"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/10/2017

Jurisprudência (697)

Processo de jurisdição voluntária;
critério de decisão; recorribilidade


1. O  sumário de STJ 16/3/2017 (1203/12.0TMPRT-B.P1.S1) é o seguinte:
 
I - Ao incluir na competência dos tribunais o julgamento dos processos de jurisdição voluntária ou graciosa, cujas regras gerais se encontram nos arts. 986.º a 988.º do CPC, o legislador pretendeu que a prossecução de determinados interesses, em si mesmos de natureza privada, mas cuja tutela é de interesse público, fosse fiscalizada por entidades cujas características são garantia de uma protecção adequada à sua natureza.

II - Com essa finalidade, conferiu aos tribunais os poderes necessários para o efeito – v.g. o poder para investigar livremente os factos necessários à decisão e de recolher as provas que entendam pertinentes, rejeitando as demais (art. 986.º, n.º 2, do CPC), o poder de decidir segundo critérios de conveniência e de oportunidade (art. 987.º do CPC) e, na generalidade dos casos, o poder de adaptar a solução definida à eventual evolução da situação de facto (art. 988.º, n.º 1, do CPC) – afastando, quando conveniente, certos princípios, conformadores do processo civil em geral, que disciplinam a sua intervenção enquanto órgãos incumbidos de resolver litígios que se desenrolam entre partes iguais, perante os quais têm de adoptar uma posição de rigorosa imparcialidade.

III - Dotado destes meios, o tribunal deve assumir (nesse sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – no caso dos processos de promoção e protecção, o “interesse superior da criança e do jovem”, como expressamente afirma a al. a) do art. 4.º da LPCJP – ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos ou mesmo em oposição.

IV - A limitação que decorre do art. 988.º, n.º 2, do CPC no âmbito dos processos de jurisdição voluntária não implica a total exclusão da intervenção do Supremo nestes recursos, apenas a confina à apreciação das decisões enquanto aplicam lei estrita; é, nomeadamente, o que sucede, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.

V - Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida – como seja a existência de uma situação de perigo tal como é definida no art. 4.º da LPCJP ou de perigo graveou manifesto desinteresse conforme previsto nas als. d) e e) do n.º 1 do art. 1978.º do CC – cabe no âmbito dos poderes do STJ a apreciação da respectiva verificação, pelo que é admissível o recurso de revista com o âmbito assim delimitado.

VI - Resultando da matéria de facto provada, nomeadamente, que: (i) a menor nasceu em 14-07-2014 e, com cinco meses de idade, foi posta fora de casa pelo avô paterno, juntamente com a mãe; (ii) desde essa idade que a situação da menor foi sinalizada à CPCJ competente; (iii) a progenitora desconhece aspectos fundamentais para o desenvolvimento da menor e não estabelece horários adequados à sua alimentação e descanso, antes a levando para ambientes nocturnos desadequados à sua idade; (iv) a progenitora não se mostra capaz de proporcionar estabilidade, segurança e rotinas à filha; (v) a progenitora apresenta um défice cognitivo e um comportamento infantil e autocentrado, sendo incapaz de percepcionar os motivos que levaram à institucionalização da menor e de priorizar as necessidades desta em detrimento das suas; (vi) sucederam-se diversas medidas de protecção (apoio junto de outro familiar, acolhimento residencial), demonstrativas de séria incapacidade dos progenitores e de outros familiares para dela se encarregarem, ainda que com ajuda; e (vii) mantendo-se a situação de risco quando a medida foi decretada, conclui-se não ter o acórdão recorrido violado os pressupostos imperativamente fixados por lei para que possa ser determinada a medida de confiança com vista a futura adopção.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"3. Cumpre, antes do mais, determinar se é admissível o recurso de revista e, em caso afirmativo, se foi interposto em tempo.

Como se escreveu no despacho de fls. 936, “No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Junho de 2016, ora acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto confirma a verificação dos pressupostos da decisão de decretar “a confiança para futura adopção”, enunciados nas alíneas d) e e) do Código Civil, tal como decidira a 1ª instância.

No recurso de revista que interpõe, CC, por entre o mais, põe em causa essa verificação.

Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça e, portanto, deste recurso, a apreciação da respectiva verificação (nº 2 do artigo 988º do Código de Processo Civil).

