"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/12/2017

Jurisprudência (758)


Decisão-surpresa; nulidade;
ónus da prova


I. O sumário de RC 12/9/2017 (444/16.6T8GRD.C1) é o seguinte: 

1. A omissão de prévia notificação às partes de que na sentença a proferir se tencionava conhecer de um fundamento ainda não discutido, configura uma violação do princípio do contraditório, que se traduz, a nível processual, na nulidade prevista no artigo 195.º do NCPC, com evidente influência no desfecho da causa, o que acarreta a sua nulidade e dos actos subsequentes.

2. Para ser processualmente reconhecido um crédito por benfeitorias, têm que estar alegados e provados os factos constitutivos do direito a que se arroga o autor, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
 

II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se a sentença recorrida constitui uma “decisão-surpresa”, violadora do princípio do contraditório, ao ter configurado a situação sub judice, como um “contrato atípico com figuras de mútuo e cláusulas de compensação entre dinheiro próprio e comum”, quando o autor configurou a acção com base no direito a ser indemnizado, com base nas alegadas benfeitorias que realizou em imóvel próprio da ré e sem que tal diferente enquadramento jurídico tenha sido invocado pelas partes ou, sequer, discutido na audiência de discussão e julgamento e; [...]

A. Se a sentença recorrida constitui uma “decisão-surpresa”, violadora do princípio do contraditório, ao ter configurado a situação sub judice, como um “contrato atípico com figuras de mútuo e cláusulas de compensação entre dinheiro próprio e comum”, quando o autor configurou a acção com base no direito a ser indemnizado, com base nas alegadas benfeitorias que realizou em imóvel próprio da ré e sem que tal diferente enquadramento jurídico tenha sido invocado pelas partes ou, sequer, discutido na audiência de discussão e julgamento.

No que a esta questão concerne, alega a recorrente que a sentença recorrida fez tábua rasa do pedido e causa de pedir alegada pelo autor, para, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, perspectivar e enquadrar a pretensão do autor, numa figura jurídica completamente diversa daquela que o autor invocou, sem disso dar prévio conhecimento às partes, assim; defende, violando o princípio do contraditório, plasmado no artigo 3.º do CPC.

De referir, ainda, que compulsada a acta da audiência de discussão e julgamento, dela nada consta no sentido de que qualquer das partes se tenha querido aproveitar de qualquer outro facto que resultasse da instrução da causa, nos termos do disposto no artigo 5.º do NCPC.

Não obstante isso, como já referido, na sentença recorrida veio a considerar-se como decisivo para a procedência da acção, o facto de se vir a fazer um diferente enquadramento jurídico, à luz da qual, veio a ser apreciada e decidida a pretensão do autor.

O que ocorreu, reitera-se, sem que disso se tenha dado qualquer conhecimento prévio às partes, principalmente à ré, o que, segundo cremos, constitui uma “decisão-surpresa”, que viola, frontalmente, o princípio do contraditório, plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do NCPC.

Princípio, este que decorre do disposto nos artigos 3.º e 4.º do NCPC, de acordo com os quais o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição, impondo-se, por isso, como regra e em consequência, a audição da parte, devendo o juiz, ao longo de todo o processo, observar e fazer cumprir, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta necessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – artigo 3.º, n.º 3, do NCPC.

Sendo de salientar que este princípio mais não é do que uma decorrência do princípio da igualdade das partes plasmado no citado artigo 4.º, segundo o qual as partes, entre o mais ali referido, têm direito, ao longo de todo o processo, a lançar mão dos meios de defesa legalmente admissíveis. [...]

Ora, in casu, como resulta da leitura da petição inicial, o autor, configurou a acção e pedido deduzido, tendo como fundamento o facto de ter um projecto de vida em comum com a ré, que não veio a consolidar-se mas a que, deu causa, ao ter contribuído, monetariamente, para a construção de uma casa, edificada num terreno só pertença da ré, onde pretendiam vir a viver em conjunto.

Gorados tais intentos, pretende reaver da ré aquelas quantias, com base na indemnização por benfeitorias, sendo este o único fundamento/enquadramento jurídico em que assenta a sua pretensão.

Não estamos, como acima já referido, perante matéria de conhecimento oficioso.

