Decisão do TEDH;
recurso de revisão; inadmissibilidade
1. O sumário de STJ 4/7/2017 (5817/07.2TBOER.L1.S1) é o seguinte:
I - Sendo titulares dos interesses contrapostos, o particular ou entidade nacionais interessados de um Estado-membro da CEDH, parte vencida num processo que correu termos pelos seus tribunais, por um lado, e o estado, alegadamente, violador da Convenção, por outro, não importa, de acordo com a tramitação própria do mecanismo do direito de queixa, fazer intervir a outra parte na ação onde foi proferida a decisão revidenda, sem prejuízo de a mesma poder atuar, exercendo o direito ao contraditório, no recurso de revisão, em defesa dos seus interesses, prevenindo um eventual exercício do direito de sub-rogação do Estado infrator contra a mesma.
II - O reexame do caso judicial suscitado no recurso de revisão, interposto, tão-só, por um dos réus, não é atentatório do princípio constitucional da intangibilidade do caso julgado, relativamente ao outro, a quem não é oponível, por se tratar do caso julgado «secundum eventum litis», em que se conjugam os institutos da legitimidade processual com o do caso julgado e a oponibilidade deste em relação a terceiros.
III - O conceito de decisão definitiva promovido pelo TEDH não contende com uma eventual omissão da defesa, pelo Estado português, ao conformar-se com a decisão proferida pela mesma entidade jurisdicional, não requerendo a devolução do caso ao Tribunal Pleno, inexistindo, assim, uma situação de paralelismo com o conhecimento pelo TEDH do mecanismo de queixa acionado pelos particulares ofendidos, que depende do esgotamento de todas as vias de recurso internas.
IV - Não sendo o TEDH uma instância internacional de recurso, entendida como um tribunal, hierarquicamente, superior aos tribunais nacionais, com a finalidade de anular, modificar ou revogar atos jurídicos de direito interno, com base em erro de julgamento ou de procedimento, é, porém, uma entidade internacional vinculativa para o Estado Português, que tem obrigação de cumprir os acórdãos proferidos pelo mesmo, embora faculte ao Estado a escolha dos meios a utilizar para cumprir a obrigação que decorre do artigo 46.º, n.º 1, da CEDH, ou seja, de respeitar e executar as sentenças definitivas do TEDH, nos litígios em que forem partes os Estados signatários, reparando as consequências da violação constatada.
V - O caráter inconciliável do conteúdo que tem de assumir a decisão proferida pela instância internacional vinculativa para o Estado Português com a decisão nacional revidenda verifica-se quando esta última se opuser, em virtude de desconformidade, por ação ou omissão, a algo afirmado, enquanto pressuposto lógico necessário, na decisão internacional, e que deixe sem tutela o direito ou situação jurídica regulada por aquela decisão jurisdicional internacional.
VI - A reabertura ou reexame do processo interno, mediante a interposição de um recurso extraordinário de revisão de sentença, como princípio da restauração natural e fonte primária da cessação da ilicitude, cumpre as exigências de uma adequada reparação da violação do direito, mas só se revela indispensável, perante a verificação de duas condições cumulativas, ou seja, a constatação pelo TEDH que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária aos princípios fundamentais da CEDH, ou violadora do «iter» procedimental e das respetivas garantias processuais, e cuja gravidade seja manifesta e, simultaneamente, que a parte lesada continue a sofrer, na sequência da decisão nacional, consequências negativas, particularmente, graves, que não possam ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, mas que, apenas, sejam suscetíveis de ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a «restitutio in integrum».
VII - O TEDH tem entendido a reabertura do processo como uma medida próxima das exigências da «restitutio in integrum», de acordo com o princípio primário da restauração natural, mas, no âmbito da solução alternativa entre a reabertura do processo ou o pagamento de uma satisfação equitativa, em conformidade com o princípio da subsidiariedade da restauração por equivalente.
VIII - Sempre que a decisão do TEDH funciona como justiça substitutiva, resolvendo a questão, em termos finais, como acontece quando condena o Estado Português a pagar ao recorrente uma determinada quantia, acrescida dos montantes que sejam devidos, a título de imposto, por danos materiais e por custas e despesas, rejeitando o pedido de reparação razoável relativamente ao restante, não se está perante duas decisões inconciliáveis, mesmo quando a decisão nacional tenha julgado que não houve violação dos direitos consagrados pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a decisão do TEDH haja declarado o contrário, em virtude de a parte lesada não continuar a sofrer, em consequência da mesma, consequências negativas, particularmente graves, porquanto as mesmas já foram compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, em termos de danos patrimoniais, não exigindo a reparação do direito violado, com vista à reposição integral do “status quo ante’, para além da compensação financeira determinada, a medida complementar da reapreciação do caso judicial.
