"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2017

Jurisprudência (716)



Junção de documentos; admissibilidade;
litigância de má fé

1. O sumário de RL 27/4/2017 (3842/10.7TBCSC.L1-2) é o seguinte:

I – Não havendo sido demonstrado pelos apelantes que a apresentação do documento cuja junção com a alegação de recurso é pretendida não tenha sido possível anteriormente, ou que se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, não é de deferir aquela junção.

II – Sendo susceptível de recurso de apelação autónomo o despacho de admissão ou rejeição de algum meio de prova, logo, também, o despacho que não admitindo um documento oferecido pela parte determinou o seu desentranhamento, havendo aquele despacho transitado em julgado, passou a ter força obrigatória dentro do processo.

III – Podendo o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio, não é extravasado o objecto do processo quando determinada a restituição das quantias entregues, consequente à mesma nulidade, nos termos do nº 1 do art. 289 do CC, não se verificando a nulidade da sentença prevista no art. 615, nº 1-e) do CPC.

IV – Residindo o fundamento da restituição na nulidade do negócio e não na falta de causa da deslocação patrimonial, só se poderia recorrer às regras do enriquecimento sem causa - que tem natureza subsidiária - quando a lei não facultasse ao empobrecido outros meios de reacção, meios que no caso são facultados.

V – Tendo a parte mentido acerca de circunstâncias de facto que embora no contexto de uma «arrevesada» relação, são simples e claras, faltando num ponto determinante para a configuração da relação em referência ao seu dever de boa fé processual, em violação do dever de verdade, em factos pessoais, de que tinha forçosamente conhecimento, deverá ser condenada como litigante de má fé.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"IV–1-Com a sua alegação de recurso juntaram os RR. ao processo um documento que corresponde à fotocópia de extractos de conta de depósitos à ordem referentes à conta 4217950 do BPA (fls. 475).

Disseram para o efeito: 

«jj)-Foi desta conta que saíram os cheques visados, nºs 4874704 e 4874705, no valor, respetivamente de 650000$00 e 623000$00, o montante pago de sinal, tudo conforme melhor consta do extrato n.º 5 /83 da referida conta.

kk)-A junção é requerida nos termos do artigo 425.º CPC: trata-se de documentos com 33 anos, destruídos ao fim de pouco tempo. Estes apenas o não foram devido a mudanças de residência dos R.R., ficaram esquecidos e apenas agora, por mero acaso, foram detetados».

No processo civil, em regra, os documentos têm de ser juntos pelas partes na 1ª instância; depois, no caso de recurso, apenas os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até então, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância – arts. 425 e 651 do CPC.

A 1ª hipótese - quando não tenha sido possível a apresentação dos documentos até ao encerramento da discussão em 1ª instância – reconduz-se às sub-hipóteses de a parte não ter conhecimento da sua existência, ou, conhecendo-a, lhe não ter sido possível fazer uso deles, ou, mesmo, a de os documentos se terem formado ulteriormente. Aí, utilizando a expressão de Alberto dos Reis ([«Código de Processo Civil Anotado», Coimbra Editora, vol. IV, pag. 15.]) «a parte tem de convencer o tribunal da superveniência do documento respectivo, ou porque o documento se formou depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento ela teve conhecimento da existência do documento, ou porque não pôde obtê-lo até àquela altura».

Na 2ª hipótese - a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância - «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» ([Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, «Manual de Processo Civil”, “Coimbra Editora, 2ª edição, pags. 533-534.])
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Ora, nenhuma das hipóteses supra mencionadas foi demonstrada no caso dos autos.

Nada permite a inclusão na 2ª hipótese referida - a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. Quanto a ser a apresentação abrangida pela 1ª daquelas hipóteses - não ter sido possível a anterior junção no Tribunal de 1ª instância, antes do encerramento da discussão - sendo o documento pré-existentes, nada nos faz inferir o seu desconhecimento pelos AA. ou a impossibilidade de os mesmos deles terem anteriormente feito uso. Saliente-se que, consoante entendido no acórdão da Relação de Coimbra de 18-11-2014 ([Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrcj.nsf/, processo 628/13.9TBGRD.C1]) «só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento».

Pelo que não se atenderá ao documento agora junto pelos RR./apelantes, não se deferindo à sua junção.
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IV–2-Defendem os RR./apelantes que os documentos cuja junção fora por si requerida e que constituíram fls. 274 a 292 dos autos deveriam permanecer nestes, sendo os ditos documentos complementares do documento que fora junto pelo A. e permitindo uma melhor compreensão daquele, tratando-se de um relevante meio de prova documental.

Dos autos resulta o seguinte:

– Em 21-1-2016 os RR. requereram a junção de um documento dizendo que pensavam que o mesmo já teria sido junto aos autos, somente quando da preparação do julgamento detectando a sua falta; afirmaram que aquele documento era imprescindível para a descoberta da verdade, tendo em consideração a prova/contraprova dos temas da prova 1º a 5º (fls. 272-273).

– Esse documento constituía fls. 275-292.

– Em 26-1-2016 foi proferido despacho em que não sendo admitida a junção do dito documento, foi determinado o seu oportuno desentranhamento, do que logo foram notificadas as partes (fls. 301-303).

Vejamos.

Nos termos do nº 1 do art. 644 do CPC cabe recurso de apelação da decisão, proferida em 1ª instância que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente, bem como do despacho saneador que sem pôr termo ao processo decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos. Seguidamente, o nº 2 do mesmo artigo elenca taxativamente as outras decisões do tribunal de 1ª instância impugnáveis por apelação autónoma.

Assim, nos termos do nº 2-d) do art. 644 do CPC cabe recurso de apelação do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova.

Referia, a propósito, Abrantes Geraldes ([Em «Recursos no Novo Código de Processo Civil», Almedina, 2013, pag. 155]) que aqui se englobam, por exemplo, os casos em que o juiz admite ou rejeita um rol de testemunhas ou o aditamento ou substituição desse rol, defere ou indefere a realização de uma perícia ou inspecção judicial, admite ou manda desentranhar determinados documentos, defere ou indefere a requisição de documentos.

Deste modo, o despacho proferido em 26-1-2016 que não admitiu a junção do documento oferecido pelos RR., determinando o seu desentranhamento era susceptível de recurso autónomo de apelação - não se tratando de decisão a ser impugnada no recurso que viesse a ser interposto da decisão final, nos termos do nº 3 do art. 644 do CPC.

Não nos cumprirá aqui, na apelação interposta da sentença final, pronunciarmo-nos sobre a questão da não admissão daquele documento. Aliás, não resultando dos autos que tivesse sido interposto recurso autónomo de apelação nos termos do nº 2-d) do art. 644 do CPC, aquele despacho de 26-1-2016 transitou em julgado (nº 1 do art. 638 do CPC) passando a ter força obrigatória dentro do processo, consoante dispõe o nº 1 do art. 620 do CPC."


3. [Comentário]  A RL talvez tenha sido demasiado rigorosa quanto à rejeição da junção com a alegação de recurso dos documentos que os Réus invocam ter detectado por mero acaso. O problema talvez tenha residido em que a RL considerou que esses mesmos Réus mentiram quanto a alguns factos pessoais que tinham forçosamente de conhecer, pelo que a RL talvez não tivesse grande predisposição para aceitar a tese da descoberta por acaso dos documentos.

Enfim, a questão é mais de psicologia judiciária do que jurídica.

MTS