"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/10/2017

Jurisprudência (706)


Responsabilidade civil médica;
ónus da prova


1. O sumário de STJ 23/3/2017 (296/07.7TBMCN.P1.S1) é o seguinte:

I. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.

II. Porém, o médico poderá também responder perante o paciente a título de responsabilidade civil extracontratual concomitante ou, eventualmente, no âmbito de alguma obrigação negocial que tenha assumido com aquele.

III. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do CC, será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço daquela instituição.

IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis).

V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado.

VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação.

VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.

VIII. No âmbito da execução do ato médico correspondente ao cumprimento do dever de prestar, importa ainda atentar no dever de proteção na salvaguarda da integridade física do paciente, coberta pela tutela da personalidade, nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do CC, na medida em que se mostre estreitamente conexionado com esse cumprimento.

IX. Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do referido dever de proteção permitirá configurar a ilicitude do ato médico violador da integridade física do paciente, ocorrido em sede da própria execução do cumprimento da obrigação contratual.

X. Assim, num caso como o dos autos em que, no decurso de uma intervenção cirúrgica destinada a colher tecido necrosado na zona da cabeça femoral para permitir a sua revascularização, foi atingido o tronco externo do nervo ciático adjacente pelo manuseamento do instrumento de colheita, ante a emergência de dificuldade de acesso à zona a intervencionar, resultando daí a paralisia daquele nervo, é de considerar verificada a prática de um ato ilícito violador da integridade física do paciente. 


XI. Nessas circunstâncias, presumindo-se a culpa do médico operador, incumbirá ao devedor da prestação provar que tal ocorrência não lhe é imputável por falta de cuidado ou de imperícia, nos termos do artigo 799.º do CC. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] ante a frequente onerosidade da prova para o paciente sobre a inobservância das leges artis, por parte do médico, têm vindo a ser consideradas outras soluções, entre as quais a que tem procurado distinguir a atividade médica de carácter mais geral, aleatório ou complexo, e as atividades médicas especializadas em que a margem de risco seja ínfima. Nessa base, tem sido considerado que, nestes tipos de atividade, a obrigação do médico se poderá traduzir numa obrigação de resultado, fazendo recair sobre ele o ónus de provar, no plano da culpa, que a ocorrência desse resultado não decorre de falta de cuidado ou imperícia, nomeadamente por inobservância das leges artis.

Nesta linha, podemos citar os seguintes acórdãos do STJ:

- o acórdão de 15/12/2011, proferido no processo n.º 209/06. 3TVPRT.P1.S1 [...], no qual se observa que “(…) casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, constituindo exemplo de escola a cirurgia estética de embelezamento (mas já não a cirurgia estética reconstrutiva geralmente considerada como exemplo cirúrgico de obrigação de meios), a par da execução das manobras próprias de parto, no campo da odontologia, por exemplo, a simples extracção de um dente ou colocação de um implante, a ainda nas áreas de vasectomia e exames laboratoriais”;

- o acórdão de 07/10/2010, proferido no processo n.º 1364/05. 5TBBCL.G1 [...], em que se considerou que:

“Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios (ou de pura diligência), cabendo, assim, ao lesado fazer a demonstração em juízo de que a conduta (acto ou omissão) do prestador obrigado não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem propiciar a produção do almejado resultado.

Já se se tratar de médico especialista (v.g. um médico obstetra) sobre o qual recai um específico dever do emprego da técnica adequada, se torna compreensível a inversão do ónus da prova, por se tratar de uma obrigação de resultado – devendo o mesmo ser civilmente responsabilizado pela simples constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base uma presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta.”

- mais recentemente, o acórdão de 26/04/2016, proferido no processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1 [...], em que se considerou que “(…) no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis.”

Seja como for, afigura-se que uma tal ponderação – obrigação de meios / obrigação de resultado - não deve ser feita de forma apriorística em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no exato contexto e contornos de cada situação, sem prejuízo do apelo a alguns factores indiciários, sabido como é que o carácter aleatório e complexo dos atos médicos dependem de diversas condicionantes que nem sempre s
e revelam na tipologia de determinada especialidade. [A este propósito, vide André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 1.ª Edição, 2015, p.p 717 e segs.; Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde [in Responsabilidade Civil dos Médicos, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 2005], pp.214-215].

