Processo de insolvência;
graduação de créditos; direito de retenção
1. O sumário de RP 6/4/2017 (1210/11.0TYVNG-C.P1) é o seguinte:
I - O art.º 755.º, n.º 1, f), do C.Civil faz depender o reconhecimento do direito de retenção da verificação dos seguintes requisitos:
- a existência de um crédito resultante de promessa de transmissão ou constituição de um direito real;
- entrega ou tradição da coisa objecto do contrato promessa (traditio);
- e incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor;
- sendo ainda que, por força do teor do Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 4/2014, publicado no DR, I Série, de 19.05.2014, no que toca à interpretação do art.º 755.º, n.º 1, al. f) do C.Civil, se entende que esta norma exige ainda que o beneficiário da promessa tenha de ter a qualidade de consumidor.
II - A inclusão do conceito de consumidor no supra referido Ac. Uniformizador de Jurisprudência, restringindo [sic] a amplitude e o alcance do direito de retenção preceituado na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do C.Civil.
III - Em sede de graduação de créditos em processo de verificação e graduação apenso a processo de insolvência, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, a qual, por sua vez, goza de preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial, cfr. art.ºs 759.º n.º2 e 686.º n.º1 do C.Civil.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O credor impugnante reclama que seja reconhecido que esse seu crédito está garantido por direito de retenção sobre os imóveis em causa (dois apartamentos acima identificados).
"O credor impugnante reclama que seja reconhecido que esse seu crédito está garantido por direito de retenção sobre os imóveis em causa (dois apartamentos acima identificados).
Ora, o direito de retenção é um direito real de garantia, cfr. art.ºs 754.º, 758.º e 759.º, todos do C.Civil, e atribui a possibilidade ao seu titular de se pagar, com preferênciaaos demais credores, sobre o valor da coisa retida, constituindo também uma causa legítima de incumprimento de obrigação de responsabilidade. E sendo um direito real de garantia, o mesmo faz com que o credor possa recusar a entrega do imóvel até que seja satisfeito o seu crédito.
A lei prevê ainda alguns casos específicos em que este direito é concedido. Temos, desde logo, aquele a que se alude na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do C.Civil, segundo o qual goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.
Ou seja, no caso de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, é legalmente concedido o direito real de garantia ao promitente-comprador (beneficiário da promessa de transmissão) que obteve a transmissão da coisa, pelo crédito decorrente do não cumprimento imputável à outra parte. A concessão deste específico direito de garantia pressupõe a existência de um contrato-promessa, a tradição da coisa objecto do contrato prometido (traditio) e o incumprimento definitivo daquele contrato pelo promitente vendedor. Sendo que este direito nasce na esfera jurídica do promitente-comprador quando este entra na posse da coisa prometida vender, na sequência do contrato-promessa celebrado e a partir desse momento o direito mantém-se, garantindo ao seu titular a preferência sobre os outros credores, sendo que a sua eficácia não depende de declaração, decorrendo directamente da lei e é válido erga omnes.
E assim sendo, o art.º 755.º, n.º 1, f), do C.Civil faz depender o reconhecimento do direito de retenção da verificação dos seguintes requisitos:
- a existência de um crédito resultante de promessa de transmissão ou constituição de um direito real;
- entrega ou tradição da coisa objecto do contrato promessa (traditio);
- e incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor;
- sendo ainda que, por força do teor do Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 4/2014, publicado no DR, I Série, de 19.05.2014, no que toca à interpretação do art.º 755.º, n.º 1, al. f) do C.Civil, se entende que esta norma exige ainda que o beneficiário da promessa tenha de ter a qualidade de consumidor.
Sendo manifesto que incumbia ao credor/reclamante/impugnante a alegação e prova dos supra referidos requisitos ou factos constitutivos do direito de retenção a que se arrogava, cabendo à A.I. e à ora apelante a alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse mesmo direito.
Como se deixou já consignado, o reclamante/impugnante, ora apelado, titular de crédito resultante do incumprimento definitivo dos contratos promessas que celebrou com a ora insolvente e por banda desta, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora, no montante de €148.042,89.
Ele beneficiou da traditio dos apartamentos em causa, pois como resultou provado posteriormente à celebração dos referidos contratos promessa, foram-lhe entregues pela promitente vendedora, as chaves de ambos os “apartamentos”, sendo que o mesmo, há mais de 3, 4 e 5 anos a esta data, à vista de todos, sem interrupção e sem oposição de ninguém, aí guarda bens próprios.
Como é sabido, a traditio que não é um elemento essencial do contrato-promessa, contudo, aparece muitas vezes a acompanhar a celebração deste contrato, ou seja, da transferência da coisa objecto do contrato. Mas devido à natureza do contrato promessa, a detenção da coisa por força do contrato não poderá originar uma situação de pura posse, com a presença e amplitude de todos os seus elementos (corpus e animus). O promitente-comprador não exerce, normalmente, uma verdadeira posse, mas apenas a mera detenção ou posse precária da coisa. Na verdade, o direito pessoal de gozo que a traditio confere ao promitente-comprador assenta na expectativa da alienação prometida e está, evidentemente, limitado por essa situação. Todavia, nada impede que o promitente-comprador se comporte como se dono da coisa, objecto do contrato, fosse, considerando segura a celebração do contrato prometido, e assim pratique actos possessórios em nome próprio sobre a coisa.
Perante tudo isto, nenhuma censura nos merece a decisão alcançada em 1.ª instância, no sentido de que o crédito reconhecido ao credor, ora apelado, beneficia de direito de retenção. E uma vez que o prédio urbano onde se situam os bens prometidos vender, ou seja, o “apartamento de tipo T2, sito no R/C frente, Rua .., com arrumo e lugar de garagem na cave” e o “apartamento de tipo T2, sito no Primeiro frente, Rua .., com arrumo e lugar de garagem na cave”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho, freguesia …, com o número …./…….., não foi nem se encontra submetido ao regime da propriedade horizontal, não estando, por isso, autonomizadas as diversas fracções, o referido direito de retenção terá de incidir sobre todo o prédio urbano."
[MTS]