"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/12/2017

Jurisprudência (748)


Matéria de facto; decisão:
impugnação; ónus de fundamentação


1. O sumário de RE 28/6/2017 (311/14.8TBABT.E1) é o seguinte: 

É entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"[...] é ainda de exigir, para que ocorra uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto, que seja dado pelo recorrente o devido cumprimento aos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC: indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com o estabelecimento de uma correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes.

Quanto a este último ponto, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 61-64, em anotação ao artº 685º-B do anterior CPC, com correspondência, sem diferenças significativas nessa parte, no actual artº 640º do NCPC). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto) do que deve ser alterado, em que sentido e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios). Em particular, quanto à concreta indicação dos factos que devem ser dados ou deixar de ser dados como provados, a respectiva exigência saiu, aliás, reforçada com a versão conferida ao artº 640º do NCPC, na medida em que nele foi introduzida uma nova al. c) que expressamente impõe ao recorrente a indicação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Por sua vez, o incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º (reiterado, quanto à indicação exacta dos trechos relevantes da prova gravada, na al. a) do nº 2 da mesma disposição legal), e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido, em anotações ao artº 685º-B do anterior CPC, LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., pp. 61-62, embora criticamente de iure condendo, e ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, p. 138; e, já à luz do actual artº 640º, igualmente ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 127-128) – mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.

Como sublinha ABRANTES GERALDES, a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo «um critério de rigor» – e esclarece: «Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 129).

a) No caso dos autos, como já se assinalou, os apelantes não indicaram, de forma exacta e rigorosa, os concretos factos que pretendiam ver declarados provados. Se é certo que se alcança, apesar da alguma imprecisão discursiva, os pontos de facto que se pretendia impugnar, também é verdade que sempre seria incontornável a falta de indicação cabal dos concretos factos (e em que exactos termos) que os apelantes, em alternativa, pretendiam ver declarados provados, apenas sendo possível inferir, com certeza, que visavam sustentar factualmente a sua tese de que o muro tinha uma diferente localização ou que o seu desmoronamento ocorrera em momento temporal diverso. Mas não cabe ao tribunal de recurso, perante a omissão dos próprios apelantes, conjecturar a versão factual que estes entendem que teria o substrato probatório necessário para ser declarada como provada. Ora, a omissão de indicação precisa da factualidade resultante da procedência da impugnação de facto constitui claramente um incumprimento da exigência legal emergente do artº 640º, nº 1, al. c), do NCPC, supra enunciada.

Note-se que os recorrentes ainda indicaram determinados depoimentos, os quais, no seu entender, permitiriam uma decisão diferente quanto à matéria de facto – e fizeram-no por referência a certas passagens da gravação, o que, por si, cumpriria a exigência legal, emergente do artº 640º, nº 2, al. a), do NCPC, de indicação exacta dos trechos relevantes, e supriria a inadequação da transcrição integral de depoimentos que os apelantes também empreenderam. Porém, o cumprimento desse artº 640º, nº 2, al. a), do NCPC não sana a insuficiência do cumprimento da al. c) do nº 1 da mesma disposição legal.

Ou seja: no caso dos autos, tendo presente as considerações precedentes e o teor das conclusões das alegações de recurso, afigura-se notório que os RR. apelantes não indicaram os concretos factos (e em que exactos termos) que pretendiam ver declarados provados. Com efeito, não se procedeu adequadamente à necessária indicação precisa dos pontos de facto que devem passar a ser dados como provados: não se enuncia o exacto teor que deveriam ter os novos pontos de facto provados, não se concretiza o texto dos novos pontos de facto (e um por um) a aditar ao elenco de factos provados já estabelecido – i.e., não se especifica «a decisão que (…) deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», como impõe a al. c) do nº 1 do artº 640º do NCPC. E isto afecta irremediavelmente a pretensão de impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC.

Por força das circunstâncias enunciadas, somos, pois, levados a concluir que a impugnação da matéria de facto formulada pelos RR. apelantes não deverá ser atendida, por carência de um pleno e integral cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC. Sendo assim, cumpre rejeitar o presente recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, na medida em que não estão reunidas as condições formais para a sua reapreciação, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º – o que também nos dispensa da audição da prova gravada em audiência. E, como tal, considera-se improcedente a pretensão de impugnação da matéria de facto formulada em sede do presente recurso."
 
[MTS]