"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/12/2017

Jurisprudência (746)


Embargos de terceiro; contrato-promessa; eficácia real;
contrato definitivo; oponibilidade à execução



1. O sumário de RP 26/6/2017 (5619/08.9TBMTS-B.P1) é o seguinte:


I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
 
II - A celebração de um contrato-promessa com eficácia real validamente constituída e registada confere ao promitente comprador a faculdade de adquirir o bem objecto da promessa, designadamente desencadeando essa aquisição sem o concurso do promitente vendedor e contra os actos de disposição do bem por este realizados.
 
III - A forma mais comum de accionar esta faculdade autónoma de aquisição corresponde à execução específica a que se refere o artigo 830.º do CCivil. 
 
IV - No quadro de uma execução instaurada contra o promitente vendedor, na qual tenha sido penhorado o bem por este prometido vender, essa mesma faculdade, o direito de aquisição do bem pelo promitente comprador, actua através da venda directa, ao mesmo promitente, nas condições fixadas no contrato, nos termos previstos no artigo 903.º do CPC (actual 831.º) que expressamente referiu esse tipo de venda à promessa real na redacção nele introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8/03.
 
V - Porém, quando o promitente comprador tenha já instaurado a execução específica, a venda judicial que venha a ter lugar na execução, sendo-o em momento em que ainda não se mostra definitivamente decidida aquela acção, terá de ser suspensa.
 
VI - Todavia, o promitente comprador não está impedido de outorgar escritura pública com o promitente vendedor referente à compra e venda prometida fora do quadro da execução e, quando assim aconteça, porque o artigo 824.º, nº 2 do CCivil apenas está previsto para a venda executiva, outra solução não restará que não seja o levantamento da penhora e consequente cancelamento do respectivo registo, a isso não se opondo o estatuído no artigo 819.º do CCivil, pois que, na situação de prévio registo de contrato promessa com eficácia real, tudo se passa no que se refere à prevalência em relação a terceiros, como se a compra e venda prometida tivesse sido efectuada na data em que a promessa foi registada.
 
VII - Desta forma e porque a penhora assim efectuada sobre o imóvel objecto da promessa com eficácia real ofendeu o referido direito real de aquisição daí decorrente, deverão os embargos de terceiros impetrados pelo promitente comprador ser julgados procedentes.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[..,] Oponibilidade da venda do imóvel relativamente à penhora inscrita com data anterior sobre o mesmo.

No essencial e quanto a esta questão o tribunal recorrido, considerou que a venda feita após a penhora de um imóvel anteriormente prometido vender com eficácia real, em cumprimento desse contrato promessa, é inoponível à execução onde tal penhora ocorreu e que, nos contratos promessa com eficácia real, tal eficácia erga omnes se confina a conferir ao promitente comprador a possibilidade de obter na execução onde o imóvel entretanto foi penhorado a venda directa do mesmo.

Deste entendimento dissente a embargante recorrente alegando a inoponibilidade da penhora à referida venda.

Quid iuris? [...]

[...] a questão a que importa agora dar resposta é se o promitente comprador, em contrato promessa de compra e venda dotado de eficácia real que viu registada penhora depois do registo daquele contrato promessa, estava impedido de outorgar escritura pública com o promitente vendedor referente à compra e venda prometida, por ter que exercer o seu direito no âmbito da respectiva execução.

Analisando.

Estatui o artigo 413.º, nº 1 do CCivil que: “À promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”. 

Decorre, portanto deste inciso que a atribuição de eficácia real a um contrato promessa implica, em primeiro lugar, que o objecto desse contrato promessa seja um contrato com eficácia real transmissiva ou constitutiva, e em segundo lugar que o objecto do contrato prometido seja um imóvel ou um móvel sujeito a registo. 

Para além disso, torna-se necessário que as partes nesse contrato declarem expressamente a vontade de atribuição ao contrato promessa da eficácia real, que adoptará a forma que se imponha em função do nº 2 do citado artigo 413.º, e procedam à respectiva inscrição no registo. 