Esta observação é independente de saber se estão preenchidos os demais requisitos de admissibilidade da revista – em particular, a sua tempestividade e a alegação de justo impedimento –, e ainda de saber se cabem no âmbito dos poderes de apreciação do Supremo Tribunal de Justiça outras questões suscitadas no recurso, problema a decidir quando se delimitar o respectivo objecto, se a revista excepcional vier a ser admitida.”

Pelo acórdão de fls. 985, a formação prevista no nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil admitiu a revista excepcional, no que às questões de legalidade respeita.

Cumpre, portanto, conhecer do recurso, na parte em que a recorrente não questiona “resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade” (nº 2 do artigo 988º do Código de Processo Civil), mas sim segundo critérios de legalidade, susceptíveis portanto de controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Quanto à tempestividade do recurso, pela verificação de justo impedimento, aceita-se o que se decidiu no despacho de admissão do recurso no tribunal recorrido, a fls. 959.

4. Como todos sabemos, estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária (cfr. anterior artigo 150º da Organização Tutelar de Menores, Decreto-Lei no 314/78, de 27 de Outubro, revogada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro, e artigo 100º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, republicada em anexo à Lei nº 142/2015). Essa qualificação, no que agora releva (transcreve-se ou segue-se de perto o que se observou no acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Fevereiro de 2008, da mesma relatora e disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 07B4681, proferido num processo judicial de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, em que o Ministério Público requereu a medida de confiança de menor a instituição, com vista à adopção), implica, desde logo, que “das resoluções proferidas [nestes processos] segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” (nº 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil).

Cumpre recordar que, ao incluir na competência dos tribunais o julgamento dos chamados processos de jurisdição voluntária ou graciosa, cujas regras gerais se encontram nos artigos 986º a 988º do actual Código de Processo Civil, o legislador pretendeu que a prossecução de determinados interesses, em si mesmos de natureza privada, mas cuja tutela é de interesse público, fosse fiscalizada por entidades cujas características são garantia de uma protecção adequada à sua natureza.

Com essa finalidade, conferiu-lhes os poderes necessários para o efeito, afastando, quando conveniente, certos princípios, conformadores do processo civil em geral, que disciplinam a sua intervenção enquanto órgãos incumbidos de resolver litígios que se desenrolam entre partes iguais, perante as quais os tribunais têm de adoptar uma posição de rigorosa imparcialidade.

Assim, no domínio da jurisdição voluntária, os tribunais podem investigar livremente os factos que entendam necessários à decisão (artigo 986º, nº 2), recolher as informações e as provas que entendam pertinentes, rejeitando as demais (mesmo 986º, nº 2), decidir segundo critérios de conveniência e de oportunidade (artigo 987º), e, na generalidade dos casos, adaptar a solução definida à eventual evolução da situação de facto (artigo 988º, nº 1).

Dotado destes meios, o tribunal deve assumir (neste sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – no caso, o “interesse superior da criança e do jovem”, como expressamente afirma a alínea a) do artigo 4º da Lei de Protecção das Crianças e dos Jovens em Perigo –, ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos, ou mesmo em oposição.

Como ali se explicita, a intervenção do tribunal “deve atender prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.

Explica-se desta forma que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva ou adjectiva (cfr. artigo 674º do Código de Processo Civil), não possa, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, ao abrigo do disposto no artigo 987º do Código de Processo Civil. Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (cfr. artigos 674º e 682º do Código de Processo Civil), a lei restringiu a admissibilidade de recurso até à Relação (artigo 988º, nº 2).

A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a confina à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita. É, nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.

Neste recurso, a recorrente nega que se mantenha “a situação de risco, tal como ela é definida nos termos da Lei 147/99, de 01 de Setembro” e que se verifiquem as situações previstas nas alíneas d) – “perigo grave” para “a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor” – e e) do nº 1 do artigo 1978º do Código Civil – “situação de manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer, seriamente, a qualidade e a continuidades daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança”, sustentando que não ocorre, “actualmente (…) uma situação de risco, tal como ela é definida nos termos da Lei 147/99 (…), nomeadamente no seu artigo 3º”, que a menor “não apresenta qualquer situação de risco, de perigo ou de insegurança” e que “nunca existiu desinteresse parental pela filha, bem pelo contrário”.

Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça e, portanto, deste recurso, a apreciação da respectiva verificação; é, pois, admissível o recurso, mas com o âmbito assim delimitado."
 
[MTS]