"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/10/2017

Jurisprudência (712)


Autoridade de caso julgado;
decisões contraditórias


1. O sumário de STJ 30/3/2017 (1375/06.3TBSTR.E1.S1) é o seguinte:
 

I. Quanto à eficácia do caso julgado material, importa distinguir duas vertentes:

a) – uma função negativa, reconduzida à exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; 


b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou noutros tribunais.

II. A exceção de caso julgado requer a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos, a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.

III. Já a autoridade de caso julgado, segundo doutrina e jurisprudência hoje dominantes, não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

[I]V. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação ulterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
 

V. Quando, em duas ações instauradas por autores distintos contra seguradoras também diferentes, em que se discutiu o mesmo acidente de viação, tenham sido proferidas decisões a atribuir, em termos divergentes, a responsabilidade, a título de culpa, aos condutores dos veículos intervenientes, não é lícito conferir autoridade de caso julgado a qualquer delas no âmbito de uma terceira ação instaurada por uma daquelas seguradoras (a título de direito de regresso por quantias pagas a familiares do condutor falecido, em sede de acidente de trabalho conexo com o referido acidente de viação) contra a outra seguradora, na qualidade de garante da responsabilidade do outro condutor. 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Regressando agora ao caso dos autos, convém reter que: 

i) – O Hospital Distrital de S…, S.A., instaurou ação declarativa, sob a forma de processo sumário, contra a Companhia de Seguros BB, S.A., na qualidade de seguradora em relação ao veículo MB, que correu termos sob o n.º 2365/03. 3TBSTR, no Tribunal Judicial de S…, a qual foi julgada parcialmente procedente, ali se considerando que o acidente em referência era imputável a ambos os condutores dos veículos intervenientes, na proporção de 70% para o condutor do veículo MB e 30% para o condutor do veículo NQ, tendo aquela ré sido condenada a pagar ao Hospital ali autor a quantia de € 3.095,70, acrescida de juros de mora, conforme sentença de 23/042004, já transitada [...];  

ii) - SS e TT, ocupantes do veículo NQ, instauraram a uma ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 1175/04.5TBSTR, na Instância Central – Secção Cível – J3 – da Comarca de S..., contra ora A. AA - Companhia de Seguros, SPA, na qualidade de seguradora em relação ao mesmo veículo (NB), titulado pela apólice n.º 008…, na qual se considerou que o acidente em causa era imputável, a título de culpa exclusiva, ao condutor do veículo NQ, tendo a ação sido julgada parcialmente procedente, condenando-se a ali ré a pagar aos ali autores diversas quantias indemnizatórias por danos decorrentes do acidente em referência, conforme sentença proferida em 23/12/2010, alterada, quanto aos montantes indemnizatórios, mas confirmada quanto à imputação do acidente a culpa exclusiva do condutor do veículo NQ, sucessivamente, pelo acórdão da Relação de Évora de 29/03/2012 e pelo acórdão do STJ, de 17/06/ 2014, já transitado em julgado [...]; 

iii) – Na presente ação instaurada pela AA - Companhia de Seguros, SPA, Sucursal em Portugal, contra a Companhia de Seguros BB, S.A., vem pedida a condenação desta a pagar àquela a quantia de € 28.271,19, como reembolso das quantias pagas pela A. à viúva e à filha do falecido condutor do veículo NQ, CC, a título de despesas e pensões decorrentes do acidente de trabalho conexo com o acidente de viação em causa, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data dos respetivos e sucessivos pagamentos, sem prejuízo do pagamento das prestações vincendas a relegar para execução de sentença e respetivos juros de mora. 

Perante este quadro, não sofre dúvida que, entre a presente ação e o processo n.º 1175/04.5TBSTR não se verificam os três requisitos de identidade da exceção de caso julgado previstos no artigo 581.º do CPC.