Pelo que, salvo o devido respeito, não podia a M.ma Juiz a quo “convolar” a apreciação jurídica do modo como o fez, na decisão recorrida, sem disso dar conhecimento às partes, para que, as mesmas, em respeito pelo disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, quanto a tal se pronunciassem.

De resto, a alteração em apreço, na prática, até se traduz numa alteração da causa de pedir, não consentida – cf. artigo 265.º, n.º 1, do CPC.

No entanto e no que ora se impõe decidir, temos de concluir que a sentença recorrida, nos termos expostos, viola o princípio do contraditório, pelo que sofre da invocada nulidade.

Como acima já referido, a omissão de prévia notificação às partes de que na sentença a proferir se tencionava conhecer de um fundamento ainda não discutido configura, pois, nos termos expostos, uma violação do princípio do contraditório, que se traduz, a nível processual, na nulidade prevista no artigo 195.º do NCPC, com evidente influência no desfecho da causa, o que acarreta a sua nulidade e dos actos subsequentes, cf. n.º 2, do preceito ora em referência.

O que levava a que fosse declarada a nulidade da sentença e se ordenasse a baixa dos autos para que as partes se pronunciassem acerca do diferente enquadramento jurídico que relevou para a decisão.

No entanto, aqui chegados, importa ter em linha de conta que se deve obstar à prática de actos inúteis.

Como resulta do teor das alegações e contra-alegações, tanto a ré, ora recorrente, como o autor, ora recorrido, se pronunciam sobre a solução jurídica que veio a ser defendida na sentença em recurso, defendendo, este, a manutenção da mesma, aderindo ao novo enquadramento jurídico vertido na sentença recorrida e pugnando a recorrente para que a decisão recorrida seja revogada, à luz dos fundamentos – de direito e de facto – invocados pelo autor ao longo dos autos.

Não sendo despiciendo referir que o próprio autor, prevenindo a hipótese de se vir a enquadrar a sua pretensão, à luz da figura das benfeitorias, defende, mesmo assim – como sempre o fez – a manutenção da decisão recorrida, agora, com base na fundamentação de direito e de facto que para tal invocou na petição inicial e petição corrigida.

Por isso, parece-nos que não obstante a nulidade de que padece a sentença recorrida, reúnem os autos todos os elementos para que se passe a conhecer do mérito do recurso, numa situação, ao que cremos, semelhante, à prevista no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, não se vislumbrando como necessário a baixa dos autos para as partes se pronunciarem acerca deste novo enquadramento jurídico, o que, como referido, já fizeram."

III. [Comentário] O acórdão suscita as seguintes observações:

-- A proibição das decisões-surpresa estabelecida no art. 3.º, n.º 3, CPC também vale quando o tribunal pretende conhecer de matéria de conhecimento oficioso ainda não discutida entre as partes (tal como se dispõe, por exemplo, no art. 101. Cpc(IT)); o acórdão não afirma o contrário, mas fundamenta a necessidade da audição prévia das partes na circunstância de a matéria de que o tribunal pretende conhecer não ser de conhecimento oficioso; desta afirmação não deve inferir-se, a contrario sensu, que a audição prévia das partes não é necessária se a  matéria for de conhecimento oficioso;

-- No acórdão considera-se que a alteração pretendida pelo tribunal de 1.ª instância, "na prática, até se traduz numa alteração da causa de pedir, não consentida – cf. artigo 265.º, n.º 1, do CPC"; esta afirmação deveria ter implicado uma análise aprofundada da RC, dado que a possibilidade de o tribunal sugerir ao autor a alteração da causa de pedir não tem sido admitida pela jurisprudência portuguesa; sendo assim, de duas uma: (i) ou a RC entende que o tribunal possui essa faculdade -- então devia ter justificado devidamente a afirmação; (ii) ou a RC entende que o tribunal não tem essa faculdade -- então o problema seria de exercício de um poder que o tribunal não possui e, portanto, de uma nulidade que não seria sanável através da audição prévia das partes;

-- No acórdão entende-se que a omissão da audição prévia das partes configura a nulidade estabelecida no art. 195.º CPC e que, em consequência, deve ser declarada a nulidade da sentença que conheceu da matéria sem essa audição; rectius, o que se verifica é a própria nulidade da sentença por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

MTS