"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/10/2017

Jurisprudência (715)



Insolvência;
reclamação de créditos; efeitos


I. O sumário de RL 27/4/2017 (2650/16.4T8LSB.L1-2) é o seguinte: 

1.– Um crédito condicional é aquele que, existindo, não pode ainda ser exigido, pelo facto de não se ter ainda por verificada a condição, conquanto um crédito litigioso é aquele que não pode ser exigido, até ser reconhecido, nomeadamente, por decisão transitada em julgado.

2.– A menção “decisão judicial” introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20.04, ao nº 1 do artigo 50º do CIRE, nenhuma alteração essencial aditou ao preceito, apenas se pretendeu esclarecer que a fonte da condição também poderia derivar de decisão judicial e não apenas da lei ou do negócio jurídico.

3.– A nova redacção dada ao artigo 50º, nº 1 do CIRE, pela Lei nº 16/2012, de 20.04, não fez perder qualquer sentido ao Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2014, de 08.05.2013, mantendo o mesmo inteira aplicabilidade.

4.– Transitada em julgado a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respectivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de acção declarativa instaurada com vista ao reconhecimento de eventuais direitos de crédito do demandante, pois estes sempre teriam de ser objecto de reclamação no processo de insolvência, já que aquela declaração obsta à instauração de qualquer acção executiva contra a massa insolvente.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está demonstrado que o Banco Central Europeu revogou a autorização para o exercício da atividade como instituição de crédito ao Banco Espírito Santo, S.A. e que, nos termos do artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 199/2006 de 25/10 (alterado pelo D.L. nº 31-A/2012 de 10/02), a decisão e revogação de autorização para o exercício da atividade equivale à declaração de insolvência dessa entidade.

Acresce que, revogada que foi a autorização para o exercício da atividade bancária, ao Banco de Portugal cabe requerer nos prazos legalmente previstos, a sua liquidação nos tribunais competentes, no prazo e termos indicados nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 8.º., o que sucedeu no caso em análise, em que foi decretado o prosseguimento da liquidação judicial do BES, encontrando-se pendente o respectivo processo, tendo o autor ali reclamado o seu crédito, que é justamente aquele que está subjacente a esta acção – v. Nºs 1 a 3 da Fundamentação de Facto.

À aludida liquidação do BES aplica-se, de harmonia com o disposto no nº 3 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 199/2006, as disposições do CIRE que se mostrem compatíveis com as especialidades constantes do citado diploma, excluindo-se expressamente os títulos IX e X do CIRE.

Ora, como é sabido, nos termos do artigo 81º do CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si, ou no caso de pessoa coletiva, quanto aos órgãos que o representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes e futuros, sendo ineficazes ou inoponíveis em relação à massa insolvente os negócios jurídicos realizados pelo insolvente.

Dispõe o artigo 90º do CIRE que “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.”

A declaração de insolvência implica a dissolução da insolvente e, consequentemente, a perda da sua personalidade jurídica e judiciária, pelo menos para a generalidade dos efeitos (artigos 141º, nº 1, alínea e), do Código das Sociedades Comerciais, e 11º do Código de Processo Civil).

Estabelece, por outro lado, o artigo 85º, nº 1, que: “Declarada a insolvência, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na
conveniência para os fins do processo”.

E, decorre do nº 1 do artigo 128º do CIRE que “Dentro do prazo fixado para o efeito da sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que representa, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os elementos probatórios de que disponham”, com indicação das menções expressamente referidas nas suas diversas alíneas.

Tal significa que todos os credores da insolvência devem reclamar a verificação dos seus créditos, nos termos do citado normativo e dentro do prazo assinalado na sentença declaratória da insolvência (ou na decisão que decretou o prosseguimento da liquidação judicial), não estando o credor que, não obstante tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento, conforme se estatui no nº 3 do citado artigo 128º do CIRE.