Com efeito, nem os autores do processo n.º 1175/04.5TBSTR são partes nesta ação nem a ora R. foi parte naquele processo. Apenas a ora A., ré naquele processo, se poderá considerar, de algum modo, o mesmo sujeito sob o ponto de vista da qualidade jurídica (art.º 581.º, n.º 2, do CPC), uma vez que aqui intervém, a exercer o direito de regresso (art.º 31.º, n.º 4, da Lei n.º 100/97, de 13-09, então em vigor) no âmbito do contrato de seguro de acidente de trabalho de que o condutor do veículo NQ era beneficiário e, naquele processo, interveio também em substituição do mesmo enquanto seguradora em relação ao referido veículo.

Também quanto aos pedidos não se verifica coincidência, porquanto as indemnizações peticionadas na presente ação visam a reparação do dano, em sede de responsabilidade por acidente de trabalho conexo com o acidente de viação, resultante da morte pelo condutor do veículo NQ, ao passo que as indemnizações peticionadas no processo n.º 1175/04.5TBSTR respeitavam aos danos sofridos pelos dois ocupantes do mesmo veículo. E, no respeitante às causas de pedir, elas apenas coincidem na parte relativa à dinâmica do acidente, divergindo no que toca aos danos e respetivo nexo de causalidade.

Não obstante isso, o Tribunal a quo considerou que o juízo de culpabilidade pela ocorrência do acidente imputada exclusivamente ao condutor do veículo NQ, CC, formulado no processo n.º 1175/04.5TBSTR constituía, em si, uma questão fundamental alcançada pela autoridade do caso julgado da decisão ali preferida, que era vinculativa para a ali ré e aqui A. e que, por isso, obstava, como “exceção dilatória inominada”, ao conhecimento do objeto da presente ação.  

A admitir-se tal entendimento, de resto com apoio da doutrina citada no acórdão recorrido, ou seja, a extensão daquele juízo de culpabilidade à presente ação, como efeito positivo da autoridade de caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR, salvo o devido respeito, afigura-se que a solução não seria a absolvição da R. instância, sob a qualificação de exceção dilatória, mas sim a improcedência da presente ação com a absolvição da mesma R. do pedido, em virtude de se considerar assente, por decorrência daquele efeito positivo do caso julgado, a culpabilidade exclusiva do condutor do veículo NQ.

Sucede que, com apelo às mesmas razões, também se imporia considerar que o juízo sobre as culpas repartidas pela ocorrência do mesmo acidente, na proporção de 70% para o condutor do veículo MB e 30% para o condutor do veículo NQ, formulado na decisão proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR, de igual modo vinculativo para a ali e aqui ré Companhia de Seguros BB, S.A., também teria o alcance similar na presente ação, o que se traduziria em dois alcances incompatíveis.

Daqui não se segue que deva lançar-se mão do preceituado no artigo 625.º do CPC para dar prevalência ao caso julgado transitado em primeiro lugar – o constituído no processo n.º 2365/03.3TBSTR -, como pretende a Recorrente, pela simples razão de que a contradição de casos julgados a que se refere aquele normativo pressupõe a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC, já que deve incidir “sobre a mesma pretensão”, o que, no caso, não se verifica.  

É certo que a Recorrida contrapõe no sentido de que, no âmbito da ação para cobrança de dívidas hospitalares, como foi o processo n.º 2365/ 03.3TBSTR, regulada pelo Dec.-Lei n.º 218/99, de 15-06, ocorre a inversão do ónus da prova da culpa na produção do acidente, recaindo sobre a R. Seguradora a prova de que o condutor por si segurado não foi culpado na produção do acidente que motivou as lesões dos assistidos pelos hospitais. Nessa base, concluiu que se impõe a prevalência da autoridade do caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR.

Não obstante a pertinência desta argumentação, não se vê que esse regime determine, por si só, a irrelevância do juízo de culpabilidade ali formulado.

O que se constata é que no processo n.º 2365/03.3TBSTR, a ali e ora ré não logrou provar que o seu segurado – o condutor do veículo MB – não fosse culpado pela produção do acidente; provou-se sim que era responsável a título de culpa na proporção de 70%. No processo n.º 1175/04. 5TBSTR, os ali autores provaram a culpa exclusiva do condutor do veículo NQ, sem que a ali ré e ora A. tivesse logrado infirmar essa prova.