Não obstante, a doutrina se encontre dividida quanto ao conteúdo jurídico da eficácia real [...], pode dizer-se como refere Ana Prata [[“O Contrato Promessa e Seu Regime Civil”, 2ª reimpressão à ed. de 1994], p. 617]: 

“(…) a eficácia real do contrato promessa traduzir-se-á na possibilidade de o contrato promessa ser invocado contra terceiros que, subsequentemente ao registo dessa promessa, venham a adquirir direitos incompatíveis com o seu cumprimento”. 

Dentro desta linha de pensamento, há pois que ponderar, se os direitos que emergem na situação dos autos para os terceiros titulares de registos subsequentes ao do contrato promessa de compra e venda com eficácia real se mostram incompatíveis com esta eficácia.

Numa primeira análise poder-se-ia sustentar que destinando-se o contrato de compra e venda a transferir o direito de propriedade, apenas se mostraria incompatível com a promessa real a transferência do direito de propriedade para um terceiro operada após o registo da promessa, ou seja, que a eficácia real do contrato promessa de compra e venda se destinasse apenas a produzir efeitos relativamente à situação da venda do imóvel a terceiro.

Efectivamente, sendo essa situação aquela que constitui o paradigma da eficácia real do contrato promessa de compra e venda-como quer que a mesma seja dogmaticamente entendida-a verdade é que não são apenas os actos de disposição do imóvel a favor de terceiro, mas também os actos da sua oneração, que se devem ter como abrangidos pela ineficácia dos negócios celebrados em oposição à promessa com eficácia real, na medida em que estes se mostram aptos a impedir o promitente vendedor de cumprir a promessa da venda do direito de propriedade plena. 

A este propósito refere Mónica Jardim [In “Efeitos Substantivos do Registo Predial”, 2015, Reimpressão, pag. 886]: “O registo de contrato promessa dotado de eficácia real garante a pretensão creditória à celebração do contrato prometido e assegura também o direito real que pode ver a ser adquirido no futuro. O registo definitivo em apreço atribui ao direito de crédito decorrente do contrato promessa, uma eficácia equiparada à dos direitos reais, afastando, por conseguinte, o perigo de ele vir a ser inviabilizado, no todo ou em parte, por actos de alienação ou de oneração do objecto do contrato promessa registados posteriormente”. [...]
O que significa, seguramente, que na pendência do registo do contrato promessa com eficácia real, a penhora do imóvel, seu objecto, torna-a ineficaz em relação ao promitente comprador, não obstante seja discutível a sua qualificação como direito real de garantia. [...]

Todavia, tendo em conta a perspectiva que está em apreciação no presente recurso, cremos que se deve configurar a penhora como [um] direito real de garantia, pois que esse entendimento parece ser o que melhor se coaduna com a norma do artigo 604.º, nº 2 do CCivil, conjugada com a do artigo 822.º, nº 1 do mesmo diploma legal, que admite, para além da consignação de rendimentos, do penhor, da hipoteca, do privilegio e do direito de retenção, “outras causas legitimas de preferência admitidas na lei”, em que se enquadrará a penhora.

Seja como o for, o que importa saber, e está em causa, é se a penhora cujo registo se mostre subsequente ao do contrato promessa de compra e venda com eficácia real, constitui um direito incompatível com o do promitente comprador daquele contrato promessa. 

Não fora a norma do artigo 903.º do CPCivil [...] (actual artigo 831.º) a resposta a tal questão não poderia deixar de ser positiva, já que a penhora acabando na venda executiva, no caso de à promessa ter sido conferida eficácia real, o direito do promitente adquirente à execução específica, porque tem eficácia erga omnes, é oponível a quem quer que seja, inclusive ao terceiro adquirente do bem em processo executivo.

Atentemos, porém, o que resulta da referida norma do artigo 903.º (actual artigo 831.º).

Preceitua este normativo inserido em “Divisão” referente “A outras modalidades de venda” sob a epígrafe “Venda Directa” que: “Se os bens houverem por lei, de ser entregues a determinada pessoa ou tiverem sido prometidos vender, com eficácia real, a quem queira exercer o direito de execução específica, a venda é-lhe feita directamente”. [...]

