"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/10/2017

Jurisprudência (713)


Caso julgado; autoridade de caso julgado;
excepção de caso julgado

1. O sumário de RE 11/5/2017 (442/16.0T8FAR.E1) é o seguinte:

Quem aceita que um bem imóvel faz parte da herança doutrem e acata a sua partilha judicial, não pode depois vir invocar a sua aquisição originária, por usucapião, contra o adquirente do mesmo nessa partilha. 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Expendeu-se na sentença que “Por violação da autoridade do caso julgado, não pode a presente ação vir a ser julgada procedente, na medida em que há uma decisão anterior que reconhece que o Autor até 1999 não poderia ser o proprietário, ainda que sem título do imóvel em causa nos autos, por a propriedade plena do mesmo pertencer aos seus pais, o que até já foi reconhecido pelo próprio Autor.

Tem que se respeitar o decidido no inventário nº 530/14.7T8FAR (antigo nº 139/2000) por decisão transitada em julgado, decisão que se impõe nestes autos, não podendo o Autor vir invocar que exercia a propriedade do prédio antes da morte dos pais de forma a obter os efeitos da aquisição por usucapião previsto nos artigos 1287º e seguintes do Código Civil quando nesse processo foi decidido que esse bem fazia parte da herança indivisa deixada pelos seus pais, tendo um deles falecido em 1999, tendo-lhe sido inclusivamente tal bem adjudicado e tendo acordado pagar tornas aos demais herdeiros, o que não fez, motivo pelo qual o bem cuja propriedade havia adquirido, foi vendido à Ré como forma dos demais herdeiros obterem o pagamento dessas tornas.” 

Vejamos.

Dispõe o artº 619º, nº 1, do CPC que “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artºs 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artºs 696º a 702º”. 

Por sua vez preceitua o artº 621º do mesmo diploma que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (….)”

Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada e julgado (artº 628º do CPC) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial. 

O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa.

A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artº 580º, nºs 1 e 2, do CPC).

A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica. [...]

A autoridade de caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artº 581º, do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.

A autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado corretamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça. (v. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 93.

Diz-se no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/05/2010 (proc nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1, www.dgsi.pt), a análise do caso julgado pode ser perspetivada através de duas vertentes, que em nada se confundem: uma delas reporta-se à exceção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; a outra vertente reporta-se à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão”. [...]
 
No caso dos autos, a sentença homologatória da partilha do prédio em questão nos presentes autos, transitou em julgado em 02/09/2014.

Atentemos agora no que o recorrente veio argumentar na presente ação: que pretende ver reconhecido o seu alegado direito de propriedade sobre o prédio misto (objeto dos presentes autos, que foi partilhado no processo de inventário), por o ter adquirido por usucapião, prédio esse onde residiu com os seus pais, que assumiram o prédio como seu, embora os pais não lhe tenham feito qualquer doação ou testamento, que se comportou como proprietário do mesmo nele fazendo sementeiras e plantado árvores; que há cerca de 30 anos que os pais lhe permitiram que fizesse uma construção onde vive com a mulher e filhos.

Sucede porém, conforme se verifica do inventário nº 530/14.7T8FAR (antigo 139/2000) que correu termos pelo Tribunal de Faro e cuja certidão se encontra junta a folhas 60 a 78, logo após o falecimento dos pais do recorrente, os seus irmãos requereram inventário para partilha dos bens por eles deixados, onde se inclui o prédio misto agora em causa.

Nesse processo de inventário, o recorrente foi citado tendo recebido a relação de bens, não tendo reclamado da mesma, aceitando que tal prédio fazia parte da herança deixada pelos seus pais.

Nesse processo nunca o recorrente se manifestou contra a partilha do prédio misto em causa, nem nunca se arrogou proprietário do mesmo.

Esse processo de inventário seguiu os seus trâmites legais, tendo na conferência de interessados, realizada no dia 13/06/2005, (onde se encontrava presente o ora recorrente, acompanhado de mandatário), os interessados chegado a acordo, onde fizeram constar que os bens constantes na relação de bens junta a folhas 16 e 17 eram adjudicados ao interessado … (ora recorrente), pagando a título de tornas aos outros sete interessados a quantia de 44.000.000$00 (quarenta e quatro milhões de escudos) a que corresponde € 220.000 (duzentos e vinte mil euros).

Pelos interessados foi referido que não prescindiam reciprocamente de tornas.

Como o ora recorrente não depositou o valor das tornas devidas, os interessados requereram ao tribunal a venda dos bens adjudicados, o que foi deferido por despacho de 21/06/2007. Tendo-se procedido à venda por proposta em carta fechada em 20/10/2009. 

Temos, assim, pois que o recorrente nunca se apresentou como proprietário do prédio em causa perante os seus irmãos, tendo aceitado que tal bem fazia parte da herança dos seus pais.

A partilha, na qual o prédio em causa foi julgado como bem da herança, foi devidamente homologada por sentença, há muito transitada em julgado.

Assim sendo, não pode o recorrente querer reeditar, direta ou indiretamente, o assunto, justamente porque a tanto se opõe a autoridade do caso julgado material formado na anterior ação. O que o recorrente está a fazer na presente ação é querer discutir a sua suposta propriedade sobre um prédio, que nunca lhe pertenceu, mas que era um bem da herança deixada pelos seus pais, pertença de todos os seus irmãos.

A sentença que homologou a partilha dos bens entre o recorrente e os seus irmãos, também interessados no inventário, faz caso julgado entre o recorrente e os demais interessados relativamente ao facto de os bens partilhados fazerem parte da herança deixado por óbito dos pais do recorrente e dos demais interessados no inventário.

Ora, o reconhecimento por sentença transitada em julgado que homologou a dita partilha de que o prédio em causa foi partilhado por pertencer à herança deixada pelos pais do recorrente, é incompatível com o alegado direito de propriedade do recorrente sobre o prédio em causa, em momento anterior à adjudicação que teve lugar no âmbito do inventário 

Bem andou a Mmª Julgadora na apreciação que fez do valor para o recorrente da decisão proferida no processo de inventário em que o mesmo foi interessado, caso contrário seria violar a autoridade de caso julgado da sentença anteriormente proferida. 

Em consequência, improcede, também esta questão suscitada pelo recorrente."

3. [Comentário] Numa reflexão recente sobre a excepção de caso julgado, houve a oportunidade de se escrever o seguinte:

"[...] a excepção de caso julgado pode ter um âmbito de aplicação mais vasto do que habitualmente lhe é reconhecido. Normalmente, a excepção de caso julgado cumpre uma função negativa: esta excepção garante, como se estabelece no art. 580.º, n.º 2, a proibição de repetição de uma causa anterior. Basta atentar, no entanto, no disposto no art. 580.º, n.º 2, para se perceber que a excepção de caso julgado também pode realizar uma função positiva: não a função de excluir a repetição do mesmo, mas a função – também referida no art. 580.º, n.º 2 -- de obstar à contradição do decidido numa causa anterior" (M. Teixeira de Sousa, RFDUL 57 (2017), 168 (também em academia.edu)).

De acordo com esta posição, a acção na qual foi proferido o acórdão da RE devia ter terminado com a absolvição do réu da instância com fundamento na verificação da excepção de caso julgado (cf. art. 577.º, al. i), 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. e), CPC).

MTS