"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/12/2017

Jurisprudência (741)


Matéria de facto; dupla conforme;
acto inútil


1. O sumário de STJ 17/5/2017 (4111/13.4TBBRG.G1.S1) é o seguinte: 

I - A limitação recursória resultante da dupla conformidade de decisões, consagrada no art. 671.º, n.º 3, do CPC, não abarca o segmento do acórdão recorrido respeitante à impugnação da matéria de facto já que sobre tal matéria existe uma única decisão, a proferida pela Relação.

II - A questão de saber se a Relação actuou dentro do quadro legal aplicável ao decidir não tomar conhecimento do recurso de apelação na parte atinente à impugnação da decisão fáctica é uma questão de direito que cabe no âmbito dos poderes do STJ – o que lhe está vedado é sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto (arts. 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, e 662.º, n.º 4, 674.º, n.os 1 e 3, e 682.º, n.os1 e 2, do CPC).

III - O princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo.

IV - Nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.

V - O poder de dar de arrendamento, que pode compreender a possibilidade de subarrendar, está contido no âmbito do direito de propriedade, dele não derivando a responsabilização directa, sem mais, do proprietário pelos actos eventualmente lesivos dos direitos dos demais condóminos praticados pelo arrendatário ou pelo subarrendatário (arts. 1305.º e 486.º do CC).

VI - Alicerçando os autores a responsabilidade dos réus, exclusivamente, no facto de os mesmos, enquanto proprietários de uma fracção autónoma, não terem intentado uma acção com vista à resolução de um contrato de arrendamento e subsequente despejo da subarrendatária (sem que tal omissão seja, por si só, susceptível de ser qualificada como ilícita à luz da acepção que dimana do art. 483.º, n.º 1, do CC), a apreciação da matéria de facto, impugnada pelos autores, em sede de apelação – toda ela relacionada com factos ilícitos que apenas àquela subarrendatária poderiam ser imputados, sem que esta tenha sido demandada na acção – consubstanciaria a prática de um acto inútil.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Balizado o objecto do recurso pela síntese conclusiva da alegação dos autores, recorrentes (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil), salvo questão de conhecimento oficioso, importa, essencialmente, apurar se o Tribunal da Relação estava, no caso vertente, vinculado à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto suscitada no recurso de apelação interposto pelos autores.

Emerge dos autos que o segmento decisório da sentença proferida na 1ª instância, sobre o qual recaiu a discordância dos autores, ora recorrentes, foi integralmente confirmado pela Relação, tendo este Tribunal de recurso proferido acórdão, sem voto de vencido, com base em fundamentação totalmente convergente.

Não obstante, cumpre salientar que o recurso de revista é admissível, uma vez que a limitação recursória resultante da dupla conformidade de decisões, consagrada no artigo 671º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não abarca o segmento decisório do acórdão recorrido respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Na verdade, não se verifica, nem pode verificar-se, neste particular, a chamada «dupla conforme», por sobre tal matéria existir uma única decisão, a proferida pelo Tribunal da Relação.

Feita esta breve nota e concluindo-se pela admissibilidade da revista, cumpre apreciar se a Relação actuou dentro do quadro legal aplicável ao decidir não tomar conhecimento do recurso de apelação na parte atinente à impugnação da decisão fáctica, questão de direito que cabe no âmbito dos poderes de cognoscibilidade deste Supremo Tribunal, à luz do disposto no artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e nos artigos 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Com efeito, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, mas já lhe é consentido verificar se a Relação agiu dentro dos limites traçados pela lei processual no exercício desses poderes.

No caso em apreço, os autores insurgiram-se no recurso de apelação contra a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª instância, concretamente, contra os pontos 19, 21 e 24 da facticidade provada, que pretendiam que fossem julgados não provados, e contra todos os pontos da matéria de facto não provada (pontos 1 a 35) os quais, em seu entender, deveriam ter sido julgados provados em face da prova testemunhal produzida por si indicada.

O Tribunal da Relação não apreciou esta questão, considerando revelar-se de todo inútil a reapreciação da matéria de facto, dado que, ainda que demonstrada, não permitira alcançar o desiderato dos recorrentes, ou seja, a procedência total da acção com a condenação dos réus nos pedidos contra si formulados.

Para fundamentar este entendimento, consignou-se, além do mais, no acórdão recorrido o seguinte:

«A ilicitude dos factos e dos comportamentos descritos pelos AA é imputável apenas, directa e exclusivamente, à subarrendatária JJ, que viola, com a sua alegada conduta, os direitos de propriedade e de personalidade dos AA, causando-lhes danos, que descrevem e quantificam.

