"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/10/2017

Jurisprudência (708)

 
Contrato de agência; denúncia;
ónus da prova


1. O sumário de RP 20/4/2017 (318/05.6TVPRT.P1) é o seguinte:

I - De acordo com o disposto no art.º 28.º n.º 1 do Decreto-Lei 178/86 de 3 de Julho a denúncia do contrato de agência é permitida, tratando-se de um contrato celebrado por tempo indeterminado, mas deve ser comunicada por escrito ao outro contratante, com a antecedência aí prevista, que varia consoante a duração da relação contratual das partes.
 
II - Havendo uma declaração unilateral de cessação do contrato que não observa a forma escrita, de acordo com o disposto no art.º 220.º do C.Civil a declaração negocial é nula, tudo se passando por isso como se não tivesse tido lugar.
 
III - Para que possa ser determinada a inversão do ónus da prova nos termos do art.º 344.º n.º 2 do C.Civil, torna-se necessária a verificação cumulativa de dois requisitos: o primeiro exige que a prova de um determinado facto se tenha tornado impossível, por acção ou omissão da parte a quem não compete fazer a sua prova; o segundo impõe a existência de um comportamento culposo da mesma.
 
IV - A indemnização de clientela não é uma indemnização no sentido próprio e estrito do termo, já que não visa a reparação de danos sofridos, antes visa a atribuição de uma compensação ao agente baseada no princípio de que o principal continua a beneficiar da clientela por si angariada, vendendo os seus produtos aos clientes já depois da cessação do contrato de agência, obtendo ganhos que advêm da anterior actividade do agente, sendo o seu valor determinado equitativamente e não de acordo com os critérios previstos no art.º 562.º ss. do C.Civil para a obrigação de indemnizar.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
 
"Insurge-se a Recorrente contra a decisão do tribunal de 14/06/2015 que determinou a inversão do ónus da prova quanto à matéria do quesito 13.º da base instrutória, referindo que juntou todos os documentos que tinha em seu poder, não lhe podendo ser imputada qualquer culpa pelo facto de não ter documentos contabilísticos por mais de 10 anos, uma vez que a legislação Italiana a isso não obriga as empresas.
 
Nesta decisão intercalar que é objecto de recurso foi entendido que a R. actuou de forma culposa tornando impossível à A. a prova da matéria do art.º 13.º da base instrutória.
 
O art.º 417.º do C.P.C., com a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, equivalente ao anterior art.º 519.º dispõe:
 
“1.Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, devem prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
 
2. Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.”
 
Por seu turno, o art.º 344.º n.º 2 do C.Civil estipula que há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
 
Diz-nos Lebre de Freitas, in Código do Processo Civil, Anotado, Vol. 2.º, pág. 409: “O comportamento do recusante pode, mais drasticamente, determinar, quando verificado o condicionalismo do artigo 344.º, n.º 2 CC, a inversão do ónus da prova. Tal acontece quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova”.
 
Assim, para que possa ser determinada a inversão do ónus da prova torna-se necessária a verificação cumulativa de dois requisitos: o primeiro exige que a prova de um determinado facto se tenha tornado impossível, por acção ou omissão da parte a quem não compete fazer a sua prova; o segundo impõe a existência de um comportamento culposo da mesma.
 
Tal como nos diz, a propósito da não junção de um documento ao processo pela parte contrária, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/05/2010, no proc. 1325/03.9TBTNV.C1, in www.dgsi.pt : “Assim, para que tal inversão do ónus da prova possa ocorrer, necessário se torna que da não junção do documento em causa resulte a impossibilidade da prova de que o referido cheque se destinava ao pagamento da quantia mutuada, não sendo, para tal, suficiente que daí resulte a maior dificuldade da demonstração de tal facto e que a não junção resulte de comportamento culposo do autor. Desde que não verificados tais requisitos, apenas poderá o tribunal apreciar livremente o valor probatório da recusa, mas não a inversão do ónus da prova.”
 
Revertendo agora para o caso em presença e avaliando o comportamento processual de ambas as partes, constata-se que nenhum destes requisitos se encontra verificado.
 
Senão vejamos.
 
O facto em questão, relativamente ao qual o tribunal a quo decidiu inverter o ónus da prova, é o expresso no art.º 13.º da base instrutória que tem a seguinte redacção: “Nos últimos cinco anos que precederam o que se refere em 8) a autora auferiu um total de comissões de €97.763,80?”
 
O ónus da prova desta matéria é da A., já que estamos perante um facto constitutivo do direito de crédito que a mesma alega ter sobre a R., tendo em conta o disposto no art.º 342.º n.º 1 do C.P.C.
 
