"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/10/2017

Jurisprudência (705)



Questão de facto; 
nulidade da sentença; erro de julgamento


1. O sumário de STJ 23/3/2017 (7095/10.7TBMTS.P1.S1) é o seguinte:

I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.

II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.

III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, importa ter presente que, nos termos do n.º 4 do artigo 662.º do CPC, das decisões da Relação previstas nos números 1 e 2 do mesmo artigo não cabe recurso para o STJ.

Em sintonia com isso, a revista não pode ter por objeto o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, salvo quando se suscite ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, não sendo lícito ao STJ alterar a decisão de facto das instâncias a não ser nestas hipóteses, como decorre do preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC.

Todavia, ainda assim compete ao tribunal de revista sindicar o exercício dos poderes da Relação na reapreciação da decisão de facto em função da respetiva disciplina processual, nos termos do art.º 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC, como também lhe compete determinar a ampliação dessa decisão em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou quando nela ocorra contradição que inviabilize a solução jurídica do pleito, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do mesmo Código. E, no âmbito das presunções judiciais, tem vindo a ser entendido que cabe no âmbito da revista a sindicância do uso dessas presunções em caso ofensa a qualquer norma legal ou evidente ilogicidade do raciocínio presuntivo.

Ora a Recorrente começa por arguir a nulidade do acórdão recorrido, em sede da sobredita alteração da decisão de facto, com fundamento nos artigos 154.º, 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), ex vi do artigo 666.º do CPC, ou seja, por considerar, respetivamente, que não foram especificados os fundamentos de facto que justifiquem aquela alteração, por ambiguidade ou obscuridade dos mesmos e por, ao que supomos, excesso de pronúncia.

Como é sabido, tais nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.

Assim, o vício da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito só ocorrerá nos casos em que haja falta absoluta de fundamentação e já não quando a fundamentação exposta seja medíocre ou insuficiente, podendo, neste caso, quando muito, ocorrer erro de julgamento a apreciar em sede de mérito. De igual modo, a ambiguidade ou obscuridade só relevam quando tornem ininteligível a própria decisão, inviabilizando desse modo um juízo de mérito.

Por sua vez, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos artigos 608.º e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito.

No respeitante aos recursos, as questões a resolver definem-se à luz do perfil do respetivo objeto genericamente traçado nos artigos 639.º, n.º 1 e 2, e 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC:

a) - quanto ao erro de direito, por delimitação do erro de interpretação e/ou de aplicação da normas tidas por violadas, ou do erro na determinação da norma que devia ser aplicada – artigo 639.º, n.º 2, alíneas a) a c);

b) – quanto ao erro de facto, por especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e da decisão que se entende dever ser proferida – artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c).

Mais precisamente no que se refere à decisão de facto, importa ter presente que esta se integra na fundamentação da sentença e que os juízos probatórios parcelares que a consubstanciam podem, quando muito, padecer dos vícios de deficiência, obscuridade ou de contradição nos termos especificamente previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. Por sua vez, a falta ou insuficiência da fundamentação da decisão sobre algum facto essencial constitui irregularidade suprível, mesmo oficiosamente, nos termos do citado artigo 662.º, nº 2, alínea d), e 3, alínea b). Nessa medida, em sede de decisão de facto, não se afigura, em princípio, aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.

Por outro lado, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.

Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146]: 

 «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.

(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»

E, por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.

É certo que, no caso vertente, contra tal entendimento, o tribunal a quo julgou parcialmente nula a sentença da 1.ª instância, na parte em que tomara em consideração «factos [que] não foram alegados por nenhuma das partes e nunca teriam mero valor instrumental na economia do litígio, nem seriam factos que pudessem ser aproveitados só porque resultaram da discussão da causa, além de escaparem ao poder oficioso conferido ao juiz no apuramento da verdade.»

Não obstante isso, o resultado prático foi não tomar em consideração tais factos, solução que equivale à que seria de adotar na qualificação mais correta de erro de julgamento, nos termos do preceituado no artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC. Todavia, o tribunal a quo foi mais além, entrando na apreciação do invocado erro de julgamento sobre o juízo probatório respeitante à matéria vertida no artigo 8.º da base instrutória mediante a valoração da prova produzida que teve por pertinente.

Sucede que o facto dado como provado pela Relação sobre tal matéria não padece de qualquer vício de deficiência, obscuridade ou contradição. Nem tão pouco, em relação a ele, se poderá colocar o vício de excesso de pronúncia, nos termos acima definidos.

Assim sendo, restará ajuizar se aquela alteração foi feita com inobservância da disciplina processual que parametriza os poderes da Relação na reapreciação da decisão de facto, mormente ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC.

