"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/10/2017

Jurisprudência (703)


Princípio do contraditório;
decisões-surpresa; proibição


1. O sumário de STJ 23/4/2017 (6131/12.7TBMTS-A.P1.S1) é o seguinte:

I - O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no art. 20.º da CRP e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão.

II - É o princípio do contraditório – com expressão na lei ordinária nos arts. 3.º, n.º 3, e 4.º do CPC – que garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais e lhes assegura a participação em idênticas condições até ser proferida a decisão.

III - Tal princípio proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido a prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.

IV - Não ocorre decisão-surpresa na convocação pelo acórdão recorrido do art. 22.º da LUCh – preceito que regula o regime de oponibilidade das excepções ao portador legítimo do título cambiário – quando tal questão havia já sido abordada pelas partes e tratada na sentença da 1.ª instância, pelo que, nestas circunstâncias, a audição das partes revelar-se-ia de manifesta desnecessidade.

V - Decorre do art. 22.º da LUCh que caso o cheque já se encontre no domínio das relações mediatas o obrigado cambiário a quem seja exigido o pagamento só poderá deduzir excepções de direito material se os factos provados revelarem que o portador do título em questão procedeu, ao adquiri-lo, conscientemente em detrimento do devedor, ou seja, se adquiriu o cheque de má fé (conhecendo o vício) e agiu com consciência de prejudicar o devedor.

VI - A partir do momento em que é emitido e entregue, o cheque entra em circulação e, por regra, logo que é endossado passa para o domínio das relações mediatas; sai da esfera das relações causais à sua emissão, estabelecidas entre o subscritor do cheque (sacador) e o seu beneficiário, relações a que o endossado é, por princípio, alheio.

VII - Pode suceder, porém, que todos os sujeitos cambiários, incluindo o endossado, sejam, concomitantemente, sujeitos da relação jurídica fundamental e da relação cambiária e, neste caso, o cheque mantém-se no campo das relações imediatas, apesar do seu endosso.

VIII - Resultando da factualidade provada que o cheque em que se funda a execução consubstancia uma ordem de pagamento dada pelos recorrentes (sacadores) a uma entidade bancária (sacado) a favor de um terceiro (beneficiário), seu filho, o qual, por sua vez, o endossou ao exequente, mas provando-se, igualmente, que os recorrentes foram partes intervenientes no negócio causal, nele se obrigando como fiadores do seu filho, devedor principal, nos termos exarados no acordo de pagamento celebrado, manteve-se o cheque então emitido no âmbito das relações imediatas, pelo que é permitido aos recorrentes, executados na acção, discutir com o exequente as excepções fundadas na convenção extracartular.

IX - Ao contrário do credor, que pode exigir o cumprimento parcial da prestação que lhe é devida, sem embargo de vir a exigir mais tarde o remanescente da prestação, o devedor está adstrito ao seu cumprimento por inteiro.

X - Em consequência, caso o credor não aceite apenas uma parte da prestação, não ocorrerá
mora accipiendi, nos termos do disposto no art. 813.º, n.º 1, do CC, mas mora solvendi. Só assim não será se se verificar alguma excepção ao princípio contido no art. 763.º, n.º 1, do CC, resultante, designadamente, de convenção pelas partes contratantes ou da lei.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"1. O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no artigo 20º da Constituição e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão,

Constitui um princípio basilar na concretização do princípio da igualdade das partes, tendo encontrado ambos expressão na lei ordinária nos artigos 3º nº 3 e 4º do Código de Processo Civil.

É o princípio do contraditório que garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais, que lhes assegura a participação em idênticas condições até ser proferida a decisão.

Manifesta-se em diversos planos ao longo do processo, (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1999, vol. 1º, págs. 8/9). No plano das questões de direito, sejam processuais sejam materiais, o princípio do contraditório proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.

No caso, as partes não podiam deixar de perspectivar como solução plausível do litígio a invocação do disposto no artigo 22º da Lei Uniforme Sobre Cheques, preceito que regula o regime de oponibilidade das excepções ao portador legítimo do título cambiário em toda a sua amplitude, tanto mais que os oponentes invocaram em sua defesa a relação jurídica subjacente à emissão do cheque e o exequente teve oportunidade de se pronunciar nos autos sobre esta questão.

Aliás, já na sentença proferida na 1ª instância se havia observado que “não obstante o cheque ter sido emitido a favor do co-executado AA e por este imediatamente endossado ao exequente, resulta do alegado pelas partes e dos factos provados que os sujeitos cambiários são, também, sujeitos das convenções extracartulares – (…) – estando assim o cheque no domínio das relações imediatas podendo os opoentes e o exequente discutir entre si as excepções relacionadas com a relação contratual donde emerge a obrigação pecuniária a cujo pagamento se destinava”.

Logo, saber se o cheque se encontrava no campo das relações imediatas ou imediatas constituía questão já abordada pelas partes e tratada na sentença da 1ª instância. Nestas circunstâncias a audição das partes revelar-se-ia de manifesta desnecessidade, pelo que a omissão apontada não é susceptível de configurar a violação do aludido princípio do contraditório."
 
[MTS]