"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/10/2017

Jurisprudência (700)


Processo de insolvência;
graduação de créditos; direito de retenção


1. O sumário de RP 6/4/2017 (1210/11.0TYVNG-C.P1) é o seguinte: 

I - O art.º 755.º, n.º 1, f), do C.Civil faz depender o reconhecimento do direito de retenção da verificação dos seguintes requisitos: 
 
- a existência de um crédito resultante de promessa de transmissão ou constituição de um direito real; 
 
- entrega ou tradição da coisa objecto do contrato promessa (
traditio); 
 
- e incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor;
 
- sendo ainda que, por força do teor do Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 4/2014, publicado no DR, I Série, de 19.05.2014, no que toca à interpretação do art.º 755.º, n.º 1, al. f) do C.Civil, se entende que esta norma exige ainda que o beneficiário da promessa tenha de ter a qualidade de consumidor.
 
II - A inclusão do conceito de consumidor no supra referido Ac. Uniformizador de Jurisprudência, restringindo [
sic] a amplitude e o alcance do direito de retenção preceituado na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do C.Civil.
 
III - Em sede de graduação de créditos em processo de verificação e graduação apenso a processo de insolvência, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, a qual, por sua vez, goza de preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial, cfr. art.ºs 759.º n.º2 e 686.º n.º1 do C.Civil. 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O credor impugnante reclama que seja reconhecido que esse seu crédito está garantido por direito de retenção sobre os imóveis em causa (dois apartamentos acima identificados).

Ora, o direito de retenção é um direito real de garantia, cfr. art.ºs 754.º, 758.º e 759.º, todos do C.Civil, e atribui a possibilidade ao seu titular de se pagar, com preferênciaaos demais credores, sobre o valor da coisa retida, constituindo também uma causa legítima de incumprimento de obrigação de responsabilidade. E sendo um direito real de garantia, o mesmo faz com que o credor possa recusar a entrega do imóvel até que seja satisfeito o seu crédito.

A lei prevê ainda alguns casos específicos em que este direito é concedido. Temos, desde logo, aquele a que se alude na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do C.Civil, segundo o qual goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º. 

Ou seja, no caso de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, é legalmente concedido o direito real de garantia ao promitente-comprador (beneficiário da promessa de transmissão) que obteve a transmissão da coisa, pelo crédito decorrente do não cumprimento imputável à outra parte. A concessão deste específico direito de garantia pressupõe a existência de um contrato-promessa, a tradição da coisa objecto do contrato prometido (traditio) e o incumprimento definitivo daquele contrato pelo promitente vendedor. Sendo que este direito nasce na esfera jurídica do promitente-comprador quando este entra na posse da coisa prometida vender, na sequência do contrato-promessa celebrado e a partir desse momento o direito mantém-se, garantindo ao seu titular a preferência sobre os outros credores, sendo que a sua eficácia não depende de declaração, decorrendo directamente da lei e é válido erga omnes.

E assim sendo, o art.º 755.º, n.º 1, f), do C.Civil faz depender o reconhecimento do direito de retenção da verificação dos seguintes requisitos: 

- a existência de um crédito resultante de promessa de transmissão ou constituição de um direito real;

- entrega ou tradição da coisa objecto do contrato promessa (traditio); 

- e incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor;

- sendo ainda que, por força do teor do Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 4/2014, publicado no DR, I Série, de 19.05.2014, no que toca à interpretação do art.º 755.º, n.º 1, al. f) do C.Civil, se entende que esta norma exige ainda que o beneficiário da promessa tenha de ter a qualidade de consumidor.

Sendo manifesto que incumbia ao credor/reclamante/impugnante a alegação e prova dos supra referidos requisitos ou factos constitutivos do direito de retenção a que se arrogava, cabendo à A.I. e à ora apelante a alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse mesmo direito.

Como se deixou já consignado, o reclamante/impugnante, ora apelado, titular de crédito resultante do incumprimento definitivo dos contratos promessas que celebrou com a ora insolvente e por banda desta, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescido de juros de mora, no montante de €148.042,89.

Ele beneficiou da traditio dos apartamentos em causa, pois como resultou provado posteriormente à celebração dos referidos contratos promessa, foram-lhe entregues pela promitente vendedora, as chaves de ambos os “apartamentos”, sendo que o mesmo, há mais de 3, 4 e 5 anos a esta data, à vista de todos, sem interrupção e sem oposição de ninguém, aí guarda bens próprios.

Como é sabido, a traditio que não é um elemento essencial do contrato-promessa, contudo, aparece muitas vezes a acompanhar a celebração deste contrato, ou seja, da transferência da coisa objecto do contrato. Mas devido à natureza do contrato promessa, a detenção da coisa por força do contrato não poderá originar uma situação de pura posse, com a presença e amplitude de todos os seus elementos (corpus e animus). O promitente-comprador não exerce, normalmente, uma verdadeira posse, mas apenas a mera detenção ou posse precária da coisa. Na verdade, o direito pessoal de gozo que a traditio confere ao promitente-comprador assenta na expectativa da alienação prometida e está, evidentemente, limitado por essa situação. Todavia, nada impede que o promitente-comprador se comporte como se dono da coisa, objecto do contrato, fosse, considerando segura a celebração do contrato prometido, e assim pratique actos possessórios em nome próprio sobre a coisa.

Perante tudo isto, nenhuma censura nos merece a decisão alcançada em 1.ª instância, no sentido de que o crédito reconhecido ao credor, ora apelado, beneficia de direito de retenção. E uma vez que o prédio urbano onde se situam os bens prometidos vender, ou seja, o “apartamento de tipo T2, sito no R/C frente, Rua .., com arrumo e lugar de garagem na cave” e o “apartamento de tipo T2, sito no Primeiro frente, Rua .., com arrumo e lugar de garagem na cave”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho, freguesia …, com o número …./…….., não foi nem se encontra submetido ao regime da propriedade horizontal, não estando, por isso, autonomizadas as diversas fracções, o referido direito de retenção terá de incidir sobre todo o prédio urbano."

[MTS]