IX - Não se mostrando verificados, na fase rescindente, os requisitos formais para a abertura do processo de revisão, designadamente, com vista a determinar se a sentença nacional se opõe a algo afirmado, enquanto pressuposto lógico necessário, na decisão internacional visada, não se conhece, por falta de fundamento legal, do recurso extraordinário de revisão interposto.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O DL nº 303/2007, de 24 de agosto, introduziu um novo fundamento de admissibilidade de recurso extraordinário de revisão, hoje, inserto na alínea f), do artigo 696.º, do Código de Processo Civil (CPC), nos termos da qual uma decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando “seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português”, que o preâmbulo daquele diploma justifica como forma de permitir que «a decisão interna transitada em julgado possa ser revista quando viole a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte», isto é, por forma a possibilitar a execução jurisdicional da decisão do TEDH, através do instituto da revisão da decisão nacional, transitada em julgado, visando, fundamentalmente, dar resposta à falta de meios internos de execução das decisões do TEDH. [...]
Importa, assim, definir a amplitude dos três requisitos em que se desdobra o texto legal deste novo fundamento de admissibilidade de recurso extraordinário de revisão, ou seja, a natureza do que se considera uma decisão definitiva [1], a sua proveniência de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português [2] e o caráter inconciliável do conteúdo que tem de assumir a decisão proferida pela instância internacional vinculativa para o Estado Português com a decisão nacional revidenda [3].
O conceito de decisão definitiva promovido pelo TEDH não contende com uma eventual omissão da defesa, pelo Estado português, ao conformar-se com a decisão proferida pela mesma entidade jurisdicional, não requerendo a devolução do caso ao Tribunal Pleno, inexistindo, assim, uma situação de paralelismo com o conhecimento pelo Tribunal Europeu do mecanismo de queixa acionado pelos particulares ofendidos, que depende do esgotamento de todas as vias de recurso internas, de acordo com o disposto pelo artigo 35º, nº 1, da CEDH.
Relativamente à questão da proveniência da decisão de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português, que contende com o âmbito das decisões suscetíveis de fundamentar um recurso de revisão, a nova previsão legal constante da alínea f), do artigo 696.º, do CPC, abrange, desde logo, as decisões emanadas do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo-se os Estados signatários da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)] obrigado a respeitar e executar as sentenças definitivas do TEDH, nos litígios em que forem partes, em conformidade com o preceituado pelo artigo 46.º, nº 1, da CEDH, reparando as consequências da violação constatada.
Ora, não sendo o TEDH uma instância internacional de recurso, entendida como um tribunal, hierarquicamente, superior aos tribunais nacionais, com a finalidade de anular, modificar ou revogar atos jurídicos de direito interno, com base em erro de julgamento ou de procedimento, é, porém, uma entidade internacional vinculativa para o Estado Português, que tem obrigação de cumprir os acórdãos proferidos pelo mesmo, embora faculte ao Estado a escolha dos meios a utilizar para cumprir a obrigação que decorre do artigo 46º, nº 1, da CEDH, ou seja, de respeitar e executar as sentenças definitivas do TEDH, nos litígios em que forem partes os Estados signatários, reparando as consequências da violação constatada.
No que respeita, por fim, à questão da incompatibilidade ou inconciliabilidade, esta só se produz quando a decisão a rever se opuser a algo afirmado, enquanto pressuposto lógico necessário da decisão internacional, pois que o TEDH não é competente para anular as decisões ou legislações nacionais, mas, apenas, para declarar que foi cometida uma violação e conceder uma reparação razoável, podendo a reparação do direito violado exigir, para além da eventual reparação financeira, a reapreciação do caso judicial.
Com efeito, as decisões do TEDH não são constitutivas do direito, visando antes por fim a uma situação de incerteza na ordem jurídica, tratando-se de um contencioso de legalidade e não de anulação.
Na verdade, são os Estados que se encontram obrigados a executar as decisões do TEDH, indemnizando as vítimas de violação da CEDH, e não os tribunais portugueses, que não se encontram vinculados pelas decisões daquele órgão, que não é um tribunal de recurso que profira decisões revogatórias das decisões nacionais [...].
Com efeito, sendo competente para executar as decisões do TEDH o Comité de Ministros do Conselho da Europa, sobretudo para assegurar o pagamento das eventuais compensações financeiras, impostas como forma de reparação dos prejuízos sofridos pelos particulares, pela violação dos seus direitos, existem situações em que a reposição integral do “status quo ante” não se basta com a mera compensação financeira determinada pelo TEDH, reclamando ainda a adoção de medidas complementares com vista à sustação do direito violado.
Da responsabilidade imputável ao Estado de executar as decisões proferidas pelo TEDH que declarem a violação da Convenção resultam três consequências, ou seja, a obrigação de cessação do ilícito, a obrigação de reparação dos efeitos do facto ilícito e a obrigação de evitar a repetição do ilícito [...].
A obrigação de reparação é o sistema primário, de acordo com o princípio da «restitutio in integrum», destinado a restaurar a situação que existia antes da violação, pois só em caso de impossibilidade jurídica ou material se deve recorrer à indemnização, sem prejuízo de o Tribunal admitir que a simples constatação de uma violação constitui, só por si, uma satisfação equitativa para o requerente.
A propósito da «reparação razoável», dispõe o artigo 41º da CEDH, que “se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário”.
