"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/12/2017

Jurisprudência (745)


Processos de jurisdição voluntária;
decisões finais; recorribilidade


1. O sumário de STJ 25/5/2017 (945/13.8T2AMD-A.L1.S1) é o seguinte:

I. Em sede dos processos de jurisdição voluntária, não cabe, em regra, recurso de revista das decisões finais tomadas com a predominância de critérios de conveniência ou oportunidade sobre os critérios de estrita legalidade, nos termos do n.º 2 do art.º 988.º do CPC.

II. No entanto, na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza a decisão.

III. Quando, no âmbito dessas decisões, estejam em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, já a sua impugnação terá cabimento em sede de revista, circunscrita ao invocado erro de direito.

IV. Nessa conformidade, haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária, de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.

V. Em sede de revista interposta de acórdão da Relação confirmativo da decisão da 1.ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, quando seja invocada a violação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto pela Relação, este fundamento não concorre para a formação da dupla conforme prevista no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, na medida em que tal violação é imputada apenas à Relação, não ocorrendo, nessa parte, coincidência com a decisão da 1.ª instância.

VI. Porém, caso venha a ser denegada revista no respeitante à alegada violação de disposições processuais, terá então de equacionar-se, subsidiariamente, a ocorrência de dupla conforme quanto à decisão de direito, a começar pela verificação dos invocados pressupostos da revista excecional, para efeitos de levantamento do respetivo impedimento, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, do CPC.

VII. No caso presente, tendo-se concluído pela negação da revista quanto à invocada violação das disposições processuais em sede da reapreciação da decisão de facto, ocorrendo dupla conforme no plano da decisão de direito, mas tendo sido a revista interposta, subsidiariamente, a título de revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, do CPC, há que determinar a remessa do processo à formação dos três juízes do STJ a que se refere o n.º 3 desse artigo, para efeitos de verificação dos pressupostos invocados.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 
 
"[...] o primeiro passo é o de saber se do acórdão recorrido cabe revista nos termos gerais, mormente em conformidade com o disposto nos artigos 629.º, n.º 1, e 671.º, n.º 1, do CPC.

Ora, estamos perante um acórdão da Relação que, proferido sobre decisão da 1.ª instância, conheceu do mérito de uma pretensão para atribuição da casa de morada da família deduzida ao abrigo do artigo 1793.º do CC, por via do processo especial de jurisdição voluntária previsto e regulado pelo artigo 990.º do CPC. Nos termos do n.º 3 deste último artigo, da decisão final cabe sempre apelação com efeito suspensivo.

Acresce que, segundo o artigo 987.º do CPC, nas providências a tomar em sede dos processos de jurisdição voluntária, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 988.º do mesmo diploma prescreve que:

Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Significa isto que, sendo as providências de jurisdição voluntária tomadas com a predominância de critérios de conveniência ou oportunidade sobre os critérios de estrita legalidade, delas não caberá também, em princípio, recurso de revista.

Com efeito, na esfera da tutela de jurisdição voluntária, em que se protegem interesses de raiz privada mas, além disso, com relevo social e alcance de interesse público, são, por isso, conferidos ao tribunal poderes amplos de investigação de factos e de provas (art.º 986.º, n.º 2, do CPC), bem como maior latitude na determinação da medida adequada ao caso (art.º 987.º do CPC), em derrogação das barreiras limitativas do ónus alegatório e da vinculação temática ao efeito jurídico especificamente formulado, estabelecidas no âmbito dos processos de natureza contenciosa nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º (quanto ao pedido e causa de pedir) e 609.º, n.º 1, do CPC.

É, pois, tal predomínio de oficiosidade do juiz sobre a atividade dispositiva das partes, norteado por critérios de conveniência e oportunidade em função das especificidades de cada caso, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita, que justifica a supressão de recurso para o tribunal de revista, vocacionado como é, essencialmente, para a sindicância da violação da lei substantiva ou processual, nos termos do artigo 674.º e 682.º, n.º 3, do CPC.

Foi nesse sentido que, no acórdão do STJ, de 20/01/2010, proferido no processo n.º 701/06.0TBETR.P1.S1 [...], se observou o seguinte:

«Explica-se desta forma que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva (…) ou adjectiva (…), não possa, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, ao abrigo do disposto no artigo 1410.º [atual 987.º] do CPC. Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (…), a lei restringe a admissibilidade de recurso até à Relação

No entanto, na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão.

Assim, quando, no âmbito das próprias decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária, estejam em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, já a sua impugnação terá cabimento em sede de revista, circunscrita ao invocado erro de direito.

Como se ressalva no aresto do STJ de 20/01/2010 acima citado, a propósito da inadmissibilidade de revista nos referidos processos:

«A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a confina à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita. É nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído. […]
 
Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça (…) a apreciação da respectiva verificação.»

Em conformidade com tal entendimento, quanto ao essencial, na linha da jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal [A este propósito, podem consultar-se o acórdão do STJ, de 02/06/2016, relatado pelo Juiz Cons. Salazar Casanova, proferido no processo n.º 1233/14.8TBGMR.G1.S1, e os outros acórdãos do STJ ali citados, acessíveis na Internet, – http://www.dgsi.pt/jstj], haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade."
 
[MTS]