Meio processual; qualificação; convolação;
litisconsórcio necessário; preterição; caso julgado
1. O sumário de STJ 30/3/2017 (1568/09.1TBGDM.P1.S1) é o seguinte:
I. A correcção oficiosa da qualificação jurídica do meio processual utilizado pela parte é especialmente exigível quando a sua identificação não resulte com clareza do texto legal; assim ocorre com a impugnação, pela parte vencedora, de decisões interlocutórias que lhe tenham sido desfavoráveis, cujo mecanismo não é expressamente identificado pelo art. [6]36º do CPC.
II. Sem embargo dos casos em que sentença produza efeitos relativamente a terceiros, a excepção de caso julgado apenas vincula os sujeitos que formalmente intervieram na acção em que a sentença foi proferida ou relativamente aos quais se verifique a identidade do ponto de vista da sua qualidade jurídica, nos termos do art. 581º, nº 2, do CPC.
III. A sentença de mérito proferida em acção intentada apenas por um dos cônjuges, apesar de, nos termos do art. 34º do CPC, ser exigida a intervenção de ambos os cônjuges ou o consentimento do outro cônjuge, apenas produz efeitos relativamente ao cônjuge demandante, não impedindo o outro cônjuge de exercer o direito de acção para tutela de interesses que lhe são próprios.
IV. Para a aferição da excepção dilatória de caso julgado, verifica-se diversidade parcial de sujeitos quando, a par dos autores que intervieram formalmente na primeira acção, surgem na segunda acção como co-autores os respectivos cônjuges e, além disso, é requerida e deferida a intervenção principal provocada activa de outros co-interessados.
V. Em tais circunstâncias, a excepção de caso julgado apenas abarca os sujeitos que intervieram como co-autores na primeira acção e não afecta o prosseguimento da mesma na parte que respeita aos demais co-autores para apreciação do mérito da respectiva pretensão material.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"1. Quanto à alegada nulidade por excesso de pronúncia
1.1. Alegam os AA. que a Relação não podia reapreciar a excepção de caso julgado que no despacho saneador foi julgada improcedente, uma vez que tal apenas seria viável se os RR. tivessem accionado o mecanismo da ampliação do objecto do recurso, nos termos do art. 636º do NCPC. Tal não aconteceu, tendo os RR. optado pela interposição de recurso autónomo que era inadmissível.
1.2. Tanto a Relação como os AA. coincidem quanto à inadequação da interposição de recurso autónomo por parte dos RR. da decisão que no despacho saneador julgou improcedente a excepção de caso julgado.
Com efeito, tratando-se de decisão interlocutória não prevista no art. 644º, nºs 1 e 2, do CPC, para além de não ser imediatamente impugnável pelos RR., a sua impugnação diferida ficaria dependente do resultado final. Ou seja, o interesse dos RR. na sua impugnação apenas surgiria se acaso a sentença final lhes fosse desfavorável, caso em que poderia ser inserida nas alegações do respectivo recurso de apelação, nos termos do nº 3 do art. 644º.
No caso, a sentença final foi inteiramente favorável aos RR. Neste contexto, não existindo interesse autónomo na sua impugnação, esta apenas poderia ser introduzida pelos RR. pela via subsidiária da ampliação do objecto do recurso, nos termos do art. 636º do CPC.
É verdade que este preceito não se reporta expressis verbis a esta situação; apenas abarca a impugnação subsidiária de questões de facto ou de direito que tenham sido apreciadas em sentido desfavorável ou a arguição de nulidades que afectem a decisão recorrida conquanto esta tenha sido favorável à parte. Apesar disso, é a solução que deve ser aplicada aos casos, como o presente, em que a parte vencedora tenha motivos para impugnar a decisão interlocutória que lhe tenha sido desfavorável na medida em que da mesma possa resultar a confirmação da decisão final impugnada pela contraparte.
De facto, estando vedado à parte impugnar de imediato as decisões não previstas no art. 644º, nºs 1 e 2, quando, apesar de obter vencimento na acção, venha a ser interposto recurso pela contraparte, há que reconhecer-lhe a possibilidade de ampliar o objecto do recurso na medida em que uma resposta favorável seja relevante para a manutenção da decisão principal.
Esta é uma solução que se extrai por interpretação sistemática e teleológica dos arts. 636º e 644º, nº 3, do CPC. Solução que, aliás, foi defendida pelo ora relator em Recursos em Processo Civil, Novo Regime, logo após a revisão do regime de recursos cíveis em 2007, quando foi adoptada a distinção entre decisões autonomamente recorríveis e decisões com impugnação diferida, nos termos então previstos no art. 691º do CPC de 1961.
