"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/12/2017

Jurisprudência (747)


Agente de execução; decisões; vinculatividade
deserção da instância


1. O sumário de RC 27/6/2017 (522/05.7TBAGN.C1) é o seguinte: 

I - As decisões tomadas pelos agentes de execução que não forem objeto de oportuna reclamação ou impugnação das partes ou por terceiros intervenientes na ação executiva (à luz do disposto nas als. c) e d) do nº. 1 do artº. 723º do CPC) estabilizam-se/consolidam-se definitivamente (como efeito vinculativo semelhante ao trânsito em julgado de uma decisão judicial).

II - E nessa medida não podem ser contrariadas por qualquer subsequente intervenção (processual) oficiosa do juiz de execução.

III - Decorre do texto do artº. 281º, nº. 5, do CPC, que são pressupostos para que a deserção da instância executiva possa ser declarada:

a) Que o processo se encontre parado, a aguardar impulso processual das partes, há mais de 6 (seis) meses;

b) E que essa paragem do processo, por falta de impulso processual, se fique a dever à negligência das partes.

IV - Em face do segundo pressuposto legal, a declaração de deserção da instância não pode ser automática, logo que decorridos os seis meses de paragem do processo, pois que se impõe previamente à prolação do despacho que o tribunal aprecie e valore o comportamento processual das partes, por forma a concluir se a referida paragem de processo, por falta de impulso processual, é ou não devida à negligência daquelas.

V - Nessa medida, num juízo prudencial, e também em obediência ao dever de observância do princípio do contraditório plasmado no artº. 3º, nº. 3, do CPC, impõe-se ao tribunal que, previamente, dê oportunidade às partes de se pronunciarem a esse respeito.

VI - Não o fazendo, o tribunal incorre em nulidade processual, geradora, na conjugação dos artºs. 3º, nº. 3, e 195º, nºs. 1 e 2, da nulidade do despacho que vier a ser proferido.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Estipula-se no artigo 719º, nº. 1 (sob a epigrafe “Repartição de competências”) do CPC – diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionemos somente o normativo sem a indicação da sua fonte - que “Cabe ao agente de execução efectuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz (...).”

Decorre daí que a intervenção do AE no processo executivo é subsidiária, em relação à secretaria e ao juiz, constituindo ainda entendimento prevalecente (decorrente do seu Estatuto, aprovado pela Lei nº. 154/2015, de 19/9, e do demais direito positivo) que a relação entre o juiz e o agente de execução não se pauta por uma relação hierárquica do segundo para com o primeiro, inexistindo da parte deste um poder geral de controlo sobre a atuação do segundo, que não se confunde com o controle jurisdicional previsto no artº. 723º.

Estipula-se neste no número 1 deste último normativo que “sem prejuízo de outras intervenções que a lei especificamente lhe atribui, compete ao juiz:

a) Proferir despacho liminar, quando deva ter lugar;

b) Julgar a oposição à execução, e penhora, bem como verificar a graduar em os créditos, no prazo máximo de três messes contados da oposição ou reclamação;

c) Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de atos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias;

d) Decidir outras questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes, no prazo de cinco dias.
  [...]

Daí resulta (als. c) e d) do nº. 1 citado artº. 723º) que as partes ou outros terceiros intervenientes, que com eles se sintam afetados, podem reclamar dos atos ou impugnar as decisões dos agentes de execução (no prazo de 10 dias a contar da sua notificação ou conhecimento – artº. 149º, nº. 1).

E se o não fizerem, qual o efeito do ato ou decisão proferida pelo AE?

Abordando esta temática (em excelente artigo publicado no Blog do Instituto Português do Processo Civil – coordenado pelo prof. Miguel Teixeira de Sousa -, sobre o título “O Caso estabilizado dos atos e decisões dos agentes de execução (Contributos para uma teoria geral dos atos e das decisões do agente de execução”)), J. H. Delgado de Carvalho, escreve a dado passo (págs. 8 e 9) “(…) Defendemos, por isso, que a melhor designação para os atos ou decisões do agente de execução consolidados por inimpugnabilidade, tendo em conta as particularidades da sua força ou eficácia vinculativa, é a de caso estabilizado, dando, assim, relevo ao efeito decorrente da sua definitividade. Noutras palavras, os atos e as decisões do agente de execução tornam‐se definitivas sempre que, depois de notificadas às partes, estas não reclamarem do ato ou da decisão perante o juiz, nos termos do art. 723.º, n.º 1, als. c) ou d), do nCPC. Disto decorre que, se o ato ou a decisão daquele agente não for objeto de reclamação pelas partes, o ato ou a decisão torna‐se incontestável e inalterável, dado que deixa de ser atacável por iniciativa de qualquer das partes; pode falar‐se a este propósito num efeito semelhante ao trânsito em julgado da decisão judicial, ou seja, esse ato ou decisão torna‐se, em princípio, imodificável.

