"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/12/2017

Jurisprudência (757)


Caso julgado material;
requisitos


1. O sumário de STJ 6/7/2017 (121/11.4TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

I - Sendo as conclusões da revista uma mera repetição das conclusões da apelação, existe motivo para não conhecer o respectivo objecto (al. b) do n.º 2 do art. 641.º do CPC).

II - Só a falta absoluta de motivação – e não a sua imperfeição ou incompletude – constitui fundamento para a nulidade a que se refere art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.

III - Existe caso julgado material entre uma acção de impugnação pauliana na qual, no desenvolvimento do que fora peticionado, se concluiu que a ré e a adquirente eram, nos termos do art. 616.º, n.º 2, do CC, responsáveis pelo prejuízo decorrente da diminuição da garantia patrimonial da recorrente e uma outra acção por esta proposta com vista a responsabilizar aquela ré e o seu gerente pelo prejuízo decorrente da impossibilidade de executar o imóvel por esta alienado nos termos do mesmo preceito.
 
2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"AA, S.A.. intentou, em 19.01.2011, nas então Varas Cíveis de …, acção declarativa ordinária contra BB - Compra e Venda de Imóveis, Lda. e contra CC, pedindo que, na procedência da acção:

1 - seja a 1ª Ré condenada, por verificação de responsabilidade civil por facto ilícito, a pagar-lhe o montante do seu crédito sobre DD e EE, no valor de € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) a título de dívida de capital, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos [...].

Os R.R. contestaram, arguindo a incompetência territorial do tribunal, negando a dívida invocada pela A. e requerendo a suspensão do processo, por prejudicialidade, enquanto não se conhecesse o desfecho da acção de impugnação pauliana [...] e, bem assim, a decisão final na oposição à execução deduzida pelos executados na execução acima também mencionada. [...]

Foi proferido despacho no qual se julgou improcedente a excepção de incompetência territorial, se negou a invocada relação de prejudicialidade entre esta acção e a mencionada execução, mas se considerou que tal nexo de prejudicialidade ocorria entre a presente acção e a supra referida acção de impugnação pauliana, tendo-se, por via disso, declarado suspensa a instância até que se mostrasse decidida, com trânsito em julgado, a mencionada acção de impugnação pauliana (processo n.º 314/07.9TBALR, pendente no Tribunal Judicial de …).

Junta certidão da sentença proferida na mencionada acção de impugnação pauliana, datada de 14.3.2014 e transitada em julgado em 24.4.2014, o tribunal de 1ª instância, em 03.11.2015, proferiu decisão em que, considerando que a aludida sentença proferida pelo Tribunal Judicial de … havia feito desaparecer o fundamento, a razão de ser, da presente acção, julgou esta improcedente e absolveu os réus do pedido.

Inconformada, a Autora apelou para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 29.9.2016, decidiu julgar a apelação parcialmente procedente e consequentemente:

«a) Absolver a 1.ª Ré (“BB”) da instância, em virtude da superveniência de caso julgado; e

b) Determinar o prosseguimento do processo quanto ao 2.º Réu, CC».

De novo inconformada, a Autora interpôs revista para este Supremo Tribunal [...]
 
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
 
*
Fundamentação

I - De Facto:

Mostra-se provada documentalmente, com relevo para a decisão do recurso, a seguinte factualidade:

1 - A aqui autora intentou no Tribunal Judicial da Comarca de …, contra DD, EE, BB - Compra e Venda de Imóveis, Lda, e contra GG - Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., acção de impugnação pauliana, à qual foi atribuído o nº 314/07.9TBALR, e em que pediu fosse julgada procedente, por provada, e, em consequência, declarada a ineficácia, em relação à A., dos negócios de compra e venda titulados pelas escrituras públicas outorgadas em 27-12-2006, com as consequências previstas nos artigos 616.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 617º do C. Civil; [...]
 
4 - No referido proc. nº 314/07.9TBALR, do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi proferida sentença, no dia 14 de Março de 2014, certificada a fls. 1341-1362, transitada em julgado a 24 de Abril de 2014, cuja parte dispositiva é do seguinte teor: «Com os fundamentos expostos, julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente ação e, consequentemente, absolvendo do demais peticionado os réus DD, EE, BB - Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal, L.da e GG - Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., declara-se a impugnabilidade da compra e venda - do prédio registado na Conservatória do Registo Predial de B… sob o nº 04… da freguesia de B… - outorgada em 27 de Dezembro de 2006, pelos réus DD e EE, enquanto alienantes e a ré BB - Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal, L.da enquanto adquirente, e a sua consequente ineficácia relativamente à autora Petróleos de Portugal – AA, SA, com vista à cobrança do crédito da mesma sobre os alienantes, que em 30/10/2006 ascendia ao montante global de 5.037.704,00€ (cinco milhões trinta e sete mil setecentos e quatro euros), condenando-se a ré BB - Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal, L.da, no pagamento à autora de indemnização correspondente ao valor do referido prédio – 5.893.134,00 (cinco milhões oitocentos e noventa e três mil cento e trinta e quatro euros) – até ao montante global do referido crédito».

