Providências cautelares;
entrega de veículo cedido em regime de ALD;
I - O fundado receio de lesão grave ou dificilmente reparável (periculum in mora) não é um facto naturalístico mas um conceito normativo que carece de concretização jurisprudencial em função da factualidade demonstrada, da função instrumental da tutela cautelar, do princípio da efectividade dos direitos e do princípio da utilidade da intervenção judicial.
II - A finalidade da providência cautelar de entrega de veículo cedido em regime de ALD não é acautelar o direito de crédito da requerente mas acautelar o seu direito de propriedade sobre o veículo e o conteúdo próprio desse direito (o direito ao uso e fruição).
III - O tribunal não pode impor à requerente o sacrifício do direito real e a substituição involuntária pela indemnização sucedânea, pelo que não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre a possibilidade de a requerente obter um valor que a compense da privação do veículo mas apenas decidir se a tutela provisória do direito real está justificada.
IV - Um veículo automóvel tem natureza perecível e é um bem sujeito a uma contínua desvalorização, pelo que, excepto se algo em contrário tiver sido demonstrado pelo locatário, existe periculum in mora desde que o locatário não tenha procedido à restituição do veículo na sequência da cessação do contrato.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O decretamento da providência cautelar não especificada tem [...] como requisitos a probabilidade séria da existência do direito invocado que se pretende acautelar – fumus boni iuris – e o fundado receio de lesão grave ou dificilmente reparável desse direito - periculum in mora –. É ainda necessário que a providência seja concretamente adequada para assegurar a efectividade do direito. [...].
Quanto ao requisito do periculum in mora, entende-se que o fundado receio de lesão grave ou dificilmente reparável não é um facto naturalístico, mas antes um conceito normativo que carece de concretização jurisprudencial em função da factualidade demonstrada, da função instrumental da tutela cautelar, do princípio da efectividade dos direitos que constitui elemento destes e justificação da tutela cautelar, quando necessária, e do princípio da utilidade da intervenção judicial que conduz à rejeição de situações em que a afirmação dos direitos acabe por ser meramente platónica.
Segundo o afirmado no Acórdão da Relação de Lisboa de 04.12.2012 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, o periculum in mora é um «conceito jurídico indeterminado gradativo, “carecido de preenchimento valorativo” a fazer no confronto do caso concreto, à luz dos padrões socioculturais do tipo de comportamento ou situação social relevante e da teleologia subjacente à norma em que se inscreve (…). Nessa perspectiva, não se deverá partir de uma bitola genérica, meramente abstracta, mas antes tomar em linha de conta as particularidades da situação singular em presença, de forma a perscrutar nelas os sinais apelativos de uma justiça equitativa que permita, de algum modo, a aplicação flexível da norma, num esforço de conciliação ou síntese entre os valores ético-sociais e o direito. Há, no entanto, que evitar interpretações arbitrárias e por isso recorrer a directrizes objectiváveis e sustentadas numa base de razão prática. Por isso, a doutrina e jurisprudência têm firmado o critério de que a lesão relevante se tem de situar num padrão de gravidade qualificada pela difícil reparabilidade dos danos ocorridos ou previsíveis, não se bastando com uma simples lesão nem com uma lesão de gravidade reduzida».
Também se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2006 (Salvador da Costa), in www.dgsi.pt, que “a gravidade da previsível lesão deve aferir-se à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo em conta que, no concernente aos prejuízos materiais, eles são, em regra, passíveis de ressarcimento através de restituição natural ou de indemnização substitutiva”. O que releva, portanto, não é a natureza dos prejuízos que o requerente poderá sofrer até à decisão definitiva sobre o direito, mas a sua repercussão na esfera jurídica do requerente.
Nesse sentido, afirma-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.11.2011 (Pinto dos Santos), in www.dgsi.pt, que “para a concretização do que se deve entender por lesão dificilmente reparável podem ser apontados dois critérios: a) um critério subjectivo que atende às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente; b) um critério objectivo, aferido em função do tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica do requerente, o que significa que dependerá da natureza do direito alvo dessa lesão e da sanção que a ordem jurídica impõe para reparação do dano decorrente da lesão, sendo admissível o recurso à tutela cautelar, sempre que a reparação da lesão possa implicar a chamada reintegração por sucedâneo”.
A Mma. Juiz a quo fundamentou assim a sua decisão de considerar não preenchido o requisito do periculum in mora:
«[…] a alegação do requerimento inicial, quanto ao periculum in mora não invoca os factos que, passíveis de prova, pudessem conduzir a acção ao desiderato pretendido pela requerente. De facto não se mostra alegada, nem provada, factualidade suficiente para permitir concluir pela provável existência de lesão grave e dificilmente reparável no direito da requerente.
E isto porque este fundado receio de lesão grave, dificilmente reparável, tem que provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada, regida por critérios de objectividade e normalidade. Ensinando Lebre de Freitas ("Código de Processo Civil Anotado", vol. 2º, 6) que a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada têm de apontar para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente a qualquer acção; um risco que não seja razoável exigir que seja suportado pelo titular do direito (cf. os Ac da RP de 14-10-03 e 21-12-04, disponíveis na base de dados da DGSI, in www.dgsi.pt).
A assim não ser a toda a acção corresponderia o seu procedimento cautelar, o que de forma alguma foi ou é a intenção do legislador quando na lei os consagrou.