Aferir a consistência de cada um daqueles juízos de culpabilidade em função dos esforços probatórios exigíveis às partes ou por elas desempenhados numa e noutra ação afigura-se, no mínimo, bastante problemático e até suscetível de alguma arbitrariedade, para mais com vista a lhe conferir autoridade de caso julgado no contexto da presente ação, em que ocorre a oportunidade de ambas as partes poderem litigar em igualdade de circunstâncias. O contexto de cada ação e a contingência da prova daí decorrente exigem prudência numa tal aferição [...]. 

Refere-se também a Recorrida a comportamentos processuais da A., a requerer a suspensão da instância no sentido de aguardar a decisão final do processo n.º 1175/04.5TBSTR, quando agora o não aceita. Só que, embora os comportamentos das partes possam ser considerados em sede de valoração da prova, não relevam para efeitos da definição jurídica do alcance dos efeitos do caso julgado.

Assim, perante a incompatibilidade entre os dois julgados em presença, a ilação a extrair só poderá ser a de considerar que nenhum deles oferece consistência suficiente e segura, e portanto indiscutível, para se impor como efeito de autoridade do caso julgado nesta ação.

Aliás, se uma das finalidade[s] da autoridade do caso julgado é precisamente evitar decisões contraditórias sobre a mesma questão e garantir a certeza e segurança jurídica, tal desiderato nunca aqui seria logrado, uma vez que a contradição já existente entre as decisões proferidas nos processos n.º 2365/03.3TBSTR e n.º 1175/04.5TBSTR se mostra irremovível. Restará assim garantir às partes as condições de obtenção de uma tutela efetiva."

3. [Comentário] a) Simplificando, a situação sobre a qual o STJ se pronunciou é, de forma esquemática, a seguinte:

-- A propôs uma acção contra a seguradora B para a obtenção da reparação de um dano decorrente de uma acidente rodoviário; nesta acção, o condutor do veículo MB foi considerado responsável por 70% do dano e o condutor do veículo NQ por 30% desse dano;

-- C e D, ocupantes do veículo NQ, propuseram uma acção contra a seguradora E para a obtenção da reparação dos danos resultantes do mesmo acidente rodoviário; nesta acção, o condutor do veículo NQ foi considerado o único responsável pelo danos;

-- Por fim, a seguradora E propôs uma acção contra a seguradora B para exercício do direito de regresso da quantia que teve de pagar a C e D.

O STJ entende que, nesta última acção, não opera nem a excepção de caso julgado, nem a autoridade de caso julgado. 

b) É indiscutível que, na referida acção entre E e B não opera nenhuma excepção de caso julgado, dado que não estão preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 580.º, n.º 1, e 581.º CPC. Mas -- pode perguntar-se -- pode dizer-se o mesmo quanto à autoridade de caso julgado?

O STJ entende que também não pode operar a autoridade de caso julgado, dado que existe entre as decisões proferidas nas duas primeiras acções uma "contradição irremovível".

Na verdade, na acção proposta por A contra a seguradora B, foi fixada a responsabilidade do condutor do veículo NQ em 30% e, na acção proposta por C e D contra a seguradora E foi fixada a responsabilidade desse mesmo condutor em 100%. Quer dizer: segundo uma decisão, B responde por 30% dos danos e, segundo a outra, E responde por 100% dos danos.

Dito de outro modo: se E pode invocar contra B que esta seguradora é responsável por 30% dos danos, B pode invocar contra E que esta seguradora é responsável por 100% dos danos. Nesta base, há que entender que as decisões são contraditórias.

Supõe-se que a afirmação do STJ de que importa garantir às partes a obtenção de uma tutela efectiva é uma resposta ao pedido da recorrente de que se reconheça que nenhuma excepção obsta ao conhecimento do mérito da causa. Certo é que, dado que as decisões são contraditórias entre si, nenhuma delas produz efeito de caso julgado na acção (que se supõe estar) pendente, pelo que tudo depende da prova que for produzida nesta acção.

Enfim, um acidente, duas decisões contraditórias e três acções...

MTS