Por seu turno, o juiz de execução não pode impor oficiosamente ao agente de execução, depois de este ter praticado um ato ou tomado uma decisão no processo, uma diferente apreciação da mesma questão. A esta solução se opõe, naturalmente, o caso estabilizado formado pelo ato ou decisão do agente de execução. Com efeito, decorre do que acima se argumentou acerca do quadro de legitimação do exercício dos poderes do juiz no processo executivo que este não pode determinar oficiosamente a revogação (anulatória) de um ato praticado ou de uma decisão tomada pelo agente de execução, substituindo‐os por uma diferente tramitação ou solução – seja na área da atuação discricionária desse agente, seja em matéria vinculada –, a não ser mediante reclamação das partes (cf. art. 723.º, n.º 1, als. c) e d), do nCPC) ou nos casos em que especificamente a lei autoriza a intervenção fiscalizadora ex officio do juiz, como sucede no domínio dos pressupostos processuais e das nulidades de processo.

Note‐se que tão‐pouco o art. 6.º, n.º 1, do nCPC habilita o juiz de execução a revogar ou a declarar nulas ex officio as decisões do agente de execução, mesmo no domínio do procedimento. Quer dizer: o art. 6.º, n.º 1, do nCPC não pode ser visto como uma norma habilitante que permite ao juiz de execução anular ou corrigir oficiosamente um ato ou uma decisão tomada pelo agente de execução que entretanto se tenha estabilizado, sem que se deva considerar essa iniciativa oficiosa nula nos termos do art. 195.º, n.º 1, do nCPC.

Com efeito, os poderes de gestão processual do juiz não podem sobrepor-se às decisões definitivas do agente de execução, porque isso colide com o caso estabilizado.” Prosseguindo depois (pág. 13) “(…) O ónus de impugnação dos atos e decisões do agente de execução encontra a sua justificação na necessidade de garantir a segurança e certeza jurídicas, a tutela dos direitos das partes e terceiros intervenientes, bem como o prestígio do sistema de justiça”.
 E no final remata com as seguintes conclusões (págs. 25/26/28):

“ (…) a) Uma vez que é inadmissível, face ao direito positivo, um poder geral de controlo do juiz de execução exercido sobre a atuação do agente de execução ex post, há que entender que o esgotamento do poder de decisão do agente de execução, quanto à questão por si decidida, impede que o juiz de execução tenha uma intervenção oficiosa no sentido de contrariar o ato praticado ou a decisão tomada por aquele agente, salvo nos casos em que a lei especificamente autorizar o juiz a decidir de forma distinta.

Sendo assim, há que concluir que o ato praticado e a decisão tomada pelo agente de execução, embora com algumas particularidades, gozam das mesmas características do caso julgado, nomeadamente a incontestabilidade e a consolidação num processo pendente, quando deixa de ser impugnável, e a intangibilidade, dado que não pode ser revogada, suspensa ou substituída.

Devido a estas características, o caso estabilizado do agente de execução, mesmo não constituindo caso julgado em sentido estrito – por não constar de uma decisão judicial – é, no entanto, a ele equiparado, havendo que aplicar, por analogia, o regime previsto para a eficácia vinculativa da sentença (cf. arts. 613.º, 614.º, 619.º, 620.º, 621.º, 625.º e 628.º do nCPC), nomeadamente o princípio do esgotamento da competência decisória do agente de execução e a correção de erros materiais.

Noutras palavras, o ato e a decisão do agente de execução tornam‐se definitivos sempre que, depois de notificada às partes, estas não reclamem do ato ou não impugnem essa decisão perante o juiz, nos termos do art. 723.º, n.º 1, als. c) ou d), do nCPC. Disto decorre que, se o ato ou a decisão daquele agente não for objeto de reclamação ou de impugnação pelas partes, o ato praticado e a decisão tomada tornam‐se incontestáveis e inalteráveis, dado que se tornam inatacáveis por iniciativa de qualquer das partes; pode falar‐se a este propósito de um efeito vinculativo semelhante ao trânsito em julgado da decisão judicial.

Por seu turno, o juiz de execução não pode impor ao agente de execução, depois de este ter praticado um ato ou tomado uma decisão no processo, uma diferente apreciação da mesma questão. A esta solução se opõe, naturalmente, o caso estabilizado formado pelo ato ou decisão anterior do agente de execução. Com efeito, decorre do que acima se argumentou quanto ao quadro de legitimação do exercício dos poderes do juiz no processo executivo, que este não pode determinar oficiosamente a revogação (anulatória) de um ato praticado ou de uma decisão tomada pelo agente de execução, substituindo‐a por uma diferente tramitação ou solução – seja na área da atuação discricionária desse agente, seja em matéria vinculada –, a não ser mediante reclamação das partes (cf. art. 723.º, n.º 1, als. c) e d), do nCPC) ou nos casos em que especificamente a lei autoriza a intervenção fiscalizadora do juiz.

Note‐se que tão‐pouco o art. 6.º, n.º 1 do nCPC habilita o juiz de execução a revogar ex officio as decisões do agente de execução, mesmo no domínio dos atos de procedimento. Quer dizer: o art. 6.º, n.º 1, do nCPC não pode ser visto como uma norma habilitante que permite ao juiz de execução anular ou corrigir oficiosamente um ato realizado ou uma decisão tomada pelo agente de execução que se tenha tornado inimpugnável, devendo considerar‐se essa iniciativa oficiosa nula nos termos do art. 195.º, n.º 1, do nCPC. Os poderes de gestão processual do juiz não podem sobrepor‐se aos atos e às decisões definitivas do agente de execução, porque isso colide com a estabilização dos efeitos dessas decisões.