Este normativo legal assenta no princípio primário da restauração natural, pressupondo, como é óbvio, o princípio da subsidiariedade da restauração por equivalente, tendo o TEDH considerado a reabertura do processo como uma medida próxima das exigências da «restitutio in integrum», apontando para uma solução alternativa entre a reabertura do processo ou o pagamento de uma satisfação equitativa [...].
Efetivamente, a reabertura do processo só se revela indispensável, perante a verificação de duas condições cumulativas, ou seja, a constatação pelo TEDH que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à CEDH, violadora do fundo, ou que nela existem erros ou falhas processuais que infringem a Convenção e as garantias processuais, e cuja gravidade seja manifesta, suscitando dúvidas sobre a condução e entendimento seguidos no processo nacional, e, simultaneamente, que a parte lesada continue a sofrer consequências negativas, particularmente, graves, na sequência da decisão nacional, que não possam ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, mas que, apenas, sejam suscetíveis de ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a «restitutio in integrum» [...].
O Governo, na contestação ao direito de queixa da ora recorrente a uma reparação por danos materiais, reiterando a sua tese da não violação do artigo 10.º, da CEDH, defendeu, a título subsidiário, que sendo reconhecida pelo Tribunal a aludida violação, o citado normativo estabelece que a recorrente terá possibilidade de interpor um recurso de revisão, de forma a retificar a violação do seu direito, através de um acórdão transitado em julgado.
Porém, o acórdão do TEDH condenou o Estado Português a pagar à ora recorrente a quantia de €30 000,00, acrescidos do montante que seja devido, a título de imposto, por danos materiais, e a quantia de €8919,00, acrescidos do montante que seja devido, a título de imposto, pela mesma, por custas e despesas, rejeitando o pedido de reparação razoável relativamente ao restante.
Assim sendo, a reabertura ou reexame do processo interno, mediante a interposição de um recurso extraordinário de revisão de sentença, como princípio da restauração natural e fonte primária da cessação da ilicitude, cumpre as exigências de uma adequada reparação da violação do direito [Acórdão Öcalan contra Turquia, de 12-5-2005, Pº nº 46221/99.39; Acórdão Gencei contra Turquia, de 24-03-2004, Pº nº 53431/99; Acórdão Celan contra Turquia, de 11 de outubro de 2005, Pº nº 23556/941] quando, cumulativamente, a decisão interna é contrária aos princípios fundamentais da CEDH ou violadora do «iter» procedimental e das respetivas garantias processuais, apresentando estas violações gravidade manifesta, e a parte lesada continua a sofrer, por efeito da mesma, consequências negativas, particularmente, graves, que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH.
Nas hipóteses em que a decisão do TEDH funciona como justiça substitutiva, resolvendo a questão, em termos finais, como sucedeu, no caso «sub judice», não se está perante duas decisões inconciliáveis, mesmo quando a decisão nacional tenha julgado que não houve violação dos direitos consagrados pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a decisão do TEDH haja declarado o contrário.
Efetivamente, para a afirmação da natureza inconciliável da decisão proferida pela instância internacional com a decisão nacional revidenda, importa que “o teor material da decisão jurisdicional interna seja desconforme, por acção ou omissão, com uma decisão jurisdicional de uma instância jurisdicional internacional … e que deixe sem tutela o direito ou situação jurídica regulada por aquela decisão jurisdicional internacional” [Santos Cabral, A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais supremos-efeito directo e reabertura do processo, Conferência realizada no STJ, em 20-04-2017, citando Maria José Rangel de Mesquita, 14, www.dgsi.pt].
Sendo o teor material da presente decisão revidenda violadora, por ação, de decisão jurisdicional definitiva de uma instância jurisdicional internacional vinculativa para o Estado Português, a recorrente “AA, S.A.”, enquanto parte lesada, não continua a sofrer, em consequência da mesma, consequências negativas, particularmente, graves, porquanto as mesmas já foram compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, em termos de danos patrimoniais, a qual funcionou, igualmente, como justiça substitutiva, resolvendo a questão, em termos finais, porquanto alterando a decisão interna, por a reputar violadora do artigo 10º, da CEDH, ele próprio a substituiu por uma outra.
Face a todo o exposto, não se mostram verificados, nesta fase rescindente, os requisitos formais para a abertura do processo de revisão, designadamente, com vista a determinar se a sentença nacional se opõe a algo afirmado, enquanto pressuposto lógico necessário, na decisão internacional visada, hipótese em que, em caso afirmativo, e, em fase rescisória, se deveria proferir uma nova sentença, em execução da decisão do TEDH."
3. [Comentário] A argumentação apresentada pelo STJ em favor da não admissibilidade do recurso de revisão com base no disposto no art. 696.º, al. f), CPC reconduz-se, fundamentalmente, à inutilidade deste recurso e, portanto, à falta de interesse processual do recorrente. O argumento mais forte apresentado pelo STJ neste contexto é o de que a decisão do TEDH substituiu a decisão interna.
Como decorre da fundamentação do acórdão e da jurisprudência do TEDH nela citada, a solução é distinta nos casos em que a interposição do recurso de revisão seja necessária para repor o queixoso na situação que existiria se a decisão interna que foi considerada violadora da CEDH não tivesse sido proferida.
MTS