente, o regime do contrato de mandato com ou sem representação, conforme o caso. E tendo esse contrato por objeto a prática de atos de comércio, como é, por exemplo, a venda de coisas móveis adquiridas pelo consignante com o intuito de revenda (art.º 463.º, n.º 3.º, do Cod. Com.), são aplicáveis as regras do mandato comercial, previstas nos artigos 231.º a 247.º do Cod. Comercial, quando o consignatário atue em nome e no interesse do consignante ou as regras do contrato de comissão, previstas nos artigos 266.º a 277.º do mesmo Código, quando atue no interesse e por conta do consignante, mas em nome próprio.

Em qualquer dos casos, no âmbito do sobredito contrato de venda à consignação, não ocorre a transmissão da propriedade dos bens do consignante para o consignatário, sendo que a responsabilidade deste pela perda dos bens entregues à consignação rege-se pelo regime do contrato de mandato, nomeadamente, quando se trata de prática de ato comercial, pelo disposto no artigo 236.º do Cod. Comercial, aplicável também ao contrato de comissão por força do preceituado no artigo 267.º do mesmo Código.

Seja como for, no caso vertente, o A. não logrou provar o alegado contrato de compra e venda com a 1.ª R. e em que os 2.º e 3.º R.R., nessa versão, teriam intervindo como fiadores daquela relativamente ao pagamento do preço, como decorre claramente dos factos dados como não provados descritos sob os pontos 2.1 a 2.3, o que só pode ter como resultado a improcedência da ação.

E embora se prove a versão contraposta pelos R.R., com a qual ficou completamente descaracterizada a pretensão do A., o certo é que a responsabilidade que pudesse ser porventura imputada ao 2.º R., na qualidade de consignatário, no âmbito do dita venda à consignação, pela perda das máquinas em falta, radicaria em factos constitutivos que extravasam a causa de pedir invocada e mantida pelo A., sendo que a indemnização porventura devida pela perda desses bens é também substancial e juridicamente diversa da obrigação de pagar o preço pedido na presente ação.

E não se trata aqui de uma mera convolação jurídica da pretensão formulada pelo A. que se mostre lícito operar nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC. Trata-se sim de uma pretensão, de resto nem sequer deduzida pelo A., qualitativamente diversa daquela, quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido, e portanto fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º, 609.º e 611.º do CPC.

Com efeito, a realização da justiça do caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

Assim, a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. Incumbe sim ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido. É-lhe, pois, vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, o mesmo é dizer, não comportada na órbita do efeito prático-jurídico deduzido, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada."

[MTS]