Ora, como decorre do já exposto, a apelante impugnou a decisão de facto quanto à matéria do artigo 8.º da base instrutória pugnando pela sua alteração.

E foi nessa base que o Tribunal da Relação reapreciou essa matéria, considerando que o teor do recibo de 19/7/2010, passada à própria A., tido como em total coordenação com a nota de débito, atestava o recebimento da quantia em causa pela DD diretamente da A..

Mais precisamente, enquanto que a 1.ª instância, na análise conjugada do recibo de fls. 67 com os depoimentos de EE e FF (conforme fls. 354), deu um alcance probatório indiciário restritivo ao teor daquele documento, o Tribunal da Relação, apesar disso, deu maior peso indiciário àquele documento ao conjugá-lo com a nota de débito de 16/11/2005 junta a fls. 48. Dessa análise decorre, pelo menos implicitamente, o desmerecimento da prova testemunhal tida em conta pela 1.ª instância para restringir o valor indiciário do recibo de fls. 67.

Deste modo, o Tribunal da Relação situou-se ainda nos limites da esfera dos poderes que lhe estão conferidos pelo n.º 1 do artigo 662.º do CPC para reapreciar a decisão de facto impugnada.

Saber se, nessa valoração da prova, segundo a sua livre e prudente convicção, incorreu em erro de apreciação é matéria que está vedada ao tribunal de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, não se divisando sequer qualquer ofensa legal ou ilogicidade manifesta em sede de juízo presuntivo.

Acresce que não se verifica qualquer violação da regra do ónus da prova prescrita no artigo 342.º, n.º 1, do CC, porquanto o facto em referência foi dado como provado em função da sua natureza constitutiva do direito invocado pela A.. 

3. [Comentário] a) O acórdão não suscita nenhuma objecção quanto à não anulação do acórdão recorrido. A fundamentação é, no entanto, susceptível de alguns reparos.

b) Nem o acórdão, nem o sumário são felizes no que realmente constitui o fundamento utilizado pelo STJ. Efectivamente, ao contrário do que se refere nos n.ºs I e II do sumário e do que se escreve nas correspondentes passagens constantes da fundamentação do acórdão, o que realmente se entende no acórdão (com apoio em Alberto dos Reis) é que o conhecimento de um facto não alegado pelas partes não implica necessariamente a nulidade da sentença por excesso de pronúncia e pode constituir apenas um erro de julgamento.

É fácil perceber que assim tem de ser: a circunstância de o tribunal ter utilizado um facto não alegado pelas partes não determina a nulidade da decisão por excesso se pronúncia, se o tribunal podia (e até devia) conhecer da questão de facto baseada em factos invocados pelas partes. Portanto, ao contrário das afirmações assertivas que constam do acórdão e dos n.ºs I e II do sumário, o que se deve dizer é que o conhecimento pelo tribunal de um facto não alegado pelas partes pode não constituir uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia e pode ser qualificado apenas como um erro de julgamento do tribunal.

c) O exposto em b) é o que realmente decorre do trecho de Alberto dos Reis transcrito no acórdão. Mas -- cabe perguntar -- Alberto dos Reis tem razão no que afirma?

Há efectivamente um aspecto descurado por Alberto dos Reis, mas em que importa atentar. É o seguinte: a consideração pelo tribunal de um facto não alegado constitui necessariamente um excesso de pronúncia se esse facto tiver sido relevante para a decisão da causa (ou seja, se, por exemplo, tiver justificado o aumento da indemnização de 1000 para 1200). Dito de outro modo: a consideração pelo tribunal de um facto não alegado só não constitui uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia se esse facto for irrelevante para a decisão da causa (isto é, se, por exemplo, não tiver justificado a quantificação da indemnização em 1000). 

Neste caso, diz Alberto dos Reis, não há um excesso de pronúncia, mas apenas um erro de julgamento. No entanto, o que verdadeiramente existe é um erro de julgamento irrelevante. Visto por outra perspectiva: um erro de julgamento que é relevante (por ter influência na decisão da causa) conduz necessariamente à nulidade da decisão por excesso de pronúncia.

Isto significa que, antes de qualificar o vício do tribunal ao conhecer de um facto não alegado pelas partes, é necessário verificar se esse facto foi ou não relevante para a decisão da causa. Se o foi, então o vício é necessariamente o de excesso de pronúncia; se o não foi, então o vício é irrelevante.

d) O que acaba de se dizer também vale para a hipótese em que o tribunal deixou de conhecer de um facto alegado pelas partes:

-- Esse não conhecimento é necessariamente uma nulidade por omissão de pronúncia, se o facto era relevante para a apreciação da causa;

-- Esse não conhecimento não é nem uma nulidade da decisão, nem um erro de julgamento, se o facto não era relevante para a decisão da causa.

MTS