"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/05/2017

Jurisprudência (631)


Recurso de revista; admissibilidade;
litigância de má fé; requisitos


1. O sumário de STJ 26/1/2017 (417/14.3TBVFR.P1.S1) é o seguinte:

I. Não cabe recurso de revista do acórdão da Relação na parte em que alterou a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação (art. 662º, nº 4, do CPC).

II. A procedência da acção de impugnação pauliana relativamente a um contrato de compra e venda de imóvel exige a demonstração da má fé tanto do alienante como do adquirente.

III. Não se verifica a má fé se, para além de não se provar que os contraentes agiram com o intuito de prejudicar o credor impugnante, se provou ainda que o produto da venda do imóvel foi aplicado pelo vendedor no pagamento da dívida hipotecária que havia contraído.

IV. Fora do âmbito do regime da insolvência, não existe qualquer obrigação do devedor de tratar os credores comuns de acordo com o princípio
par conditio creditorum.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Houve uma batalha decisiva no sentido de conseguir que o quadro normativo que vinha do CPC de 1939 e que se mantivera no CPC de 1961 assegurasse um efectivo segundo grau de jurisdição na matéria de facto.

A inversão do modelo existente ocorreu com a Reforma do processo de 1995/96, que consagrou a atenuação do princípio da oralidade pura e admitiu a possibilidade de serem gravadas as audiências de julgamento, com vista a assegurar a posterior reapreciação pela Relação dos meios de prova sujeitos a livre apreciação.

Nem sempre essa alteração de paradigma foi bem compreendida pelos agentes judiciários. De um lado, as falhas verificaram-se (e continuam ainda a verificar-se) ao nível da motivação da impugnação da decisão da matéria de facto, com alegações genéricas e sem concretização dos alegados erros de julgamento ou apreciação crítica dos meios de prova. Do outro lado, da parte das Relações, a reacção traduziu-se numa certa resistência à assunção dos novos poderes que resultavam da lei, sob o pretexto de que não estavam reunidas as condições para a reapreciação dos meios de prova gravados.

Agora que, decorridos 20 anos, tudo se vai encaminhando para uma mais correcta compreensão daqueles ónus e destes deveres, muito por força da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça em sucessivos arestos, com reflexos no aperfeiçoamento do modo como é cumprido o ónus de alegação e de motivação e no modo como é acolhida a possibilidade de proceder à reapreciação dos meios de prova, começam a surgir reacções que procuram retirar à Relação a possibilidade de alterar a decisão da matéria de facto, regressando ao modelo que vigorava em 1995.

É preciso que nos entendamos definitivamente para que não subsistam equívocos. Ou bem que se assume que a decisão da matéria de facto é matéria que deve ser reservada à 1ª instância, servindo a Relação apenas para corrigir erros de direito, como ocorria no modelo original do CPC de 1961; ou que se aceita que a Relação é também um tribunal de instância, com um papel central na delimitação dos factos provados e não provados, devendo ter a possibilidade de corrigir a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação dos meios de prova sujeitos à livre apreciação.

É este foi modelo instituído em 1995/96, reafirmado em 2007 e confirmado e reforçado em 2013, ao qual devem obediência tanto os recorrentes como os tribunais.

A bondade das medidas legislativas não se afere unicamente pelas vantagens que se obtêm aquando a sua aplicação, sendo avaliada em função das soluções abstractas e em cuja previsão devem integrar-se as concretas situações.

Se acaso os recorrentes (ou o respectivo mandatário judicial) têm alguma objecção quanto ao referido modelo ora vigente, não será certamente pela via do recurso de revista que a devem veicular, já que também este Supremo Tribunal de Justiça, como os demais Tribunais, está limitado na sua actuação pela aplicação da lei.

Ora, no caso concreto, a Relação, quando alterou a decisão da matéria de facto, agiu ao abrigo do art. 662º, nº 1, do CPC, aplicando o princípio da livre apreciação dos meios de prova em que assentou a decisão recorrida.

Ademais, não é notada nem foi alegada pelos recorrentes a violação de qualquer outra norma de direito adjectivo ou de direito probatório material que imponha actuação ou solução diversa.

Nesta medida, o acórdão da Relação, na parte em que alterou a decisão da matéria de facto, não admite impugnação através do recurso de revista que, por isso, nessa parte se rejeita."

[MTS]