E, como se pode ler no Ac. da RP de 19-04-2007 (em www.dgsi.pt), o "facto de ser normal que a continuação do uso do veículo pela recorrida lhe causa depreciação, só por si nada diz, até porque também é certo que a recorrida continua obrigada a pagar as prestações do aluguer durante o período de utilização — ou, pelo menos, as correspondentes indemnizações. O risco de perda ou deterioração da viatura é um risco do próprio negócio, risco inerente ao próprio gozo da viatura. Nada se (…) demonstra que, in casu, se vá além do risco normal".
A normal depreciação do veículo, por força do uso que lhe é dado é obviamente susceptível de causar dano à requerente. Mas são danos que esta facilmente compensará pela via indemnizatória. E o mesmo se diga quanto ao prejuízo resultante da impossibilidade de afectar o automóvel a outros negócios. Assim, restaria à requerente a prova de factos de onde resultasse a impossibilidade ou a grande dificuldade em conseguir o pagamento de tais quantias por parte da requerida, que a requerente, em concreto, sequer alegou.
Como também se refere no Acórdão a que se tem vindo a fazer referência teria, assim, a "requerente de alegar factos demonstrativos de que o facto de a locatária ter deixado de pagar as rendas contratadas indiciava fortemente que a sua capacidade para solver futuramente o crédito - a título das prestações já vencidas ou a título de indemnização -, a que a locadora tem direito, era completamente inexistente, por inexistência de meios para solver a dívida".
No entanto, não prova, nem alega a requerente, que a requerida não tenha património suficiente para solver a sua dívida. E não pode a mesma deduzir-se sem mais do facto de ter o requerido deixado de cumprir as suas obrigações para com ela (tanto mais que pode ter património imobiliário, por exemplo, e que nenhum facto é alegado no sentido de que esteja a dissipar essa sua garantia geral de pagamento aos seus credores).»
Como resulta desta fundamentação, a mesma tem o seu acento tónico no entendimento de que o direito da autora é essencialmente um direito de crédito (composto pelo valor do veículo, pelo montante dos alugueres em dívida e pelo montante da indemnização pela não entrega do veículo), que em condições normais este pode ser satisfeito coercivamente em momento posterior e que não está provado nenhum facto justificativo de que a satisfação desse direito de crédito se encontra em sério risco.
Sem prejuízo de melhor opinião, não cremos que deva prevalecer esta leitura.
A requerente da providência não é apenas titular de um direito de crédito é também e antes de mais titular do direito real de propriedade sobre o veículo cuja entrega reclama. E a finalidade da providência requerida não é acautelar o direito de crédito (composto pelo valor dos alugueres vencidos e não pagos e pelo montante das indemnizações pelo incumprimento do contrato de aluguer de veículo), mas sim acautelar o direito de propriedade sobre o veículo e o conteúdo próprio desse direito (o direito ao uso e fruição conforme o proprietário entender).
Pretender que se o veículo não for entregue à requerente esta terá o direito de reclamar a correspondente indemnização e consequentemente o direito da requerente é ainda e sempre um direito de crédito é, com todo o devido respeito, misturar e confundir o conteúdo do direito (real) que existe com o conteúdo do direito (obrigacional) que passará a existir se aquele for violado, mas como sucedâneo do não respeito devido por aquele direito e não como substituto do direito.
A requerente é proprietária do veículo, logo tem a faculdade jurídica de o utilizar e de dispor dele conforme entender, da mesma forma que goza do poder jurídico de impor a qualquer pessoa o respeito por esse direito e a abstenção de o colocar em risco. Ao alugar o veículo à requerida a requerente fez uso desse poder, mas o direito de gozo do veículo que a requerida adquiriu é meramente obrigacional e o seu regime acompanha as vicissitudes da relação contratual que lhe está na génese, de modo que extinto o contrato cessa esse direito ao gozo do bem alheio e o respectivo proprietário recuperar na íntegra as faculdades de gozo, fruição e disposição do bem que lhe pertence.
O proprietário cujo direito de propriedade é violado ilicitamente por um terceiro pode reclamar deste a indemnização dos danos causados pelo comportamento do terceiro, mas também pode, em simultâneo e cumulativamente, exigir do terceiro que cesse a violação e que se abstenha de afectar o conteúdo jurídico do seu direito de propriedade. Um direito não prejudica nem substitui o outro; cada um deles tem a sua própria natureza jurídica, o seu regime de tutela e pode ser defendido de forma autónoma.
Quando a requerente pede a entrega do veículo está a defender o seu direito de propriedade sobre o veículo, não o seu direito de crédito decorrente do não cumprimento do contrato de aluguer, sendo certo que o direito à restituição é o direito de recuperar o bem como coisa íntegra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou já apenas sucata.
Não resulta da ordem jurídica e o tribunal não pode impor à requerente o sacrifício do direito real e a substituição involuntária pela indemnização sucedânea! Por conseguinte, o que cabe ao tribunal decidir não é se a requerente pode por outra via obter um valor que a compense da privação do veículo e da afectação do conteúdo do seu direito real de propriedade, mas apenas se a tutela provisória do direito real está justificada porque a requerente tem o direito de obter do tribunal a tutela do direito de que é titular, não do direito que lhe querem impor.
Nessa medida, o periculum in mora exigível não é aquele que se prende com o risco de satisfação do direito de indemnização (se a devedora tem património para pagar) mas apenas o que se reporta ao risco de afectação grave e dificilmente reparável do direito de propriedade."
[MTS]