"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/10/2017

Jurisprudência (704)


Advogado; responsabilidade civil;
perda de chance


1. O sumário de STJ 24/3/2017 (389/14.4T8EVR.E1.S1) é o seguinte:


I - O advogado, no exercício das suas funções, deve agir na defesa dos interesses do cliente de acordo com as boas regras da profissão (leges artis) mas sempre com independência e autonomia técnica; a obrigação que assume, enquanto mandatário, perante o seu mandante é uma obrigação de meios e não de resultado.

II - Não se deve considerar que o advogado incorre em falta do dever de diligência profissional nas situações em que ele assume, no exercício do seu múnus, opções de natureza jurídica, processual ou substantiva, que se inserem no âmbito da sua autonomia técnica em conformidade com os interesses do mandante que representa.

III - Importa atentar que os comportamentos positivos ou omissivos que traduzem falta de diligência profissional devem constituir conditio sine qua non do insucesso da ação ou da defesa, obstando per se a que o autor ganhe o que reclamava ou perca o que lhe era reclamado, pois só se assim for se perspetiva a atribuição de indemnização por perda de chance.

IV - Os comportamentos suscetíveis de integrar violação culposa do dever de diligência que a lei comete ao advogado nas relações com o cliente (artigo 95.º/1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro e 100.º/1, alínea b) do EOA aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro) devem restringir-se, em regra, às atuações graves, quase sempre omissivas (v.g. injustificadas faltas de contestação, de não interposição de recurso contra a vontade do mandante, de não interposição de ação antes do decurso do prazo de caducidade, de não apresentação do requerimento probatório etc.), situações estas que estão manifestamente fora do âmbito das opções técnicas, designadamente de natureza jurídica, que o advogado, enquanto jurista particularmente qualificado, tem de assumir no seu patrocínio.

V - A indemnização a atribuir com base em perda de chance não dispensa um julgamento dentro do julgamento, ou seja, não basta verificar-se falta grave obstativa por si do desfecho jurídico favorável, importa ainda ponderar a probabilidade elevada de que tal desfecho favorável pudesse ter-se verificado.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 

"23. A questão que se suscita é a de saber se o réu, advogado, e com ele a ré seguradora, esta nos limites da apólice, devem ser condenados a indemnizar o autor por ter improcedido a ação que o réu, mandatado pelo autor, propôs contra a vendedora e o representante do fabricante de veículo adquirido pelo autor e que foi julgada improcedente, ação em que este pretendia a resolução do contrato de compra e venda com a restituição de todas as quantias pagas a título de crédito contratado para aquisição do veículo.

24. O autor sustenta que a improcedência da ação resultou do facto de o advogado ter violado os seus deveres de diligência profissional considerando que, no exercício das suas funções, deve, "estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que esteja incumbido, utilizado para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade" (artigo 95.º/1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro, entretanto alterado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, que mantém idêntica redação no artigo 100.º/1, alínea b)), devendo "exercitar a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável" (artigo 76.º do EOA/2005; ver artigo 12.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que, no artigo 12.º/3, acrescentou ao correspondente preceito do EOA/2005 que o advogado, no exercício das suas funções, se encontra "apenas vinculado a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão"). [...]

37. As situações que entram no perímetro da falta de diligência do advogado traduzem-se quase sempre em atos omissivos que implicam per se um desfecho desfavorável. Não se afigura que nele se devam incluir todas as situações que se reconduzem a ponderações e opções que fazem parte da autonomia técnica do advogado ainda que, ajuizadas após o desfecho final, se admita que pudessem não ter sido as mais corretas (v.g o advogado da parte vencedora não alarga o âmbito do recurso impugnando a matéria de facto que lhe foi desfavorável ou, face à prova produzida, prescinde de testemunhas faltosas ou, em sede de argumentação, não invoca determinados argumentos etc., etc.).

38. Na jurisprudência têm sido considerados integrativos de falta de diligência profissional casos como os de falta de contestação no prazo legal (Acórdão do STJ de 1-7-2014, rel. Fonseca Ramos, P. 824/06.5TVLSB.L2.S1), omissão de interposição de recurso (Ac. do STJ de 4-12-2012, rel. Alves Velho, P. 289/10.7TVLSB.L1.S1, Ac. do STJ de 4-7-2013, rel. Hélder Roque, revista n.º 298/10.6TBAGN.C1.S1 - 1.ª Secção) ou da sua falta de tempestividade (Ac. do STJ de 11-7-2013, rel. João Bernardo, revista n.º 5030/04.0TBCSC.L1.S1 - 2.ª Secção), falta de dedução de pedido cível de indemnização (Ac. do STJ de 27-2-2014, rel. João Trindade, revista n.º 490/2002.E1.S1 - 2.ª Secção), omissão de apresentação de prova (Ac. do STJ de 14-3-2013 rel. Maria dos Prazeres Beleza, revista 78/09.1TVLSB.L1.S1; também na C.J., 2013, 1, pág. 155.