Considerando as premissas supra expostas, cumpre concluir que o ato praticado e a decisão tomada pelo agente de execução se tornam incontestáveis – e, por isso, não passível de substituição – depois de não serem suscetíveis de reclamação ou de impugnação.

Ressalva‐se, contudo, a possibilidade de o agente de execução, nas hipóteses em que se verifiquem nulidades processuais secundárias (cf. art. 195.º, n.º 1, do nCPC), sanar o vício de procedimento, praticando o ato omitido ou corrigindo o ato praticado com a observância das formalidades preteridas, mesmo que o ato realizado já haja sido notificado às partes. Para tanto, deve aplicar‐se ao agente de execução o disposto no n.º 2 do art. 199.º do nCPC, nos mesmos termos em que é aplicável ao juiz. Esta disposição legal habilita o agente de execução a suprir a irregularidade cometida sem depender de despacho judicial. (…).


Aqui chegados, revertendo tais ensinamentos (com os quais estamos em sintonia) para o caso sub judice, encontraremos a resposta para questão acima colocada.

O despacho da sra. AE, referido no ponto 8 do Relatório, que declarou a extinção da instância executiva, isto é, a execução (com o fundamento de não serem conhecidos mais bens aos executados e na adjudicação à exequente da pensão da executada M... – adjudicação essa, quer através da entrega das prestações vencidas, quer da adjudicação das vincendas, que, em boa verdade, já havia antes ocorrido na sequência despacho referido no ponto 4 do Relatório, por si proferido em 20/04/2016), foi proferido no âmbito das suas específicas atribuições legais de competência, tal como decorre da leitura do artº. 779º, nºs 1, 3 al. b) e, sobretudo, 4 al. b) (diga-se que no caso nenhuma oposição foi deduzida pelos executados que à execução, quer à penhora).

Na verdade, nos termos do nº. 4 do citado artº. 779º - sob a epígrafe «penhora de rendas, abonos, vencimento e salários» -, “findo o prazo de oposição, se esta tiver sido deduzida, ou julgada a oposição improcedente, caso não sejam identificados outros bens penhoráveis, o agente de execução, depois de assegurado o pagamento das quantias que lhe sejam devidas a título de honorários e despesas: a) entrega ao exequente as quantias já depositadas que não garantam crédito reclamado; e b) adjudica as quantias vincendas, notificando as entidades pagadoras para as entregarem diretamente ao exequente, extinguindo-se a execução” (sublinhado nosso). Diga-se que esse caso previsto no artº. 779º, nº. 4, al. b), figura expressamente entre as causas de extinção da execução (cfr. artº. 849º, nº. 1 al. d)).

Despacho decisório esse (e em conjugação com aquele outro referido no ponto 4 do relatório, que adjudicou expressamente à exequente as prestações vincendas penhoradas à aludida executada) que ao não ter sido objecto de reclamação ou impugnação por qualquer das partes (vg. da referida executada), estabilizou-se/consolidou-se definitivamente, ou seja, tonou-se definitivo (incontestável e inalterável) como com o efeito vinculativo semelhante ao trânsito em julgado de uma decisão judicial (tudo se passando como se gozasse das características de força de caso julgado, a ele se equiparando, pois que não constitui decisão judicial).

E nessa medida não pode ser contrariado por qualquer intervenção (processual) oficiosa do juiz de execução.

Despacho esse que, assim, prevalece sobre aquele subsequente proferido (e aqui sob recurso) pela sra. juíza de execução (o que ocorre, em última análise, por aplicação analógica do disposto no artº. 625º).

Poderia ainda colocar-se a questão do facto de esse último despacho da sra. AE (que não aquele outro proferido em 20/04/2016, que procedeu à entrega das penhoradas prestações das pensões vencidas e à adjudicação da vincendas à exequente) ter si proferido numa altura em que a instância se encontrava suspensa (cfr. ponto 6 do relatório), sendo que nos termos do estatuído, durante esse período só poderiam ser praticados validamente atos urgentes destinados a evitar o dano irreparável (o que não sucedeu no caso).

Mesmo assim, os efeitos do despacho consolidado/estabilizado definitivamente ficam, intraprocessualmente, a coberto de qualquer ilegalidade/invalidade de que possa padecer (ao não ter oportunamente sido objeto de qualquer reclamação/impugnação ou de oportuna arguição de nulidade), sendo que, como vimos, está vedada, no caso, qualquer intervenção ex officio da sra. juíza de execução no sentido da reparação ou substituição do despacho (vide, ainda a propósito, o citado autor in “Ob. cit., págs. 9 e 19/21”).

Termos, pois, que, impondo-se ou prevalecendo o referido despacho da sra. AE ao subsequente despacho sob recurso proferido pela sra. juíza de execução, este não possa subsistir, e daí que tenha que ser revogado, como se revoga."


[MTS]