É na reclamação de créditos, que se estrutura como uma verdadeira acção declarativa, que se irá apreciar da existência e o montante do crédito, tal como se discute na acção declarativa, prevendo-se no artigo 130º e ss do CIRE, a possibilidade dos outros credores ou mesmo o insolvente contestarem a existência do crédito reclamado, seguindo-se ulterior tramitação processual, independentemente do mesmo se encontrar reconhecido noutro processo, com vista ao respectivo pagamento, através da liquidação do activo.

Como decorrência do que acima ficou dito, com a declaração de insolvência do devedor, transitada em julgado (ou decretamento do prosseguimento da liquidação judicial), há que concluir que deixa de ter interesse o prosseguimento de qualquer acção para o reconhecimento de eventuais direitos de crédito da entidade declarada insolvente, uma vez que os mesmos sempre terão de ser objecto de reclamação no processo de insolvência.

Com efeito, o entendimento da inexistência de interesse na duplicação de decisões sobre a existência de crédito, numa acção declarativa e no processo de insolvência, deu origem ao Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 08.05.2013, DR 39, Série I, de 25.02.2104, segundo o qual “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.” [...]

No caso dos autos mostra-se invocada a responsabilidade do BES, enquanto instituição de crédito e intermediário financeiro, perante o autor, através da verificação dos pressupostos desta responsabilidade e da determinação do valor a ressarcir e do sujeito devedor, o que pressupõe o reconhecimento da existência do crédito, e não a declaração ou reconhecimento de uma condição suspensiva ou resolutiva, pelo que o Tribunal apenas poderia emitir, se fosse caso disso, um juízo declarativo sobre a existência do crédito invocado pelo autor e a consequente condenação do réu.

Acresce que a menção “decisão judicial” introduzida no nº 1 do artigo 50º do CIRE, pela Lei nº 16/2012, nenhuma alteração essencial aditou ao preceito, apenas se pretendeu esclarecer que a fonte da condição também poderia derivar de decisão judicial e não apenas da lei ou do negócio jurídico.

E, nesse sentido, referem CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, 2015, 306-307: «Em boa verdade, a inserção da decisão judicial entre os títulos geradores da condição, tendo, embora, um sentido esclarecedor, em nada contende com o regime do preceito. Com efeito, já na redação primitiva, onde se pudesse constatar que a sujeição do crédito a condição suspensiva ou resolutiva, no sentido e com o alcance do nº1, derivava de decisão judicial, o crédito não poderia deixar de ser havido como condicional, para os efeitos do Código, quando menos por aplicação analógica, e por manifesta identidade de ratio decidendi.»

Assim, a prolação de uma eventual sentença declarativa de condenação não poderá integrar um acontecimento futuro e incerto para efeitos do nº 1 do artigo 50º do CIRE.

Há, pois, que concluir que a redacção dada ao artigo 50º, nº 1 do CIRE, pela Lei nº 16/2012, não faz perder qualquer sentido ao citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, ao contrário do propugnado pelo autor/apelante, mantendo a sua inteira aplicabilidade.

De resto, a admitir-se o prosseguimento da acção declarativa aqui em apreciação, não obstante a plenitude da instância insolvencial em relação às acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente intentadas contra o devedor, sempre se estaria a violar o princípio par conditio creditorum e, consequentemente, o princípio da concentração no processo de insolvência das pretensões de todos os credores, consagrado no artigo 90º do CIRE, decorrendo como corolário, como salientam CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, ob. cit., 438, que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo.

Assim, ainda que se viesse a entender – o que se não entende – que a acção declarativa aqui em apreciação deveria prosseguir os seus termos legais e se lograsse obter uma sentença de condenação do BES, favorável ao autor/apelante, de nada valeria, já que nos termos do artigo 88º, nº1, do CIRE, a mesma não poderia ser executada.

Considera-se, portanto, perfeitamente aplicável a jurisprudência do AUJ n.º 1/2014, nos termos da qual, transitada em julgado a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respectivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de acção declarativa instaurada com vista ao reconhecimento de eventuais direitos de crédito do demandante, pois estes sempre teriam de ser objecto de reclamação no processo de insolvência, já que aquela declaração obsta à instauração de qualquer acção executiva contra a massa insolvente.

Nestes termos, e como se fundamenta no citado AUJ, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência."

[MTS]