Por isso, deveria ser contra a subarrendatária – não enquanto tal – mas como autora dos factos descritos e causadora dos prejuízos alegadamente por eles sofridos, que os AA deveriam reagir directamente, já que, à luz do que vem por eles alegado, é ela a autora do facto ilícito, culposo e causador de danos, sendo sobre ela que recai o dever de indemnizar.

Aos RR, enquanto proprietários da fracção e arrendatários da mesma, nenhuma conduta ilícita lhes é assacada pelos AA., a não ser o alegado dever de procederem contra a subarrendatária, movendo-lhe a respectiva acção de despejo. (…)

Ora, à luz do que se preconiza, fácil é concluir que a matéria de facto impugnada pelos recorrentes – toda ela relacionada com aqueles factos ilícitos – se mostra irrelevante para a decisão da causa, por se mostrar de todo incapaz de alcançar a pretensão jurídica por eles almejada.

Assim sendo, a apreciação daquela matéria de facto por este tribunal redundaria numa actividade judicial despicienda e de todo irrelevante.

Ora, em obediência ao princípio da limitação dos actos, e porque não é lícito realizarem-se no processo actos inúteis (artº 130º do CPC), também em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, hão-de os concretos pontos de facto impugnados poderem - segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito suscitadas - contribuir para a boa decisão da causa,
maxime a solicitada modificação há-de minimamente relevar para a pretendida alteração do julgado.

Não se antevendo tal alteração, não haverá necessidade de proceder a uma actividade desnecessária, e, consequentemente, apreciar a matéria de facto impugnada - mesmo que ao tribunal de recurso incumba também apreciar todas as questões que lhe sejam colocadas pelos recorrentes (artº 608º,nº 2 e 663º,nº 2, ambos do CPC).

Em suma, as questões fáticas suscitadas devem estar numa relação directa com aquilo que se pretende obter com o provimento do recurso; tudo o que seja espúrio e desnecessário ao efeito pretendido não pode, nem deve, ser apreciado
».

Vejamos.

Definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág.11), cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos ou produzir actos inúteis.

O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.

Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.

Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.

Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.

Convergiram as instâncias no entendimento de que, para além do reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre as fracções autónomas do prédio de que faz parte a fracção pertencente aos réus, dada de arrendamento à KK-Empresa Municipal de Habitação de B…, E.M., e por esta subarrendada a JJ, nenhum dos demais pedidos formulados poderia proceder por falta de verificação de ilicitude na conduta imputada aos réus, requisito indispensável no domínio da responsabilidade aquiliana (artigo 483º do Código Civil).

Escreveu-se, concretamente, no acórdão recorrido que «A ilicitude dos factos e dos comportamentos descritos pelos AA é imputável apenas, directa e exclusivamente, à subarrendatária JJ, que viola, com a sua alegada conduta, os direitos de propriedade e de personalidade dos AA, causando-lhes danos, que descrevem e quantificam», sendo que, relativamente «Aos RR, enquanto proprietários da fracção e arrendatários da mesma, nenhuma conduta ilícita lhes é assacada pelos AA., a não ser o alegado dever de procederem contra a subarrendatária, movendo-lhe a respectiva acção de despejo».

Este entendimento não suscita qualquer reparo.

Efectivamente, os autores alicerçaram a responsabilidade dos réus, exclusivamente, no facto de os mesmos não terem intentado uma acção com vista à resolução do contrato e subsequente despejo da subarrendatária, o que faria cessar a conduta desta subarrendatária e dos demais ocupantes do locado lesiva dos seus direitos quer patrimoniais, quer de personalidade.

Não lhes imputam qualquer outro comportamento coadjuvante, sendo que, no contexto factual desenhado pelos autores, aquela omissão, só por si, não é susceptível de qualificar-se como acto ilícito, entendido este na acepção que dimana do nº 1 do artigo 483º do Código Civil, porquanto não configura violação de comando legal destinado a proteger interesses alheios, nem consubstancia violação de direito de outrem. [...]

Em suma, com base na causa de pedir apresentada pelos autores, integrada pelos factos julgados provados e não provados, a pretensão dos autores não pode triunfar, pelo que bem decidiu a Relação ao entender que a apreciação da impugnação da decisão fáctica consubstanciaria, no caso vertente, a prática de um acto inútil."


[MTS]