Trata-se, aliás, da mesma solução que foi adoptada, para uma situação perfeitamente idêntica (em que também estava em causa uma decisão de improcedência da excepção de caso julgado) pelo Ac. do STJ, de 26-5-15 (www.dgsi.pt), e que, além disso, também conta com o generalizado apoio da doutrina (Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 156, fazendo apelo suplementar ao princípio da igualdade e à aplicação analógica do que se dispõe no art. 636º, nº 1, do CPC, e Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil - Reforma de 2007, pág. 86). [...]
3. Excepção de caso julgado
3.1. Insurgem-se os AA. contra o acórdão da Relação que considerou verificada a excepção de caso julgado, revogando o despacho saneador nesta parte e absolvendo os RR. parcialmente da instância, com excepção do pedido relacionado com a nulidade do registo predial.
Para o efeito a Relação considerou que existia identidade subjectiva dos 1º a 10º AA. (incluindo os cônjuges) que, assim, estariam vinculados ao caso julgado material constituído com a decisão final proferida na anterior acção. Já quanto ao facto de também ter sido requerida a intervenção principal de outros interessados alegados contitulares do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel considerou a Relação que tal não interferia no caso julgado, uma vez que tais intervenientes não estão vinculados à iniciativa dos AA., tendo a liberdade de conformar como lhes aprouver a acção em que seja discutida a contitularidade do imóvel.
Sendo louvável o esforço revelado pelo acórdão recorrido no sentido de limitar os efeitos da actuação dos AA., depois de alguns deles terem sido confrontados com uma decisão desfavorável que foi confirmada por este Supremo Tribunal de Justiça, a resposta que foi dada não é a que mais se ajusta à situação.
Sem anteciparmos a apreciação do mérito da pretensão que foi apresentada na presente acção, não vemos razões válidas que determinem a absolvição da instância relativamente à pretensão deduzida por todos os AA. e a que foram associados os intervenientes principais. Por agora, o efeito de absolvição da instância não pode estender-se para além dos interessados relativamente aos quais se verifique a identidade subjectiva que é pressuposto da excepção de caso julgado, nos termos dos arts. 619º e 581º, nº 2, do CPC.
3.2. Os primitivos AA., depois de terem sido confrontados com uma decisão desfavorável proferida na anterior acção e que culminou com um acórdão proferido por este Supremo, vieram intentar segunda acção, reafirmando a sua qualidade de sucessores de NN, comproprietária do prédio em litígio. Mas agora alguns deles vieram acompanhados dos respectivos cônjuges que não intervieram como tal na primeira acção.
Na mesma petição foi requerida também a intervenção principal activa dos sucessores de outro dos comproprietários - OO – incidente que foi admitido por despacho de fls. 416.
Perante estes dados, a Relação concluiu que as acções foram instauradas pelos mesmos co-Autores, mas tal não se confirma, uma vez que na anterior acção essa qualidade foi formalmente assumida apenas pelos primeiros elementos dos 2º, 3º, 5º, 7º, 8º, 9º e 10º sub-grupos de co-Autores, surgindo a identificação dos respectivos cônjuges apenas para definir a existência entre eles de uma relação de casamento fora do regime de separação de bens. [...]
Ocorre, porém, que, contra tal exigência legal, não gouve intervenção ou consentimento dos referidos cônjuges para a instauração da anterior acção. Apesar disso, foi proferida decisão sobre o mérito, uma vez que nenhuma das partes suscitou a questão.
Verificou-se efectivamente a preterição do litisconsórcio necessário, o que, porém, não colide com a eficácia do caso julgado material que se constituiu com o trânsito em julgado da sentença, ainda que circunscrito aos cônjuges intervenientes. Ou seja, a decisão de mérito que foi proferida na anterior acção constituiu caso julgado materialrelativamente aos cônjuges que nela intervieram, sem que, no entanto, seja extensivo aos respectivos consortes que nem intervieram nem consentiram nessa demanda. Quanto a estes falta a identidade subjectiva quer de ordem física, quer na perspectiva da sua qualidade jurídica.
O facto de a decisão ter sido desfavorável aos cônjuges intervenientes não permite afirmar que os efeitos do caso julgado material se estendam aos não intervenientes. Como refere Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 174, nota 1, nas acções para as quais se exige a intervenção de ambos os cônjuges ou a intervenção de um deles com o consentimento do outro, cada um deles age como “como portador de um interesse próprio que lhe cabe defender sob a veste de membro da sociedade conjugal”.
Nesta medida, verificando-se um interesse autónomo dos cônjuges dos co-AA. 2º, 3º, 5º, 7º, 8º e 9º que não intervieram na primeira acção, não pode afirmar-se a extensão subjectiva do caso julgado, nem pode negar-se aos mesmos a possibilidade de intervir nesta segunda acção com vista à apreciação do mérito da pretensão na parte que lhes aproveite, ou seja, na medida em que prossigam interesses que a lei considerou suficientemente relevantes para justificar a legitimidade processual activa ou a obrigatoriedade do seu consentimento."
[MTS]