*

II - De Direito

Os recursos constituem, como é sabido, um instrumento processual destinado à reapreciação por um tribunal superior de questões concretas, de facto ou de direito, que a parte entenda mal decididas pelo tribunal recorrido. E o seu objecto é delimitado pelas conclusões da alegação respectiva, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

No caso, rigorosamente, a recorrente não apresenta alegação e conclusões respectivas, já que, terminando embora a peça que de tal apelida com o que rotula de “conclusões”, não enuncia nestas, porém, quaisquer razões de facto e ou de direito que mostrem merecer censura o acórdão recorrido, uma vez que se limita a reproduzir, com uma ou outra alteração de pormenor, as conclusões em que estribara o recurso de apelação.

Efectivamente, não foi o Tribunal da Relação que concluiu que a acção de impugnação pauliana decidida pelo tribunal de … constituía causa prejudicial relativamente à presente acção, e que a sua procedência tinha feito desaparecer o fundamento ou a razão de ser desta, julgando-a improcedente, com a absolvição de ambos os R.R. do pedido: o tribunal que assim julgou foi antes o tribunal de 1ª instância.

A Relação de Lisboa o que disse, no acórdão que constitui fls…, foi: «Pensamos, divergindo parcialmente da decisão recorrida, que a relação entre a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de … e o litígio objeto destes autos se traduz em caso julgado parcial. Ou seja, a pretensão formalizada pela A., nesta ação que foi instaurada perante as Varas Cíveis de …, foi definitivamente apreciada pelo Tribunal Judicial de … no que diz respeito à relação entre a ora A. e a R. BB. Existe, quanto a estas partes, caso julgado, na medida em que há equivalência, não só quanto a elas enquanto sujeitos processuais nas duas ações, mas também quanto à causa de pedir e ao pedido (artigos 580.º e 581.º do Código Civil). O caso julgado não determina a absolvição do pedido, mas a absolvição da instância da parte afetada, no processo pendente (artigos 576.º n.º 2 e 577.º alínea i))».Tendo, com esse fundamento, absolvido a Ré BB da instância.

Tal facto constituiria motivo suficiente para não se conhecer do objecto da revista ( artº 641º nº 2 al. b) do C. P. Civil ).

Não obstante, sempre diremos que não se antolha razão para a alteração do acórdão recorrido no sentido pretendido pela recorrente, isto é, no sentido do prosseguimento do processo quanto à dita Ré BB.

Com efeito, o caso julgado pode ser de natureza formal, se relativo a questões de mero carácter processual; ou material, se referente à relação material ou substancial objecto do processo.

E enquanto o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo ou fora dele, visando evitar que o tribunal seja colocado na contingência de contradizer ou de reproduzir uma anterior decisão de fundo transitada em julgado (vide n.º 2 do art.º 580º do C. P. Civil); o caso julgado formal, por seu turno, tem força obrigatória apenas dentro do processo respectivo, não obstando, por isso, a que noutra acção a mesma questão processual concreta possa ser apreciada e decidida em termos diferentes pelo mesmo ou por outro tribunal.

O caso julgado material pressupõe, assim, a repetição de uma causa depois da primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.

E há repetição, de acordo com a lei, quando se propõe uma causa idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art.º 581º nº 1 do C. P. Civil).

A identidade de sujeitos ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; a identidade de pedido, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico; e identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico – vide o citado art.º 581º do Código de Processo Civil.