Desde logo não se vislumbra como é que para a A. que é uma sociedade comercial com obrigatoriedade de dispor contabilidade organizada, esta prova se revela impossível sem recorrer aos elementos contabilísticos da parte contrária.
 
A alegação feita pela A. na sua petição inicial é muito precisa e é no sentido de que auferiu o valor de €97.763,80 de comissões da R., sendo que a A. nunca diz nos autos que não sabe qual o valor de comissões que lhe é devido pela celebração dos contratos que mediou. Ora, para chegar a tal valor a A. tem necessariamente de se socorrer dos seus documentos e do seu suporte contabilístico, senão, onde iria buscar a determinação de tal valor? Tratando-se de montantes por ela auferidos ou devidos de comissões, tal suporte documental tem de existir através de notas de comissões, de notas de encomenda ou de facturas, sendo obrigatório para empresa ter contabilidade organizada e manter os seus documentos de contabilidade pelo menos durante o período de 10 anos, conforme estipula o art.º 40 do C.Comercial, o mesmo prazo que a Lei Italiana estabelece como obrigatório para as suas empresas manterem os documentos de contabilidade no art.º 2220 do C.Civil Italiano.
 
Constata-se aliás que a alegação da A. quanto ao valor das comissões relativas ao período em questão é muito precisa, não podendo deixar de revelar que a mesma dispõe de elementos que permitem alcançá-lo. Verifica-se que a A. ao pronunciar-se sobre os documentos juntos pela R. vem dizer que os mesmos não estão completos, que no ano de 2000 auferiu pelo menos €13.201,00 de comissões impugnando o valor avançado pela R. nos seus documentos de €5.743,69, o que revela que a A. não pode deixar de ter elementos de informação que lhe permitem avançar com tais valores.
 
Constata-se ainda que dos documentos juntos a fls. 790 ss. pela C1… constam diversas facturas emitidas pela A. no ano de 2002, não sendo por isso credível a sua alegação de que não facturava as comissões à R. O legal representante da A., em declarações prestadas em audiência de julgamento refere que, embora nem sempre emitam factura, emitem “nota de comissão”. Também a testemunha F…, que foi funcionária da A. ligada à contabilidade, quando ouvida em audiência de julgamento diz “conhecer” a R. através de contratos e facturas e relativamente ao valor total das comissões diz tê-lo confirmado através de dossiers da A., dizendo desconhecer porque não foram juntos aos autos.
 
Afigura-se que a prova dos factos alegados pela A. a ela competia, tendo a mesma a obrigação de ter os elementos contabilísticos e de suporte que permitem a verificação dos factos alegados, tais como notas de encomenda ou de comissões, facturas, notas de débito ou documentos bancários, já que se trata, alegadamente, da prova de comissões por vendas por si angariadas e que pelo menos em parte lhe foram pagas pela R., sendo que a postura da mesma nos autos revela que a mesma deles dispõe.
 
Não pode por isso dizer-se que foi a R. que tornou impossível a prova de tal matéria quando, no momento em que é solicitada a perícia à sua contabilidade refere já não ter na sua posse os documentos que a lei Italiana não obriga a manter, sendo certo que, em momento anterior procedeu à junção aos autos de diversos elementos e documentos que lhe foram solicitados pelo tribunal.
 
Verifica-se aliás uma atitude de cooperação da R. que, na sequência do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que determinou a sua notificação para juntar os documentos que haviam sido requeridos pela A. e após solicitar prazo para a pesquisa de tais elementos, veio juntar a 02/03/2010 o que referiu serem os comprovativos dos pagamentos das comissões feitas à A. nos anos de 1999 a 31/12/2001, apenas referindo estarem em falta os documentos relativos ao ano de 1998 por já os ter destruído e não estar obrigada a mantê-los de acordo com a legislação Italiana e não ter documentos posteriores, por ter sido em 31/12/2001 que cessou a sua actividade com a A., conforme aliás vem sempre alegando nos autos.
 
Em conclusão, não pode dizer-se que a R. com o seu comportamento tornou impossível à A. a prova da matéria em questão, na medida em que o exame à sua contabilidade não seria a única forma da A. demonstrar o valor das comissões por si auferidas, conforme se viu, nem tão pouco que aquela actuou de forma culposa ou censurável, recusando a colaboração que lhe foi solicitada pelo tribunal, ao referir já não ter a documentação relativa aos anos pretendidos no momento em que foi determinada aquela perícia, o que não permite concluir por uma recusa de colaboração da mesma, não estando por isso justificada a alteração do ónus da prova, à luz do art.º 344.º n.º 2 do C.Civil, como determinou o tribunal a quo.
 
Impõe-se por isso a revogação do despacho de 14/06/2015 que assim o decidiu."
 
[MTS]