3. No direito alemão, a repartição do ónus da prova na responsabilidade civil médica é regulada pelo disposto no § 630h BGB, que foi introduzido, em conjunto com outros parágrafos relativos ao contrato de prestação de serviços e contratos semelhantes, pelo Gesetz zur Verbesserung der Rechte von Patientinnen und Patienten de 20/02/2013 (BGBl. I S. 277). O conteúdo daquele preceito é (na versão original e na tradução inglesa) o seguinte: 

Beweislast bei Haftung für Behandlungs- und Aufklärungsfehler

(1) Ein Fehler des Behandelnden wird vermutet, wenn sich ein allgemeines Behandlungsrisiko verwirklicht hat, das für den Behandelnden voll beherrschbar war und das zur Verletzung des Lebens, des Körpers oder der Gesundheit des Patienten geführt hat.

(2) Der Behandelnde hat zu beweisen, dass er eine Einwilligung gemäß § 630d eingeholt und entsprechend den Anforderungen des § 630e aufgeklärt hat. Genügt die Aufklärung nicht den Anforderungen des § 630e, kann der Behandelnde sich darauf berufen, dass der Patient auch im Fall einer ordnungsgemäßen Aufklärung in die Maßnahme eingewilligt hätte.

(3) Hat der Behandelnde eine medizinisch gebotene wesentliche Maßnahme und ihr Ergebnis entgegen § 630f Absatz 1 oder Absatz 2 nicht in der Patientenakte aufgezeichnet oder hat er die Patientenakte entgegen § 630f Absatz 3 nicht aufbewahrt, wird vermutet, dass er diese Maßnahme nicht getroffen hat.

(4) War ein Behandelnder für die von ihm vorgenommene Behandlung nicht befähigt, wird vermutet, dass die mangelnde Befähigung für den Eintritt der Verletzung des Lebens, des Körpers oder der Gesundheit ursächlich war.

(5) Liegt ein grober Behandlungsfehler vor und ist dieser grundsätzlich geeignet, eine Verletzung des Lebens, des Körpers oder der Gesundheit der tatsächlich eingetretenen Art herbeizuführen, wird vermutet, dass der Behandlungsfehler für diese Verletzung ursächlich war. Dies gilt auch dann, wenn es der Behandelnde unterlassen hat, einen medizinisch gebotenen Befund rechtzeitig zu erheben oder zu sichern, soweit der Befund mit hinreichender Wahrscheinlichkeit ein Ergebnis erbracht hätte, das Anlass zu weiteren Maßnahmen gegeben hätte, und wenn das Unterlassen solcher Maßnahmen grob fehlerhaft gewesen wäre.


The burden of proof in case of liability for malpractice and errors in providing information

(1) An error is to be presumed to have been committed by the treating party if a general treatment risk has materialised which was fully manageable for the treating party and which led to the injury to the life, limb or health of the patient.

(2) The treating party is to prove that he/she has acquired consent in accordance with section 630d and provided information in accordance with the requirements of section 630e. If the information does not comply with the requirements of section 630e, the treating party may assert that the patient would also have consented to the measure had proper information been provided.

(3) If the treating party has not recorded a medically-necessary major measure and its result in the medical records, counter to section 630f (1) or (2), or if, counter to section 630f (3), he/she has not retained the medical records, it is to be presumed that he/she has not carried out this measure.

(4) If a treating party was not qualified to carry out the treatment which he/she performed, it is to be presumed that the lack of qualification was the cause of the occurrence of the injury to the life, limb or health.

(5) If gross malpractice has committed, and if this is susceptible as a matter of principle to cause an injury to life, limb or health of the nature which in fact took place, it is to be presumed that the malpractice was the cause of this injury. This is also to apply if the treating party omitted to take or record a medically-necessary finding in good time where the finding would with sufficient certainty have led to a result which would have given rise to further measures, and if failure to carry out such measures would have constituted gross malpractice.

 b) "A todos os números do § 630h é comum que eles -- com relação a vários aspectos das normas de responsabilidade e de reparação de danos -- invertem, de acordo com os princípios desenvolvidos na jurisprudência, o ónus da prova a favor do paciente. Que o legislador não tenha escolhido expressamente o conceito de "inversão do ónus da prova", mas antes se tenha socorrido do de "presunção" (§ 292 ZPO), isso em nada contraria a respectiva aceitação de uma inversão do ónus da prova (Prütting, FS Rüssmann 609, 616)" (PWW (2017)/Schneider, § 630h 3).

MTS