Deste normativo resulta pois, que a penhora não contende com o direito à execução específica do contrato-promessa dotado de eficácia real, visto que o promissário que se encontre nessa situação, pode exercer o seu direito - ao cumprimento e à execução específica - no próprio processo executivo, sendo-lhe a venda feita directamente e pelo preço acordado no contrato promessa. [...] 

De facto, o exercício da execução específica na própria execução em nada fere o promissário de tal promessa. 

Como é referido no Ac. STA 12/1/2012 [...], “no caso de promessa de compra e venda com eficácia real, o direito do promitente comprador, que se concretiza através da venda directa (cfr. art. 903.º do CPC), harmoniza-se com o escopo da execução fiscal - a obtenção de fundos destinados a pagar ao exequente e, eventualmente, aos credores reclamantes - integrando uma das fases do processo executivo (a venda) com uma única limitação, respeitante ao preço, pois a venda directa far-se-á pelo preço acordado pelos promitentes, ao invés de ser feita pelo melhor preço obtido, como sucede nas demais modalidades de venda, sendo que, em função do “ingresso” na execução desse valor, obter-se-á subsequentemente a satisfação do interesse do exequente e dos credores reclamantes nos termos da respectiva preferência.

Ora, se dúvidas não existem relativamente ao necessário exercício da execução específica na própria execução nas situações em que nesta se esteja na fase da venda - sendo que o promitente comprador em causa tem de ser notificado para o efeito - pois, só esse entendimento permite conciliar o interesse de evitar a falta de estabilidade da venda executiva, que comprometeria a sua realização, e “a possível mancomunação do promitente e promissário advinda de, através da constituição do ónus da eficácia real da promessa, manter indefinidamente fora do alcance dos credores um bem”, de tal modo, que não o exercendo aí, tal direito se precludirá, também não se terão dúvidas em que, na situação em que a execução não esteja na fase da venda, se não poderá impor ao promitente comprador que espere, por vezes, largos anos, para exercer o seu direito ao cumprimento voluntário, ou, se necessário, através de execução específica.

Isto dito, no caso dos autos o que se verifica é que o promitente vendedor e o promitente comprador, ora recorrente, procederam à compra e venda do imóvel fora da processo executivo onde se concretizou a referida penhora, fazendo-o negocialmente por escritura pública (facto supra descrito).

Evidentemente que igualmente poderia ter sucedido, caso um e outro não se tivessem entendido no sentido da realização dessa venda negocial, se a embargante (promitente compradora) tivesse optado pela interposição de acção de execução específica contra aquele (vendedor).

Portanto, um e outro desses comportamentos não pode deixar de ser admitido, não se podendo [...] impor-se ao promitente comprador que espere pela venda judicial do bem em função da penhora que sobre ele incide."


3. [Comentário] Como bem se afirma no acórdão, dado que foram deduzidos embargos de terceiro pelo promitente-comprador de um contrato-promessa com eficácia real, do que se trata é de saber se este promitente tem um direito incompatível com a penhora do bem a que respeita o contrato-promessa (cf. art. 342.º, n.º 1, CPC). Ora, um direito real de aquisição registado antes da penhora não se extingue com a venda executiva (cf. art. 824.º, n.º 2, CC), pelo que é um direito oponível à execução e, por isso, um direito incompatível com a penhora. Aliás, a prova da oponibilidade do direito do promitente-comprador à execução é precisamente o disposto no art. 831.º CPC quanto à venda directa a esse promitente.

A RP parece ter-se esquecido de que a circunstância de o contrato definitivo ter entretanto sido celebrado entre as partes é totalmente irrelevante. Os embargos de terceiro já teriam de ser julgados procedentes, mesmo se essa celebração não tivesse ocorrido.

A procedência dos embargos de terceiro deduzidos pelo promitente-comprador conduz, naturalmente, ao cancelamento do registo da penhora. É assim sempre que os embargos de terceiros sejam considerados procedentes, pelo que a justificação encontrada pela RP para aquele cancelamento também teria sido dispensável.


MTS