39. Ao longo de várias decisões tem sido afirmado que a constatação de tais atos omissivos não basta para que o lesado seja ressarcido dos danos que correspondam, no máximo atribuível, ao que deixou de ganhar com a improcedência da sua pretensão ou ao que perdeu com a procedência da ação quando seja ele o demandado.

40. Na verdade, e não sendo absolutamente certo, não obstante tais omissões (como se disse, os casos de omissão constituem as situações mais frequentes que estão na base da invocação de perda de chance) que a ação viesse a proceder ou que a procedência da ação pudesse ser afastada por defesa não admitida, impõe-se fazer um julgamento dentro do julgamento (ver Ac. da Relação de Lisboa, rel. Tomé Gomes, CJ, 5, pág. 71) no sentido de saber se a ação, face aos termos em que foi proposta, seria viável ou se existiam razões suscetíveis de ser invocadas pela defesa que pudessem afastar a procedência da ação; para haver indemnização a probabilidade de ganho há de ser "elevada" (Ac. do STJ de 14-3-2013 supra mencionado).

41. Como se refere no Ac. do STJ de 5-5-2015, rel. Silva Salazar, revista 614/06.5TVLSB.L1.S1 "para haver indemnização, o dano da perda de oportunidade de ganhar uma ação não pode ser desligado de uma consistente e séria probabilidade de a vencer: não basta invocar a omissão da obrigação de instaurar ação de despejo, com base em fundamento conhecido há mais de um ano, que teve como consequência impedir a sua procedência, por caducidade; impõe-se, ainda, alegar e provar que, sem essa omissão, os factos fundamento resultariam provados, tendo ser muito elevada a probabilidade de vencer a ação omitida".

42. No Ac. do STJ de 1-7-2014, rel. Fonseca Ramos, revista 824/06.5TVLSB.L2.S1, aresto com larga cópia de referências doutrinais e jurisprudenciais, salienta-se que, sendo a conduta ilícita adequada ao dano, ou seja, condição de dano por parte de quem agiu ilicitamente, o prejuízo deve recair por quem assim agiu ainda que haja conduta de terceiros a concorrer para o resultado ou, pelo menos, a não o evitar. Sendo assim as coisas, ou seja, considerando-se "que o facto que atuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras de experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano" (ver Ac. do STJ de 20-6-2006, rel. Alves Velho, recurso n.º 1504/06 também na CJ, Ac. do STJ, pág. 119) afigura-se que, tratando-se de indemnização fundada na perda de chance, as situações que configurem grave lesão do dever de diligência profissional e que levem a que a pretensão do autor, a defesa do réu ou o recurso interposto não sejam atendidos, devem considerar-se causa adequada do dano salvo se se ajuizar que, não obstante a sua verificação, o resultado da ação seria o da improcedência ou a defesa que se pudesse apresentar inconsistente ou o recurso improcedente.

43. No caso vertente importa assinalar que o autor omitiu qualquer referência ao provável sucesso da ação proposta pelo réu enquanto advogado do autor; no entanto, já verificámos que a procedência da ação estava dependente da prova da falta de reparação do defeito do veículo e tal prova não se produziu; quer isto dizer que, tendo prosseguido a ação para julgamento com produção de prova, pode ajuizar-se com segurança e não numa base de probabilidade elevada que a ação seria sempre julgada improcedente, independentemente da caducidade, visto que o sucesso do pedido de resolução dependia da prova de que o defeito do veículo não tinha sido reparado.

44. Acresce que os factos provados no que respeita à omissão de interposição do recurso - factos 17 e 18 - não demonstram que o autor tivesse mandatado o réu para interpor recurso nem, diga-se, houve alegação nesse sentido; constata-se que o autor teve conhecimento da sentença pois esta foi-lhe entregue no escritório do réu no último dia do prazo para interposição do recurso, tendo cumprido o advogado o dever de informação sobre o estado do processo e a sentença.

45. Não se vê que tenham sido dados como provados ou não provados factos alegados pelo réu (ver artigo 25 e 26 da contestação onde o réu afirmou que "no último dia para recorrer, foi o autor que se dirigiu ao escritório do réu e afirmou não ter possibilidades financeiras para pagar as custas de um recurso ao que o réu respondeu que, perante a prova produzida, também não lhe seria recomendável interpor recurso da decisão, alegando ainda que " durante o prazo do recurso, tentou ligar várias vezes ao autor que lhe recuso umas chamadas (conforme se poderá demonstrar pelo registo das mesmas)"

46. Seja como for, não tendo sido alegado pelo autor que pretendia interpor recurso da sentença, também aqui não se pode considerar que houve qualquer omissão por parte do advogado pois não está provado que o seu mandante lhe haja dado instruções (artigo 1161.º, alínea a) do Código Civil). Cumpria ao autor o ónus de alegar e provar que pretendia interpor recurso da sentença (artigo 342.º do Código Civil) da qual lhe foi dado conhecimento e, por isso, não se reveste de qualquer interesse ampliação da matéria de facto tendo em vista a prova dos aludidos factos."


[MTS]