No caso, para além da aqui Autora e Ré BB serem igualmente partes naquela supramencionada acção de …, é também idêntica a causa de pedir e o pedido em ambas, pois que, como se assinala no acórdão recorrido, a A., pretendia através da acção de impugnação pauliana, que dirigiu nomeadamente contra a dita BB, «que o imóvel que antes da primeira venda impugnada integrava o património dos seus devedores, DD e EE, e que entretanto fora ( por aquela) revendido a um terceiro, fosse à mesma executado até ao necessário para satisfação do crédito da A. sobre esses dois Réus (art.º 616.º n.º 1 do CC), respondendo os adquirentes de má fé pelo valor do imóvel que tivessem alienado e que já não fosse possível atingir (n.º 2 do art.º 616.º). Sendo que na «pendência da referida ação de impugnação pauliana a A. intentou a presente ação, contra a BB e o seu sócio e gerente, CC, na qual, na previsão de que em virtude da boa fé da adquirente GG a A. não lograria executar o aludido imóvel, pretendia responsabilizar estes dois R.R. pelo prejuízo resultante da perda dessa garantia patrimonial, até ao valor desse bem, nos termos do art.º 616.º n.º 2 do Código Civil», e o tribunal julgou a impugnação parcialmente procedente, «ou seja, considerou que se verificavam todos os requisitos da impugnação pauliana no que respeitava aos devedores (DD e EE) e à primeira adquirente (BB), mas entendeu que não se provara a má-fé por parte da subadquirente do imóvel, a R. GG. Assim, o Tribunal de … não autorizou a sujeição à execução, para satisfação do crédito da AA, do aludido imóvel (uma vez que este ingressara na esfera jurídica de quem estava de boa-fé, a GG), mas, afinal no desenvolvimento do que fora peticionado e ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 616.º do Código Civil, considerou a adquirente e Ré BB responsável pelo prejuízo da A. decorrente da referida diminuição de garantia patrimonial, correspondente ao valor do bem transacionado, e consequentemente condenou a Ré BB no pagamento à A. AA de indemnização correspondente ao valor do referido prédio - € 5 893 134,00 – até ao montante global do crédito da A. perante os RR. alienantes, DD e EE».

Por isso, o prosseguimento da presente acção contra a Ré BB, como pretende a recorrente, chocaria com o disposto no n.º 2 do citado artº 580º do C. P. Civil, pois conduziria à possibilidade de contradição ou repetição da decisão de mérito proferida, com trânsito em julgado, na aludida acção do tribunal de ….

Daí que, a vinculação do tribunal da presente acção ao caso julgado da decisão transitada em julgado proferida naquela mencionada acção nº 314/07.9TBALR, do Tribunal Judicial da Comarca de …, obrigue a que o mesmo se abstenha de conhecer do mérito da presente acção, pelo menos no que à Ré BB concerne, como se concluiu e decidiu no acórdão recorrido."
 
3. [Comentário] a) O acórdão não suscita nenhumas objecções, dado que o tribunal de 1.ª instância tinha condenado na anterior acção que é qualificada como sendo uma acção de impugnação pauliana a primeira demandada BB "no pagamento à autora de indemnização correspondente ao valor do referido prédio – 5.893.134,00 (cinco milhões oitocentos e noventa e três mil cento e trinta e quatro euros) – até ao montante global do referido crédito". Na falta de elementos, pode imaginar-se que tal tenha sucedido em consequência de nessa acção ter ocorrido uma cumulação de pedidos: nesta acção teria sido formulado o pedido de condenação de BB a pagar à autora uma certa quantia e ainda o pedido de impugnação pauliana de uma alienação realizada pela mesma BB a um terceiro.
 
Se assim sucedeu, então o que o tribunal de 1.ª instância da presente (segunda) acção deveria ter feito era ter considerado que, na parte respeitante ao pedido de condenação de BB no pagamento de uma certa quantia, se verificava a excepção de litispendência (cf. art. 580.º, n.º 1, 581.º e 577.º, al. i), CPC). Uma situação de prejudicialidade entre uma (primeira) acção de impugnação pauliana e uma (posterior) acção condenatória no pagamento de uma quantia é que não é imaginável: a relação de prejudicialidade que pode haver entre estas acções é, naturalmente, entre a acção de condenação e a acção de impugnação pauliana, não no sentido inverso.
 
b) Quanto à matéria constante do ponto I do sumário do acórdão, importa precisar que, segundo se depreende, o STJ considerou que as conclusões das alegações apresentadas no recurso de revista eram apropriadas ao que o tribunal de 1.ª instância tinha decidido, mas não ao que a Relação tinha decidido. Foi nesta base que o STJ considerou que a repetição das conclusões constituía motivo para o não conhecimento do mérito da revista segundo o disposto no art. 641.º, n.º 2, al. b), CPC.
 
Como é claro, se as decisões do tribunal de 1.ª instância e da Relação forem idênticas, nada pode obstar à repetição das conclusões da apelação na posterior revista. 
 
MTS